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terça-feira, 21 de abril de 2015

DIREITO DE PERSONALIDADE INDEMNIZAÇÃO JUIZA ADVOGADO - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 26.03.2015


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
589/11.9TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
INDEMNIZAÇÃO

Nº do Documento: RP20150326589/11.9TVPRT.P1
Data do Acordão: 26-03-2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: Constitui-se na obrigação de indemnizar a Juíza de Direito autora, o réu Advogado que, ciente do teor e fundamentos da sentença que ela proferira numa causa em que ele interveio como advogado e do que sobre a sua pessoa na comunicação social, com base em meros extractos descontextualizados, se propalara e ele comentara criando-se desse modo uma imagem negativa dela, patrocinou, entretanto, um processo penal pelos crimes de discriminação racial e de difamação contra aquela magistrada, sabendo que tais excertos eram fundamentados, não correspondiam a ideias próprias da mesma e que a divulgação de tal processo continuaria a difundir aquela má imagem, lesando os seus direitos de personalidade e causando-lhe danos.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Apelação nº589/11.9TVPRT.P1 – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº 206)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (1º Adjunto)
Des. Dr. Mário Manuel Batista Fernandes (2º Adjunto)

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Drª B…, Juíza de Direito, instaurou, em 14-07-2011, contra Dr. C…, Advogado, acção declarativa ordinária.

Nela pediu a condenação deste a pagar-lhe indemnização no valor de 500.000,00€ (e juros).

Invocou como causa de pedir: prática de actos ilícitos e culposos causadores de danos e geradores de responsabilidade civil.

Do quadro fáctico que, como fundamento da sua pretensão, alegou, resulta em síntese, o seguinte:

Após a leitura de decisão penal condenatória que elaborou e proferiu como Juíza do Tribunal de Felgueiras, o réu, presente na qualidade de mandatário de dois dos arguidos, no quadro do seu propósito e atitude de ofender a pessoa da autora, promovendo para tal a difusão de excertos da sentença e a instauração de acções judiciais contra ela, disse, referindo-se ao teor da sentença: “daqui a cinco minutos, isto está na D…”, declaração que concretizou. “Assim”, no dia imediato, vários meios de comunicação social publicaram, como notícia principal ou destacada, a manchete “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros”, no seu conteúdo fazendo menções ou incluindo mesmo extractos colhidos daquela como referentes não aos condenados mas à comunidade cigana em geral e por si de sentido desprimoroso. Tais notícias continuaram no dia seguinte e atribuíam à autora as “considerações polémicas” sobre a etnia cigana. Nelas, quase sempre se apontava, como fonte, a D…. Todas referem declarações do réu fazendo considerações sobre a sentença e o referido tema. O réu prestou declarações também à E… sobre o conteúdo das notícias. A publicação delas deu origem a vários artigos e comentários em que o nome, a honra e a imagem da autora, como cidadã e juíza, foram insultados e ultrajados.
Tais notícias eram infundadas e assentavam em excertos descontextualizados que, apesar de fazerem parte do teor da sentença, resultavam dos meios de prova produzidos (testemunhas e documentos). A falta de veracidade e o erro induzido pelo réu com as suas declarações gerou, além de rectificações (caso da própria D…), também comentários de apreço àquela.
Não obstante, dois dos arguidos nela condenados, patrocinados pelo réu, apresentaram uma queixa-crime no Ministério Público contra a autora pela prática de crimes de difamação e de discriminação racial e, embora arquivada, o réu entendeu, ainda, apresentar acusação particular, subscrevendo-a, consubstanciada nos mesmos excertos e passagens da sentença que a comunicação social, de forma descontextualizada, utilizara.
Nesta sequência, um jornal publicou notícia de que “ciganos processam juíza por sentença difamatória”, onde o réu aparece como protagonista, referindo declarações suas.
O réu tem vindo a usar tal processo para intimidar a autora e a afastar daqueles em que ele intervém como mandatário e, quando se cruza com a autora noutros processos, formula pedidos de recusa também com os mesmos fundamentos. A pretexto do mesmo, em artigo jornalístico, o réu qualificou a autora de “racista e xenófoba”.
Quando a referida sentença foi parcialmente anulada pela Relação (por outras razões alheias ao referido tipo de expressões nela usadas pela autora), o réu, em declarações registadas e transmitidas em três canais de televisão, congratulou-se com a decisão e afirmou que ela seria obrigada “a expurgar as expressões racistas”.
Tais declarações do réu, pensa a autora, visavam manipular a comunicação social e, consequentemente, a opinião pública, sobre a sua personalidade, o que gerou a emissão de um comunicado pela F….
As notícias reprodutoras de excertos descontextualizados da sentença tiveram origem nas declarações do réu à D… e foram por este comentadas, confirmadas e enfatizadas como reportando expressões proferidas pela demandante, contribuindo assim para a falsa veracidade delas, apesar de ele saber que não correspondiam à realidade constante da sentença nem eram de sua autoria.
O réu agiu deliberadamente e com a intenção de ofender o nome, imagem, honra e dignidade da magistrada autora, de tal actuação propositada resultando para esta os efeitos lesivos na sua esfera pessoal e na da sua vida familiar, social e profissional que descreve, consubstanciadores de um dano de que pretende ser indemnizada.

Uma vez citado, o réu apresentou contestação (fls. 340 a 354), na qual, sobretudo, se defendeu por impugnação. Acrescentou que, embora tenha, como defensor dos arguidos, assistido à leitura da sentença, não proferiu a afirmação imputada (relativa à D…), nada comunicou a tal D… e não teve qualquer participação na autoria e teor das notícias. É verdade que proferiu as afirmações que nestas lhe são imputadas e à E…, mas só depois de aquelas terem sido publicadas e após contacto dos respectivos órgãos a pedir-lhe que as comentasse. Não teve também qualquer participação na autoria e teor dos comentários na blogosfera nem nas declarações púbicas das entidades referidas na petição. Mantém aquelas afirmações porque, cotejando proposições constantes do texto da sentença com as declarações orais produzidas na audiência que se encontram gravadas e cuja transcrição apresenta (e cita), verifica-se que os declarantes não disseram o que aquelas referem como tal, pelo que só podem ser da autoria da demandante. O mesmo sucede quanto a afirmações relativas aos arguidos, que não resultam de depoimentos testemunhais nem de documentos juntos.
Confirma que patrocinou os queixosos como advogado no processo-crime instaurado contra a autora por vontade deles e por se sentirem ofendidos.
Além de não entender, face aos documentos respectivos, o alegado uso do incidente de recusa, considera falsas as alegadas declarações a propósito da queixa e da anulação da sentença pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Desconhece, enfim, os factos alusivos aos danos, que, a terem ocorrido, não foram por si provocados, e refuta algumas as afirmações feitas na petição.

Em réplica (fls. 639 a 645), a autora sustentou que as transcrições destacadas pelo réu são parciais e não permitem conhecer o juízo e a avaliação dos factos que fez na sentença penal, percutindo que apenas se serviu dos elementos do processo e se limitou a, com a liberdade que lhe é permitida ao fazer o respectivo exame crítico, sobre eles ajuizar no exercício da sua função, tarefa que se não limita à mera reprodução mecânica dos depoimentos ouvidos. Ao assumir como suas as declarações referidas pelas notícias, designadamente as prestadas à E…, o réu contribuiu para a respectiva publicação e para os comentários e intervenções surgidos. Refuta as intenções e comportamento que, em relação à sua pessoa, ele lhe atribui na contestação.

Após saneador, foi seleccionada a matéria de facto considerada relevante, já assente e controvertida – acto de que reclamou o réu, com parcial deferimento.

Realizada a audiência de julgamento, foi, em 28-04-2014, proferida sentença (fls. 1927 a 1963) que culminou na decisão de julgar “parcialmente procedente o pedido formulado pela Autora…, condenando o Réu … a pagar-lhe a quantia de €16.000,00 (dezasseis mil euros), acrescida de juros de mora…; parcialmente improcedente o pedido formulado pela Autora, absolvendo o Réu da sua parte restante.”
O réu não se conformou e interpôs recurso para esta Relação, concluindo assim as suas alegações:
“C) DAS CONCLUSÕES
C1) MATÉRIA DE FACTO
1ª) A matéria julgada provada constante do ponto 15. dos factos provados é claramente conclusiva, pelo que deve ser considerada não escrita (artigo 607º nº 3 do Código de Processo Civil).
2ª) A matéria julgada provada constante do ponto 16. dos factos provados é, também, claramente conclusiva, para além de ser vaga e imprecisa, pelo que, de igual modo, deve ser considerada não escrita (artigo 607º nº 3 do Código de Processo Civil).
3ª) Esta ambiguidade e obscuridade da sentença torna-a ininteligível e, nessa medida, nula, o que deve ser decretado por este tribunal (artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil).
4ª) A A. referiu o seguinte na sentença mencionada em 2. dos factos provados (doc. nº 1 junto aos autos com a contestação):
- Fls. 12 – Relativamente ao arguido G…, “As condições habitacionais são fracas (…) pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene (…)”;
- Fls. 27 – Relativamente aos arguidos de etnia cigana, “(…) são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem “pagam” desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas”.
Estes excertos da sentença não resultam do depoimento de qualquer testemunha, nem de documento que se encontrasse junto aos autos.
5ª) Do relatório social apresentado naquele outro processo, elaborado pela Direcção Geral de Reinserção Social – Ministério da Justiça, relativamente ao arguido G…, consta o seguinte (cfr. doc. nº 3 junto aos autos com a contestação):
- “A adaptação ao bairro social para o próprio não foi fácil, apesar de vir beneficiando de uma imagem favorável em termos de inserção social”;
- “Na educação dos filhos a escolaridade vem sendo valorizada, bem como a higienização, para o que vem contribuindo o acompanhamento da Segurança Social”; e
- “As condições habitacionais são exíguas (…) que se prende não tanto com o espaço, mas com o estilo de vida da etnia cigana, que avalia como colidindo por vezes com as normas convencionadas na cultura dominante”.
A sentença recorrida refere que os excertos em causa resultam da percepção colhida pela Autora durante a prova produzida em julgamento.
O relatório social refere, relativamente ao arguido G…, que “Na educação dos filhos a escolaridade vem sendo valorizada, bem como a higienização (…)”, ou seja, que a higienização vem sendo valorizada e a A. percepcionou que “As condições habitacionais são fracas (…) pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene (…)”.
Portanto, a A. não só escreveu o contrário do que refere o relatório social, como partiu de uma referência que dizia exclusivamente respeito ao arguido G… para a generalizar à respectiva etnia imputando-lhe “pouca higiene”, facto esse que nem sequer é relevante para a determinação e fixação da medida da pena.
No ponto II. da fundamentação da decisão da matéria de facto diz-se, a este propósito, que a expressão “as condições habitacionais são fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene)”, para além de estar truncada na sua parte final - que contém ainda “…, o que vem sido contrariado pela ação de acompanhamento da Segurança Social)” -, é retirada de um facto provado sobre as condições de vida do arguido G… que indicia claramente a sua fonte probatória – o relatório social elaborado pelo IRS”.
Já se viu, todavia, que o relatório social refere o contrário do que foi escrito pela A. na sentença.
6ª) Por outro lado, cumpre perguntar qual foi o meio de prova que permitiu à A. percepcionar que os arguidos de etnia cigana, “(…) são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem “pagam” desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas”?
A sentença recorrida não explica, limitando-se a dizer que tais referências estão feitas numa parte da sentença reservada à descrição dos aspectos que desfavorecem os arguidos para efeito de cálculo da medida concreta da pena, pelo que se impunha à Autora, tendo presentes os factos provados na decisão, apontar-lhes os aspectos mais negativos (sublinhado meu).
Pergunta-se: Ainda que esses “aspectos mais negativos” não tenham qualquer base probatória e não tenham qualquer relevância para a determinação da medida da pena?
Quem disse ou de que documento resulta que os arguidos eram malvistos socialmente, marginais, traiçoeiros, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem “pagam” desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas?
A sentença, como se disse, não o esclarece, abarcando todas estas expressões debaixo do guarda-chuva da percepção colhida pela Autora durante a prova produzida em julgamento, mas nunca esclarecendo quais os concretos meios de prova que justificaram tais afirmações.
E não esclarece porque eles não existem!
7ª) Também esta ambiguidade e obscuridade da sentença torna-a ininteligível e, nessa medida, nula, o que deve ser decretado por este tribunal (artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil).
8ª) Do relatório social apresentado naquele outro processo, elaborado pela Direcção Geral de Reinserção Social – Ministério da Justiça, relativamente ao arguido G…, consta exactamente o contrário (cfr. doc. nº 3 junto aos autos com a contestação), ou seja, que “A adaptação ao bairro social para o próprio não foi fácil, apesar de vir beneficiando de uma imagem favorável em termos de inserção social” (sublinhado meu) e, assim, resulta que o mesmo não é malvisto socialmente.
9ª) A fls. 15 e 16 da sentença (doc. nº 1 junto com a contestação) refere-se que a testemunha H…:
- Disse que “(…) a confusão era enorme com os 3 arguidos a “liderar a revolta” e com as mulheres e as crianças a guincharem selvaticamente e a baterem e a chamarem nomes”.
Ora, compulsada a transcrição da gravação da prova produzida na referida audiência de discussão e julgamento (cfr. doc. nº 2 junto com a contestação) verifica-se que a testemunha H… (doc. nº 2, fls. 1 a 30) não disse que as mulheres e as crianças guinchavam selvaticamente e batiam e chamavam nomes.
10ª) Ao contrário do que se refere em 43. e 44. dos factos provados, o R. não tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas (artigo 78º da base instrutória), nem que as expressões da sentença que foram objecto das notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam na percepção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo (artigo 79º da base instrutória).
Tal como consta da contestação, o Réu sempre negou esses factos e os mesmos, ao contrário do que é dito na fundamentação da decisão da matéria de facto, não resultam das explicações do ponto II., nem da circunstância de o Réu ter intervindo, como advogado, na defesa durante o julgamento dos arguidos daquele processo (aliás, esta intervenção permitiu-lhe tirar a conclusão contrária, razão pela qual aceitou o patrocínio dos participantes) e nem do teor da sentença.
A matéria constante dos pontos 43. e 44. dos factos provados deveria, manifestamente, ter sido julgada não provada.

C2) MATÉRIA DE DIREITO
11ª) Ao contrário do que parece resultar do ponto 44. dos factos provados, a queixa-crime e a acusação particular não são baseadas em quaisquer notícias, mas sim no teor da própria sentença confrontado com a prova produzida em julgamento, pelo que nunca o teor das referidas notícias (constantes dos factos provados 4., 5, 7. e 9) poderia, como se fez na sentença recorrida, justificar qualquer condenação do Réu.
12ª) Existe uma clara contradição entre os fundamentos de facto e os fundamentos de direito da sentença recorrida.
É que, naqueles (ponto 44. dos factos provados) retira-se a responsabilidade do Réu do teor das notícias referidas nos factos provados 4., 5, 7. e 9 e nestes (fundamentos de direito) retira-se a responsabilidade civil do Réu do teor da queixa-crime e da acusação particular produzidas no processo referido em 21. dos factos provados.
Esta contradição deverá conduzir, de igual modo, à nulidade da sentença recorrida, que deverá ser decretada (artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil).
13ª) Ao contrário do que refere a sentença recorrida o teor da sentença nem sempre se baseou na descrição por súmula de testemunhos produzidos em julgamento, nem num facto provado sobre as condições pessoais de um arguido (fundado em relatório social junto) e nem na ponderação dos aspectos desfavoráveis provados para efeito de determinação da medida concreta da pena, senão vejamos:
# A fls. 15 e 16 da sentença (doc. nº 1 junto com a contestação) refere-se que a testemunha H…:
- “(…) conhece bem o arguido I… e os seus dois filhos G… e J… (“utentes” habituais do posto) (…)” (facto imputado à A. na queixa-crime, a fls. 134 deste processo, e na acusação particular, a fls. 175 deste processo); e
- Disse que “(…) a confusão era enorme com os 3 arguidos a “liderar a revolta” e com as mulheres e as crianças a guincharem selvaticamente e a baterem e a chamarem nomes” (factos imputados à A. na queixa-crime, a fls. 134 deste processo, e na acusação particular, a fls. 176 deste processo).
Ora, compulsada a transcrição da gravação da prova produzida na referida audiência de discussão e julgamento (cfr. doc. nº 2 junto com a contestação) verifica-se que a testemunha H… (doc. nº 2, fls. 1 a 30) não disse que o arguido I… e os seus dois filhos G… e J… eram “utentes habituais do posto” e não disse que as mulheres e as crianças guinchavam selvaticamente e batiam e chamavam nomes.
# A fls. 17 da sentença (cfr. doc. nº 1 junto aos autos com a contestação) refere-se que a testemunha K… “Discorreu que só no último ano (…) é que a GNR logrou efectuar um policiamento eficaz do …, já que dantes era quase uma “Cova da Moura cigana”” (facto imputado à A. na queixa-crime, a fls. 134 deste processo, e na acusação particular, a fls. 177 deste processo).
Mais uma vez compulsada a transcrição da gravação da prova produzida na referida audiência de discussão e julgamento (cfr. doc. nº 2 junto com a contestação) verifica-se que a testemunha K… (doc. nº 2, fls. 46 a 61) não disse que o … em causa antes era quase uma “Cova da Moura cigana ”.
Aliás, foi a própria A. que perguntou à testemunha “Isto é uma espécie de Cova da Moura? (…)”, ao que a testemunha respondeu “Não, não, não é que eu conheço a Cova da Moura (…)” (doc. nº 2, fls. 59).
# A fls. 18 da sentença (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação) refere-se que a testemunha L… “(…) conhece perfeitamente os 4 arguidos de etnia cigana e pelo seu próprio nome, jamais os podendo confundir, uma vez que presta serviço no Posto da GNR e eles são “meliantes/clientes habituais” (…)” (acto imputado à A. na queixa-crime, a fls. 134 deste processo, e na acusação particular, a fls. 177 deste processo).
Ora, compulsada a transcrição da gravação da prova produzida na referida audiência de discussão e julgamento (cfr. doc. nº 2 junto com a contestação) verifica-se que a testemunha L… (doc. nº 2, fls. 62 a 71) não disse que os 4 arguidos de etnia cigana são “meliantes/clientes habituais” do Posto da GNR.
# A fls. 19 da sentença (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação) refere-se que a testemunha M… disse que:
- “(…) o arguido I… (com a compreensível postura paternal sem-cerimónia típica da cultura cigana) (…)”;
- “(…) as pancadas com paus no Jeep por banda dos dois irmãos e com o “alto-patrocínio do pai” só pararam quando “dois ciganos de fora, mais civilizados lhes retiraram os paus” (…)”; e
- “(…) os 4 arguidos de etnia cigana bem como a sua numerosa família são “clientes fixos e privilegiados da GNR (…)”. (factos imputados à A. na queixa-crime, a fls. 134 e 135 deste processo, e na acusação particular, a fls. 178 deste processo)
Compulsada a transcrição da gravação da prova produzida na referida audiência de discussão e julgamento (cfr. doc. nº 2 junto com a contestação) verifica-se que a testemunha M… (doc. nº 2, fls. 72 a 85) não disse que o arguido I… tinha “a compreensível postura paternal sem-cerimónia típica da cultura cigana”, nem que as pancadas com paus no Jeep por banda dos dois irmãos foram dadas com o “alto-patrocínio do pai”, nem que as mesmas só pararam quando “dois ciganos de fora, mais civilizados lhes retiraram os paus”, nem que os 4 arguidos de etnia cigana, bem como a sua numerosa família, são “clientes fixos e privilegiados da GNR”.
14ª) Portanto, todas as afirmações e juízos de valor vindos de referir, não tendo sido proferidas pelas testemunhas em causa e constando da sentença, só podem ser da autoria da A. que a elaborou (ponto 2. dos factos provados).
15ª) A A., quando se referiu ao arguido I… com a compreensível postura paternal sem-cerimónia típica da cultura cigana (sublinhado meu), partiu do arguido em causa para uma generalização atinente à respectiva etnia, o que é absolutamente inaceitável.
16ª) A A. ainda referiu o seguinte na mencionada sentença (doc. nº 1 junto com a contestação):
- Fls. 12 – Relativamente ao arguido G…, “As condições habitacionais são fracas (…) pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene (…)”;
- Fls. 23 – Relativamente aos arguidos G… e J…, “(…) não se vislumbrando a menor razão para acolher a rábula da “perseguição e vitimização dos ciganos, coitadinhos!” (…)” (facto imputado à A. na queixa-crime, a fls. 135 deste processo, e na acusação particular, a fls. 181 deste processo); e
- Fls. 27 – Relativamente aos arguidos de etnia cigana, “(…) são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem “pagam” desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas” (factos imputados à A. na queixa-crime, a fls. 135 deste processo, e na acusação particular, a fls. 182 deste processo).
Estes excertos da sentença não resultam do depoimento de qualquer testemunha, nem de documento que se encontrasse junto aos autos.
Aliás, do relatório social apresentado naquele outro processo, elaborado pela Direcção Geral de Reinserção Social – Ministério da Justiça, relativamente ao arguido G…, consta o seguinte (cfr. doc. nº 3 junto com a contestação):
- “A adaptação ao bairro social para o próprio não foi fácil, apesar de vir beneficiando de uma imagem favorável em termos de inserção social”;
- “Na educação dos filhos a escolaridade vem sendo valorizada, bem como a higienização, para o que vem contribuindo o acompanhamento da Segurança Social”; e
- “As condições habitacionais são exíguas (…) que se prende não tanto com o espaço, mas com o estilo de vida da etnia cigana, que avalia como colidindo por vezes com as normas convencionadas na cultura dominante”.
Portanto, refere o relatório social que a higienização vem sendo valorizada, tendo a A. percepcionado que lá estava escrito que “As condições habitacionais são fracas (…) pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene (…)”!!
Esta afirmação, para além de falsa, mais uma vez, parte do arguido em causa para uma generalização atinente à respectiva etnia, o que, repete-se, é absolutamente inaceitável, desnecessário, discriminatório e ofensivo da honra e consideração dos visados e da sua etnia.
17ª) Ainda relativamente aos arguidos G… e J… refere-se na sentença em causa “(…) não se vislumbrando a menor razão para acolher a rábula da “perseguição e vitimização dos ciganos, coitadinhos!” (…)” (incompreensivelmente nada se diz na sentença a este respeito), pelo que, mais uma vez, se parte dos arguidos em causa para uma inaceitável generalização atinente à respectiva etnia, ofensiva da honra e consideração dos visados.
18ª) Relativamente aos arguidos de etnia cigana refere a sentença que “(…) são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem “pagam” desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas”.
As afirmações referidas não tendo sido proferidas pelas testemunhas em causa, nem resultando de qualquer documento junto ao processo, e constando da sentença, só podem ser da autoria da A. que a elaborou (ponto 2. dos factos provados), traduzindo, por isso, opiniões e juízos de valor pessoais da mesma relativamente aos arguidos ciganos e à respectiva etnia e sendo aptas e adequadas a ofender a honra e a consideração daqueles.
19ª) Mesmo que as testemunhas ouvidas naquele outro processo tivessem feito as afirmações que a A. lhes imputou, o que como se viu não sucedeu, ainda assim, esta não as deveria ter reproduzido ou levado tais factos à fundamentação da sentença, sob pena de, pelo menos, se associar às afirmações/imputações feitas, sendo certo que estas não tinham qualquer relevância para a decisão a proferir, nem visavam qualquer interesse legítimo e a mera reprodução desses juízos, ofensivos da honra e consideração dos visados, preenche o tipo legal do crime de difamação nos termos do disposto no artigo 180º nº 1 do Código Penal.
20ª) Por outro lado, as constantes referências da A., na sentença que proferiu, aos “arguidos ciganos” e “ciganos agressores” são, de per se, discriminatórias, devendo sempre os aí arguidos apenas serem identificados e distinguidos pela sua identidade (nome) e não pela pertença a qualquer grupo étnico, o que sempre seria irrelevante para a apreciação da conduta daqueles arguidos.
21ª) A actuação do réu surge em execução do mandato judicial que estabeleceu com os seus constituintes, o qual é necessariamente um mandato representativo, pelo que, em consonância com o que se dispõe nos arts. 1178º e 258º, ambos do Cód. Civil, os actos jurídicos praticados pelo mandatário judicial produzem os seus efeitos directamente na esfera jurídica do respectivo mandante, e não na própria.
22ª) “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça” (artigo 208º da CRP).
23ª) O juízo ora feito contra o Réu (de sustentar uma tese descabida e totalmente inconsistente, claramente infundada, de ter uma actuação, no mínimo, censurável por não ter actuado com a diligência e o zelo que, em face das circunstâncias do caso, seria exigível a um homem médio, com as mesmas aptidões e conhecimentos técnico-jurídicos que possuía, acrescentando-se que crê-se até que estamos perante um caso de negligência grosseira, dada a profunda inconsistência da tese propugnada no processo crime movido à aqui Autora) reconduz-nos à responsabilidade do mandatário em caso de litigância de má fé (artigos 542º e 545º do Código de Processo Civil).
Ora, este juízo podia e devia, se tivesse cabimento, ter sido feito no próprio processo em que se deu a intervenção do Réu, o que, como se viu, não sucedeu.
A ter sucedido deveria, no processo respectivo, dar-se conhecimento do facto à Ordem dos Advogados, para que esta pudesse aplicar a sanção disciplinar a que houvesse lugar e condenasse o mandatário na quota-parte das custas, multa e indemnização (artigo 545º do Código de Processo Civil), o que nada ocorreu.
24ª) Os denunciantes daquele outro processo também não foram objecto, em tal processo, do juízo de má fé ou de negligência grave a que alude o artigo 520º do Código de Processo Penal, ou de qualquer censura pelo exercício do direito de queixa.
25ª) A inexistência destes juízos no processo respectivo preclude a hipótese dos mesmos juízos virem a ser feitos noutro processo por efeito do caso julgado material, excepção dilatória esta que é de conhecimento oficioso (artigo 578º do Código de Processo Civil) e que, ainda que se entendesse que tais juízos têm cabimento, devia ter sido declarada.
26ª) É necessária muita cautela e bom senso, para se poder com segurança afirmar que a parte litiga de má-fé, devendo exigir-se, em termos inequívocos, a demonstração do dolo ou da culpa grave, por forma a se evitarem condenações injustas, quando, como é o caso, a verdade obtida nos autos advém, sobretudo ou em grande parte, da prova testemunhal.
27ª) Em abstracto a conduta da aqui A. naquele outro processo, mais precisamente da redacção da sentença referida em 2. dos factos provados poderia integrar os tipos criminais que lhe foram imputados na participação e na acusação particular, pelo que não se vislumbra a existência de qualquer negligência grosseira como referido na sentença recorrida.
28ª) A A. não provou os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Réu, pelo que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente.
29ª) No que concerne à fixação do quantum indemnizatório sempre será de considerar desadequado e excessivo o montante indemnizatório fixado em clara violação do disposto nos artigos 494º e 496º do Código Civil.
30ª) Sempre deveria o tribunal a quo ter considerado, atendendo à culpa da A. para a produção de eventuais danos sofridos, a redução ou mesmo a exclusão da indemnização (artigo 570º do Código Civil).
A irresponsabilidade consagrada no nº 2 do artigo 216º da CRP não releva, contudo, para este efeito.
31ª) O Réu agiu com a diligência e zelo que se impunha no exercício do mandato, fazendo uma correcta, ou no mínimo admissível, avaliação da qualificação dos factos praticados pela A., isto independentemente da posição que obteve vencimento – que se respeita – no processo referido em 21. dos factos provados.
O direito não é uma ciência exacta e os juízos técnicos efectuados, neste caso concreto pelo Réu, podem divergir, sem serem infundados, daqueles que são feitos pelos julgadores.
A divergência de opiniões jurídicas não legitima a conclusão de que umas são aceitáveis e outras inaceitáveis, como se opinou na sentença recorrida.
32ª) A decisão recorrida violou as normas dos artigos 607º nº 3, 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil, 483º, 494º, 496º e 570º do Código Civil e 208º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a nulidade da sentença recorrida pelos motivos supra invocados, alterando-se a decisão da matéria de facto nos termos acima indicados e determinando-se a revogação da sentença recorrida e a respectiva substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente, isto para que uma vez mais se faça JUSTIÇA!”

Nas contra-alegações respectivas, a autora defendeu, quanto à parte objecto de tal recurso, a confirmação do decidido, concluindo:

“i.A matéria de facto constante dos pontos 15. e 16. da matéria de facto dada como provada pela douta sentença recorrida não é conclusiva, sendo que a sua motivação se encontra devidamente explicitada, com referência à (i) leitura integral da sentença proferida pela Recorrida; (ii) à transcrição escrita dos testemunhos; (iii) aos depoimentos prestados no processo nº 21/06.0GAFLG e (iv) ao relatório social;
ii.Não era exigível à douta sentença recorrida a individualização dos depoimentos prestados no âmbito do processo nº 21/06.0GAFLG para demonstrar que os excertos usados nas notícias (e identificados nos pontos 4., 5., 7. e 9. da matéria de facto dada como provada) bastando a remissão para a leitura integrada da sentença proferida naquele processo;
iii.A referência no ponto 44. da matéria de facto dada como provada ao objeto das notícias constantes dos pontos 4., 5., 7. e 9. da referida matéria justifica-se, desde logo, porque o Recorrente sabia que aquelas expressões, veiculadas pela comunicação social, resultavam da perceção colhida da Recorrida dos depoimentos das testemunhas não havendo fundamento para patrocinar o processo crime como patrocinou;
iv.Por outro lado, a ação que deu origem a este processo assenta não só no patrocínio do processo-crime como na dinâmica do Recorrente com a comunicação social, ainda que, sobre essa matéria, a douta sentença (ainda não transitada) não tenha dado razão à Recorrida;
v.A convicção do tribunal de que os excertos em causa resultam da perceção da Recorrida resulta, ainda, da douta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou manifestamente improcedente a acusação particular patrocinada pelo Recorrente e integralmente confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça;
vi.O facto dado como provado do conhecimento do Recorrente do teor da sentença proferida pela Recorrida resulta da prova elencada e da convicção do julgador que, devidamente fundamentada, como é o caso, emerge da sua liberdade de apreciação da prova e por isso não pode ser contestado;
vii.Os fundamentos de facto e de direito da douta sentença recorrida não são contraditórios, mormente o facto 44. dado como provado, porquanto o facto de se ter dado como provado que as expressões da sentença da Recorrida usadas nas notícias resultavam da sua perceção é diferente de ter sido o A. o responsável pelo seu teor, sendo que tal responsabilidade resultaria antes dos pontos 1. a 3., 5., 7. e 14. dos factos dados como não provados pela douta sentença recorrida;
viii.O instituto da litigância de má-fé e o procedimento disciplinar junto da Ordem dos Advogados não são os únicos meios de responsabilização da atuação ilícita dos advogados, não havendo qualquer caso julgado material se, no âmbito do processo em que o advogado atua ilicitamente, os mesmos não tiverem lugar e não precludindo a possibilidade de intentar uma ação responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos;
ix.O artigo 208º da CRP – que prevê a existência de medidas necessárias ao exercício do mandato forense – não é absoluto, cedendo em caso de se tratar, como é o caso, de uma atuação impertinente e de má-fé, ainda mais, quando, como se configura na situação presente, a atuação do Recorrente colocou em perigo o valor, também constitucionalmente protegido no artigo 203º, da independência do juiz;
x.Não estão expressamente previstas no artigo 208º da CRP as imunidades necessárias ao exercício do mandato, sendo as mesmas legalmente densificadas;
xi.Ora, se, como refere a douta sentença recorrida, (i) “o Réu patrocinou como advogado, um procedimento criminal contra a aqui Autora, fundado na imputação de factos praticados no exercício funcional desta como Juíza de Direito, descabido e totalmente inconsistente, por ser manifesto que não traduziam opiniões pessoais da Autora relativamente aos ciganos como grupo étnico e que não teve qualquer intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes”; (ii) “[se] exigia ao Réu, na qualidade de advogado dotado dos conhecimentos técnicos necessários para avaliar se, na sentença proferida, a Autora cometeu os crimes que lhe foram imputados, uma outra atuação, consentânea com a realidade que uma leitura desapaixonada e objetiva põe em evidência”; (iii) “estamos perante um caso de negligência grosseira, dada a profunda inconsistência da tese propugnada no processo crime movido à aqui Autora”, a atuação do Recorrente extravasou – e muito – o seu mandato violando, inclusivamente, as regras deontológicas a que se encontra vinculado, e, nessa medida, não poderá usufruir de qualquer imunidade na prática de um facto ilícito (violação do direito ao bom nome, honra e consideração da Recorrida), como é o dos presentes autos.
Termos em que o Recurso deve ser julgado improcedente, com as legais consequências, com o que V. Ex.cias, Senhores Desembargadores, farão JUSTIÇA!”.

Por sua vez, também a autora não se conformou com o segmento da sentença que, quanto a uma parte da conduta por si imputada ao réu, julgou improcedente a acção e o absolveu, pelo que dela interpôs recurso subordinado, concluindo assim as suas alegações:

“I.A douta sentença recorrida, em nosso entendimento, deveria ter dado como provado o facto não provado 3. com base no depoimento de parte do Recorrido (sessão de 10.04.2013 – T_01.01.06) e nos depoimentos do Senhor Desembargador N… (sessão de 10.04.2013 – T_00.58.38), da Senhora Dra. O… (sessão de 13.05.2013 – T_00.16.54), do Senhor P… (sessão de 12.06.2013 – T_00.05.33), da Senhora Dra. Q… (sessão de 13.05.2013 – T_00.17.11) e do Senhor S… (sessão de 12.06.2013 – T_00.10.14);
II.Deveria também ter sido dado como provado o facto não provado 6. com base nos depoimentos do Senhor Desembargador N… (sessão de 10.04.2013 – T_00.58.38), do Senhor Dr. T… (sessão de 13.05.2013 – T_00.29.23) e do Senhor Dr. U… (sessão de 13.05.2013 –T.00.25.57);
III.Ainda e salvo melhor opinião, a douta recorrida incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto não provada 7., na medida em que a mesma deveria ter sido dada como provada com base no depoimento de parte do Recorrido (sessão de 10.04.2013 – T_01.01.06) e no depoimento do Senhor Desembargador N… (sessão de 10.04.2013 – T_00.58.38);
IV.A douta sentença recorrida considerou não provado o facto 9., não motivando a referida decisão, e por isso, em nosso entendimento, incorreu no vício de falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64º, nºs 1, alínea b), e 4, do CPC;
V.Além do mais, igualmente em nosso entendimento, tal facto deveria ter sido dado como provado com base no depoimento do Senhor Desembargador N… (sessão de 10.04.2013 – T_00.58.38);
VI.Os factos não provados 11. e 12. deveriam ter sido dados como provados com base no depoimento de parte do Recorrido (sessão de 10.04.2013 – T_01.01.06) e com base no depoimento da Senhora Dra. V… (sessão de 13.05.2014 – T_00.12.09);
VII.O facto não provado 14. deveria ter sido dado como provado com base nas mesmas provas elencadas no facto não provado 3. e com base no depoimento de parte do Recorrido (sessão de 10.04.2013 – T_01.01.06);
VIII.A douta sentença recorrida incorre ainda em erro de julgamento quanto à questão da divulgação de informações e/ou opiniões erradas ou descontextualizadas junto dos órgãos de comunicação social, que deram origem aos comentários que versaram sobre o teor da sentença proferida pela Autora porque, tendo em conta que os factos não provados 3., 6., 7. e 14. deveriam ter sido dados como provados, a intenção de manipulação do Recorrido permitiria concluir que a publicação de expressões descontextualizadas, sem rigor noticioso foi de sua responsabilidade, ainda que, aos jornalistas caiba a confirmação das notícias que publicam;
IX.Incorre, ainda, em erro de julgamento ao considerar que “nas afirmações que constam dos factos provados números 6. e 10. de que estamos a tratar, dirige a sua crítica às expressões constantes da sentença, mas não produz a afirmação (que seria falsa) de que a Autora as usou para manifestar juízos pessoais sobre os ciganos. O que, objetivamente, resulta daquelas posições do Réu, é o desagrado relativo à linguagem usada em passagens da decisão dirigidas, não só aos arguidos, mas também à etnia” tendo em conta que o facto não provado 6. deveria ter sido dado como provado;
X.Por fim, a douta sentença incorre em erro de julgamento ao considerar que “As subtis variações, vindas de destacar, entre a redação dos factos provados e não provados, traduzem, no entanto, uma diferença relevante na posição do Réu sobre o teor da sentença da Autora” porquanto ficou demonstrado, salvo o devido respeito, ad nauseam, que apenas o Recorrido e a Alta Comissária para as Minorias Étnicas (tendo esta última retirado tais considerações logo após leitura da sentença) consideraram aquelas expressões ofensivas da comunidade cigana;
XI.Por outro lado, uma afirmação dessa natureza, à comunicação social, só podia ter o desfecho que teve, como o Recorrido muito bem sabia, e tinha intenção que acontecesse, porquanto, já o dissemos, o Recorrido admitiu saber como funcionava a imprensa;
XII.Não poderá, por isso, em nosso entendimento, ser utilizada uma subtileza para justificar o entendimento distinto, porquanto, tal subtileza foi habilidosamente utilizada pelo Recorrido para alcançar o seu desiderato – denegrir a honra e consideração da Recorrente, o que veio efetivamente a suceder.
Termos em que ao presente recurso deve ser dado provimento, com as consequências legais, com o que V. Ex.cias., Senhores Desembargadores, farão Justiça!“

Contra-alegando (sem conclusões), o réu respondeu que tal recurso, seja quanto à matéria de facto, seja quanto à de direito, deve improceder, discutindo e refutando as razões pela autora invocadas para o fundamentar.

Entretanto o réu apelante juntou aos autos uma Resposta a Consulta.[1]
Ambos os recursos (principal e subordinado) foram admitidos por despacho de 17-11-2014 (fls. 2125) como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.
II. QUESTÕES A RESOLVER
É nas conclusões que, sinteticamente, deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade e é através delas que, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, 639º, nºs 1 e 2, 640º, 659º e 663º, nº 2, do CPC).

Ao peticionar, no recurso, a alteração ou anulação da decisão, seja a proferida sobre a matéria de facto seja a proferida sobre a matéria de direito, o recorrente tem o ónus genérico de indicar, na síntese conclusiva exigida pelo artº 639º, nº 1, os fundamentos de qualquer desses pedidos.[2]

Além disso, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto (artº 640º), deve também sintetizar-se, nas conclusões, pelo menos, a especificação dos concretos pontos questionados e a decisão que devia sobre eles ter sido ser proferida, na medida em que delimitam o objecto do respectivo recurso.[3]

Versando ele sobre a matéria de direito, nas conclusões devem ainda ser feitas as indicações previstas no nº 2, do artº 639º.[4]

No caso, sem prejuízo de alguma delas ficar prejudicada pela solução antes dada a outras, as questões colocadas (que se não confundem com argumentos, razões ou motivos aduzidos pelas partes[5]), são:

Recurso do réu

Matéria de facto

-Devem considerar-se como não escritos os factos provados nºs 15, 16, 43 e 44 (conclusões 1ª, 2ª e 32ª);
-A sentença é nula, por vários motivos, à luz do artº 615º, nº 1, alínea c) CPC (conclusões 3ª a 7ª);
-Devem ser julgados não provados os factos nºs 43 e 44 (conclusão 10ª);

Matéria de direito

-Legitimidade da actuação do réu pelo exercício do mandato forense e seus efeitos directos na esfera jurídica dos mandantes e pela imunidade constitucional – artºs 1178º e 258º, do CC, e artº 208º, da CRP (conclusões 21ª e 22ª);
-A eventual responsabilidade do réu só poderia ter sido apreciada no processo penal em causa, à luz da litigância de má fé e sancionada pela Ordem dos Advogados em processo disciplinar – artºs 542º e 545º, do CPC (conclusão 23ª);
-Não o tendo sido, há caso julgado material que fez precludir a possibilidade de o ser neste, excepção de conhecimento oficioso (conclusões 24ª e 25ª e 32ª);
-Não estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a negligência grosseira, tendo sido violado o disposto no artº 483º, CC (conclusões 26ª a 28ª e 31ª);
-É desadequado, excessivo e violador dos artºs 494º e 496º, CC, o montante indemnizatório de 16.000€ (conclusões 29ª e 32ª);
-Há culpa da autora na produção do dano que, conforme artº 570º, do CC, deve implicar redução ou exclusão da indemnização (conclusões 30ª e 32ª).

Recurso da autora

Da decisão da matéria de facto

-Nulidade da sentença por falta de fundamentação da decisão que julgou não provado o facto nº 9 (conclusão IV);
-Alteração para provados dos factos nºs 3, 6, 7, 9, 11, 12 e 14, julgados não provados (conclusões I a III e V a VII);

Da matéria de direito

-Se, quanto a parte da conduta do réu julgada não ilícita, há erro de julgamento e, por via da alteração das respostas aos factos 3, 6, 7 e 14, a acção deve também quanto a ela ser julgada procedente (conclusões VIII a XII);
-Se, correspondentemente, deve ser alterada a indemnização e nessa parcela também ser condenado o réu (epílogo das conclusões).

III. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

A) Modificação da decisão de facto

Havendo matéria julgada como de facto e inserida no respectivo elenco mas que seja de direito ou conclusiva e, por isso, deva eliminar-se ou considerar-se não escrita, estar-se-á ante uma espécie de modificação da decisão respectiva.

Além disso, nos termos do nº 1, do artº 662º, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Pode também aquela alterar-se por via da impugnação a deduzir nos termos estritos e rigorosos exigidos no artº 640º.

A1) Recurso do réu

Matéria conclusiva ou de direito

Dispunha o nº 4, do artº 646º, do anterior CPC, que têm-se por não escritas, além do mais, as respostas dadas pelo tribunal sobre questões de direito.

Embora aí não contemplados, considerava-se que ao mesmo regime, aplicável por analogia, estavam sujeitos os factos conclusivos, uma vez que só factos concretos podem ser objecto de prova e não os que encerrem juízos de valor e respeitem ao thema decidendum.[6]

O Código de Processo Civil actual não contém norma semelhante, tanto mais que a decisão de facto passou a integrar a própria sentença final.

Todavia, tem-se entendido, e deve a nosso ver continuar a entender-se, que o princípio subjacente – de que apenas factos são objecto de prova e da respectiva decisão – continua válido e, portanto, em vigor a mesma solução para as patologias respectivas, de arreigada tradição jurisprudencial e mantida implícita nos nºs 3 a 5, do artº 607º, do novo Código, ao referir-se, na parte da sentença respectiva, apenas a factos.[7]

Refere Abrantes Geraldes, acerca da não reprodução no actual Código da referida norma do anterior e no quadro da sentença agora unitária, que a “opção não significa obviamente que seja admissível doravante a assimilação entre julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da decisão de facto”.[8]

Como é sabido, no rigor dos princípios, compreendem-se no conceito factos (maxime os controvertidos, sujeitos a prova e decisão), os acontecimentos simples e concretos da vida real, sejam estes do mundo externo aos indivíduos e objectivamente por estes perceptíveis e narráveis, sejam os do seu foro interno (psíquico e emocional) só indirectamente captáveis.

Não é fácil, em função das situações concretas e do relevo jurídico das respectivas circunstâncias, adoptar-se um critério fixo e definido de distinção entre factos, conclusões e matéria de direito que, operando em julgamento, norteie seguramente o juiz.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 13-11-2007[9], “…o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infracção desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (…), não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”

Por isso, concluiu-se naquele que, “mesmo que seja conclusiva, uma resposta a dado ponto da base instrutória poderá não ser excluída com fundamento no artº 646º, nº 4, do CPC, se não encerrar um juízo sobre uma questão jurídica e se a sua interpretação não implicar o recurso a qualquer regra de direito”.

Assim, como refere o Acórdão da Relação de Coimbra, de 11-12-2012[10], “…tem-se entendido hodiernamente, quer na doutrina quer na jurisprudência, que tanto expressões mais ou menos de índole conclusiva como aquelas com um determinado sentido basilarmente de cariz técnico-jurídico, podem ser utilizadas na formulação dos quesitos e serem respondidos, desde que utilizadas comummente pelas pessoas sem preparação jurídica e cujo sentido elas intelijam ”.

a) Neste âmbito, alega o réu que a matéria constante do facto provado nº 15 é conclusiva e deve ser considerada não escrita.

É o seguinte o seu teor: “As notícias referidas nos factos provados números 4, 5, 7 e 9 assentavam em excertos da sentença descontextualizados.”

Embora tal redacção assim constasse do quesito nº 23 da BI, alega agora o réu que, como se colhe da fundamentação da decisão da matéria de facto, tal formulação resulta de determinadas premissas não constantes dos factos provados, ao passo que a autora entende que não se trata de “juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”[11] mas de matéria de facto, como aquela demonstra.

Ora, não há dúvida que, sendo parte da sentença, os excertos dela citados nas notícias ou em que estas assentavam, não só se apresentam objectivamente como parcelas fora do respectivo texto a que pertencem, como substancialmente, não estão em linha com o sentido geral que só do seu todo resulta e para cuja expressão foi elaborado, aliás em obediência a princípios e regras legais, por isso não sendo capazes de, por si só e isoladamente, o revelar em pleno.

Sendo certo que a descontextualização afirmada na resposta resulta da comparação entre os fragmentos noticiados e o teor da sentença, não há qualquer dúvida, julgamos, que tal constatação se situa no plano da realidade apreensível e compreensível pelos sentidos e pelo intelecto das pessoas, mesmo sem preparação jurídica, e, portanto, no dos factos. Qualquer uma, diante de tais excertos, perceberia a desconformidade entre o seu significado enquanto texto isolado e o que exprimiam inseridos na estrutura e conteúdo do todo (contexto) a que estavam funcionalmente adstritos e que, sem a publicitação ou explicação deste, eles aparecem fatalmente desvirtuados.

Como bem diz o tribunal recorrido, é clara a descontextualização “na medida em que foram retirados do conjunto mais vasto de partes da sentença onde estão inscritos, e não foram acompanhados da necessária informação sobre se estávamos perante factos provados, descrição de declarações produzidas por testemunhas no decurso do julgamento, considerações feitas a partir dos factos provados para motivar as medidas da pena, ou de meras opiniões da Mm.ª Juíza sobre questões sociais.”

Não se verificando violação do nº 3 do artº 607º, do CPC, improcede, assim, a conclusão 1ª (e parte respectiva da 32ª).

b) Também quanto ao facto provado nº 16 reclama o apelante que ele é conclusivo, embora sem justificar em que se baseia, já que ao vício de nulidade que também lhe pretende assacar e a apreciar de seguida ele subsume a vaguidade e imprecisão que concomitantemente lhe aponta.

Em tal item consta que “Estes excertos resultam da percepção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos de que tomou conhecimento no processo”.

Ora, à luz do quadro atrás exposto, constata-se que a afirmação é precisa, concreta e, portanto, de facto. Aponta um resultado (os excertos), o processo por que foi obtido (a percepção da julgadora) e a sua fonte (depoimentos, relatórios e documentos).

Não se descortinando, também aí, violação do nº 3 do artº 607º, do CPC improcede, igualmente, a conclusão 2ª (e parte respectiva da 32ª).

Nulidades

c) Ao mesmo facto (nº 16) aponta o réu o vício de ambiguidade e obscuridade, por não se referir (nos demais e na fundamentação da respectiva decisão) quais os documentos e depoimentos que geraram tal percepção pela autora, o que, alegadamente, torna a sentença ininteligível e, nessa medida, nula, nos termos do artº 615º, nº 1, alínea c), do CPC.

Como é sabido, no regime adjectivo anterior, a decisão da matéria de facto constituía o epílogo da fase de julgamento e surgia, no processo, formalmente distinta e temporalmente separada da sentença tout court (artºs 653º e 659º).

Enquanto que para aquela se previam, em recurso, casos de modificação, nomeadamente por via da impugnação (artºs 712º e 685º-B) e, neste âmbito, a possibilidade de anulação quando reputada “deficiente, obscura ou contraditória” em relação a “pontos determinados da matéria de facto” (nº 4 do artº 712º), para esta, em capítulo próprio relativo aos seus vícios e reforma, estabelecia-se, por um lado, a possibilidade de o tribunal que a tivesse proferido esclarecer, a requerimento de qualquer das partes, alguma obscuridade ou ambiguidade da decisão ou dos seus fundamentos (alínea a), do nº 1, do artº 669º), e, por outro, tipificavam-se causas de nulidade (artº 668º) e, entre estas, a oposição entre os fundamentos e a decisão (alínea c), do nº 1).

No Código actual, aplicável, a correspondente alínea do artº 615º, nº 1, passou a abranger estes vícios e assim, segundo tal norma, é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

A decisão da matéria de facto e a decisão das questões antes, pois, reservadas à sentença propriamente dita concentram-se agora nesta, constituindo uma só peça processual, de acordo com o artº 607º, e os vícios de obscuridade ou ambiguidade deixaram de constituir fundamento autónomo de aclaração, passando a constituir nulidade sentença, a arguir perante o tribunal superior ou perante o que a proferiu, conforme ela admita ou não recurso ordinário (artºs 616º, 617º e 615º, nº 4).

Em face do novo quadro, questiona-se se da nulidade fundada no vício de ambiguidade ou de obscuridade está excluída a parte da sentença relativa à decisão da matéria de facto (nesta hipótese e quanto a esta só atendível no quadro do artº 662º, maxime da alínea c), do nº 2, correspondente ao citado nº 4 do anterior artº 712º), ou se a referida invalidade também abrange aquela e, portanto, se vícios de tal jaez não contemplados naquele específico regime, podem ser arguidos quanto àquela parte e devem como tal ser conhecidos.

Nada distinguindo a norma, dela parece poder colher-se a ideia de que, ao referir “alguma” (pronome indefinido), quis-se atender a “qualquer” e, assim, que, no caso de se tratar realmente de ambiguidade ou de obscuridade geradora de nulidade da sentença, tal vício tanto pode residir nos fundamentos de facto como nos de direito ou mesmo na respectiva decisão de uma e outra matéria.

A alteração legislativa terá, assim, pretendido suavizar o entendimento tradicional (mais rígido e apertado) sobre o vício da oposição entre os fundamentos e a decisão.

Com efeito, na esteira de Alberto dos Reis[12], predominava o entendimento de que esta nulidade apenas ocorria quando a construção da sentença era viciosa, isto é, quando “os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto”, distinguindo-se no ensejo entre a oposição geradora da nulidade e o mero erro de julgamento e sustentando-se que a circunstância de eventualmente a decisão radicar numa construção jurídica errónea não gerava tal vício, apenas a necessidade de alterar a decisão em conformidade com a construção jurídica correcta, sendo necessário, para se estar perante ele, que os fundamentos apresentados só pudessem conduzir, necessariamente, isto é, de acordo com um raciocínio lógico-jurídico inquestionável, a uma única decisão e a decisão proferida fosse diferente dessa[13].

Ficavam, assim, de fora do âmbito da nulidade situações em que, não se podendo afirmar a existência propriamente de oposição entre os fundamentos e a decisão, contudo denotavam a existência, numa ou noutra, de obscuridades ou ambiguidades, mas insusceptíveis de correcção pelo tribunal de recurso, designadamente nos casos em que o processo não fornecesse os elementos necessários para o efeito – limitação ou dificuldade que, assim, se terá querido resolver.

Partindo deste pressuposto, importa ter, então, em conta que a obscuridade é a imperfeição da sentença que, por equívoca, falta de clareza e dificuldade de se perceber redunda em ininteligibilidade (incongruência, falta de assertividade), não permitindo penetrar, retirar dela e compreender como certo, preciso, evidente e unívoco quanto a qualquer dos seus segmentos, o exacto sentido; e que a ambiguidade ocorre quando à decisão, em certo passo, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos ou leituras, não sendo possível perceber-se, a partir dela, com certeza e sem dúvidas, qual o pretendido, o que deve ser considerado.[14]

Ora, perante o exposto, é evidente que o facto provado nº 16 não contém qualquer das referidas falhas, de resto não objectivamente apontadas pelo apelante que parece invocar a sua ininteligibilidade mais porque não suficientemente convencido da decisão que lhe subjaz e da suficiência dos fundamentos invocados para ela, do que por se sentir, em razão do seu teor, incapacitado ou limitado para, perfeita e plenamente, a compreender.

Ao afirmar-se como verdade que os excertos descontextualizados em que assentavam as notícias resultaram da percepção colhida pela autora nos depoimentos, relatórios e documentos de que tomou conhecimento no processo, é absolutamente claro, unívoco e, por isso, inteligível, o sentido normal e razoavelmente perceptível da proposição, designadamente para os seus imediatos destinatários (as partes).

Sendo certo que o detalhe dos depoimentos, relatórios e documentos não integravam os quesitos respectivos (24 e 85), pressupunha-se que, enquanto premissas probatórias, eram os existentes no processo e mencionados na sentença (onde efectivamente se apontam). Como tal se lhes refere expressamente a fundamentação expendida pelo tribunal a quo, para a qual, aliás, remete.

Com este fundamento, pois, não se verifica a preconizada nulidade da sentença, improcedendo a conclusão 3ª.[15]

d) Também alega o apelante que, ao abrigo da mesma norma – artº 615º, nº 1, alínea c) – a sentença é ambígua, obscura e ininteligível, logo nula (conclusão 7ª), porquanto, segundo vazou nas “conclusões” 4ª a 6ª – as quais verdadeiramente não o são, na medida em que se limitam a reproduzir uma longa parcela do texto das alegações –, a sentença recorrida não esclarece quais os concretos meios de prova relativos à personalidade e modo de vida dos arguidos em que se baseou a “percepção” da autora e de que resultaram os excertos da sentença penal por ela proferida e que foram publicados e dos quais, nos pontos de facto provados nºs 43 e 44, consta ter ele conhecimento.

Estes dois pontos referem:

“43. O R. tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas (artigo 78º da base instrutória);
44. E que as expressões da sentença que foram objeto das notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam na perceção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo (artigo 79º da base instrutória)”.

A específica fundamentação quanto a eles aduzida pelo tribunal a quo refere (primeiro parágrafo do respectivo ponto III):

“Os factos provados números 43. e 44. - sobre o grau de conhecimento que o Réu tinha dos fundamentos da sentença e de que a Autora não proferiu a título pessoal, nem por referência à comunidade cigana em geral, as expressões noticiadas - entroncam nas explicações do ponto II. antecedente, conjugadas com a circunstância de o Réu ter intervindo como advogado na defesa durante o julgamento dos arguidos daquele processo, estando assim a par de toda a prova produzida no decurso do julgamento e do teor da sentença.”

Ora, não se vê que, considerando o acima referido sobre tais conceitos, naqueles dois pontos de facto e nesta fundamentação, haja qualquer obscuridade e/ou ambiguidade.

São aqueles nitidamente perceptíveis, sem quaisquer dúvidas quanto ao respectivo sentido, aliás inequívoco; quanto à afirmação de que o réu tinha conhecimento de que, na sentença, a autora explicitou e fundamentou a razão por que, acerca da personalidade e modo de vida dos arguidos, formulou nela certas declarações; e, bem assim, quanto à afirmação de que o mesmo tinha conhecimento que os extractos dela que foram objecto das notícias assentavam na percepção por si colhida nos citados meios de prova.

São igualmente bem captáveis e compreensíveis e de sentido unívoco os referidos fundamentos – cujo mérito obviamente ora e aqui não está em apreço –, quer quanto à presença e intervenção do réu na audiência de julgamento e consequente assimilação e domínio por ele de toda a prova aí produzida e do teor da respectiva sentença como circunstâncias justificativas da tomada de conhecimento, quer quanto a tudo quanto explanado no citado ponto II, para que se remete, explicativo do objecto conhecido.

Com efeito, no referido ponto II, o tribunal recorrido explica os motivos por que se convenceu, com clareza e firmeza, que os extractos da sentença que foram recortados desta e destacados nas notícias ou que as basearam, eram descontextualizados e – contra a falsa e negativa ideia propalada na opinião pública acerca da pessoa e conduta da respectiva Juiz – resultavam da percepção por esta colhida a partir dos meios de prova existentes nos autos, sem embargo de nem sempre os ter reproduzido qua tale ou ipsis verbis ou apesar de algumas discrepâncias sobrantes em relação a cada um em concreto – que o apelante enfatiza. Culminando tal explicação, concluiu até que “não estamos perante opiniões pessoais da Autora sobre os ciganos como grupo social, mas de conclusões suas emergentes da factualidade provada e, manifestamente, restritas às pessoas dos arguidos”.

Portanto, de tudo retirando e afirmando a sua convicção de que o réu, enquanto advogado da causa, participante do processo e da audiência e, por isso, conhecedor de toda a prova, da sentença e do iter nesta seguido, conhecia a origem, fundamento, a razão de ser e o sentido daquilo que nesta se dizia, bem como os referidos extractos, não se vê onde tenha o tribunal recorrido dado azo a qualquer obscuridade ou ambiguidade que vicie a decisão e a torne nula, por mais questões e discordâncias que ela compreensivelmente sempre há-de suscitar-lhe.

Improcede, assim, a conclusão 7ª.

e) Neste contexto, ou seja, no capítulo B1 das alegações relativo à matéria de facto mas sem revérbero no correspondente C1 inerente às conclusões, o réu apelante afirma en passant que não entende a referência no ponto 44 dos factos provados aos extractos da sentença objecto das notícias aludidas nos pontos 4, 5, 7 e 9, “uma vez que não foi condenado nos presentes autos em virtude do conteúdo de tais notícias mas sim do teor de peças processuais que elaborou, enquanto advogado, no processo referido em 21” (a queixa crime e a acusação particular contra a autora).

Nada, perante isto, haveria a conhecer e a decidir.

Sucede que, mais adiante, no capítulo B2 das suas alegações, respeitante à matéria de direito, o apelante retomou o tema e, desta feita, colocando-o como questão nas conclusões 11ª e 12ª, já incluídas no capítulo C2 das de direito.

Para o efeito, refere que existe contradição entre os fundamentos de facto (na medida em que do ponto 44 se lhe atribui responsabilidade pelo teor das notícias referidas nos factos 4, 5, 7 e 9) e os fundamentos de direito (uma vez que nestes baseia a sua responsabilidade no teor da queixa crime e da acusação particular no processo penal respectivo).

Defende, pois, que se trata de mais uma nulidade da sentença, prevista na alínea c), do nº 1, do artº 615º.

Vejamos, pois.

O ponto 44 – onde se dá como provado que o réu tinha conhecimento de que as expressões ou extractos da sentença objecto das notícias referidas nos pontos 4, 5, 7 e 9, que as apresentaram em forma descontextualizada, assentavam na percepção pela autora colhida nos meios de prova existentes no processo – como todos os demais, respeita à causa de pedir abrangente de toda a conduta que a autora imputa ao réu (alegadamente manifestada ora na promoção das notícias, ora na apresentação da queixa-crime e dedução de acusação particular).

Como resulta claro da fundamentação de direito, o tribunal recorrido, ao subsumir juridicamente a conduta apurada, apenas considerou ilícita a relativa à apresentação da queixa e dedução da acusação, considerando que só por esta ele é subjectivamente responsável, para tal relevando o conhecimento referido nos factos 43 e 44 sobre a actuação da autora na elaboração da sentença penal.

A alusão no facto 44 às expressões mais polémicas constantes da sentença objecto das notícias dos pontos 4, 5, 7 e 9 e ao conhecimento pelo réu de que elas assentavam na percepção da autora fundada nos meios de prova, constitui um facto. Por si, obviamente, não estatui qualquer responsabilização, apreciável apenas ao nível da subsunção jurídica. Tendo o tribunal a quo concluído, ao proceder a esta, que o réu apenas é civilmente responsável pela apresentação da queixa e pela dedução da acusação, nem na aparência se vislumbra qualquer contradição entre aquele facto e esta decisão, subsumível à previsão do artigo 615º, nº 1, alínea c).

Improcedem as conclusões respectivas – 11ª e 12ª.

f) Algures, nas alegações mas jamais nas conclusões, refere o réu apelante que os factos provados nºs 43 e 44 deveriam ter sido “julgados não escritos”.

Não nos vindo colocada regularmente tal questão, sempre, contudo, se diga, à luz do que antes já se expôs sobre as condições em que aquele efeito pode verificar-se, que nem nós as vemos nem ele as aponta.

g) De seguida, na conclusão 10ª, impugna o apelante a matéria de facto provada nos pontos 43 e 44, defendendo que deveria ser julgada não provada.

Ora, os pressupostos e os requisitos do recurso de decisão proferida sobre a matéria de facto, que pode conter vícios geradores de anulação[16] ou erros de julgamento[17], decorrem, em geral, dos artigos 637º, nº 2, e 639º, nº 1, e, em especial, dos artºs 640º e 662º, do CPC, e podem assim esquematizar-se:

-especificação ou individualização concreta dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois não são admissíveis recursos genéricos de tal matéria[18];
-especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspectiva dele, impunham decisão diversa de cada um de tais pontos e fundamentam a sua alteração;
-no caso de serem invocados meios probatórios que tenham sido gravados, indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso;
-sem prejuízo da possibilidade de o recorrente proceder à transcrição dos excertos que a parte considere relevantes;
-especificação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida (alínea c), do nº 1, do artº 640º).[19]

Claro que, por mais clamorosa que seja, uma simples manifestação de discordância em relação à decisão proferida, ainda que formalmente acompanhada das especificações e indicações requeridas e rematada com o concreto pedido, pode não bastar.

A alegação e, em particular, as conclusões devem identificar e localizar com evidência, clareza e de forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal laborou ou a invalidade que cometeu, justificativos da impugnação e alegadamente causadores da pretensão recursiva, e explicitar[20] os seus concretos motivos ou fundamentos integrantes dos preconizados vícios[21], de modo a que o tribunal ad quem possa reapreciar, como é sua função, o percurso decisório trilhado (o juízo feito) pelo tribunal a quo, avaliar a razão do inconformismo manifestado e o mérito da alteração pretendida pelo recorrente e decidir sobre esta.[22]

Em face destes parâmetros, vejamos se, em que termos e com que merecimento deve ser apreciado o recurso, nesta parte.

O recorrente especifica os dois pontos que pretende questionar. Indica a decisão que sobre eles pretende seja dada. Concretiza os meios de prova constantes do processo em que se baseia e que, na sua perspectiva, fundamentam a alteração (a sentença penal, os depoimentos transcritos obtidos e os relatórios sociais juntos no respectivo processo) e aponta onde está e em que consiste (a seu ver) o erro de julgamento em que o tribunal recorrido terá laborado.

Verificam-se, pois, os pressupostos exigidos.

Ora, o ponto 43 advém do quesito 78 da BI onde se perguntava se “O R. tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, de forma coerente cabal, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e modo de vida dos arguidos que nela são formulados”, tendo-lhe o tribunal respondido:

“43. O R. tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas (artigo 78º da base instrutória).”

Por sua vez, o ponto 44 resulta do 79 da BI em que era feita a pergunta: “E [tinha conhecimento] que estas notícias assentavam em expressões proferidas por outros intervenientes no processo e não eram da autoria da A.?”, a que foi dada a resposta:

“44. E [tinha conhecimento] que as expressões da sentença que foram objeto das notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam na perceção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo (artigo 79º da base instrutória)”.

Estava em causa, portanto, no essencial, apurar se, ao actuar como (alegadamente, segundo a demandante; comprovadamente, pelo menos em parte, segundo o tribunal recorrido) actuou, o réu agiu com a consciência de que, apesar do que em contrário as notícias em causa transmitiam ou induziam, os extractos nelas utilizados se fundamentavam na prova produzida e desta emergiam através da percepção colhida pela autora enquanto juiza, e que, na própria sentença, aquilo que respeitava à personalidade e modo de vida dos arguidos, estava nela explicitado e fundamentado (e, portanto, sabia que não foram exprimidas a título pessoal e com base em pressuposta convicção própria relativa, em geral, aos cidadãos de etnia cigana e ao seu modus vivendi).

Ora, o tribunal recorrido, quanto a estes dois pontos, mencionou na fundamentação que (a convicção sobre) eles “entroncam nas explicações do ponto II. antecedente, conjugadas com a circunstância de o Réu ter intervindo como advogado na defesa durante o julgamento dos arguidos daquele processo, estando assim a par de toda a prova produzida no decurso do julgamento e do teor da sentença.”

Note-se, antes de mais, que o réu (apesar de, sem sucesso, ter pretendido que os pontos 15 e 16 correspondiam a matéria conclusiva e deviam ser considerados não escritos e, além disso, viciados por ambiguidade ou obscuridade), não impugnou a decisão de facto a ambos respeitante: as notícias assentavam em extractos da sentença descontextualizados e estes resultavam da percepção da autora colhida dos meios de prova.

E, não tendo impugnado tais factos, logo perde relevo, a propósito da impugnação dos nºs 43 e 44, o argumento de que “não é razoável considerar-se que os excertos em causa resultam da percepção colhida pela Autora durante a prova produzida em julgamento”.

Tendo, pois, o réu, na qualidade de advogado, com muitos anos de experiência nos tribunais e na matéria (ele próprio o refere), enquanto mandatário e defensor dos arguidos, participado no processo e intervindo na audiência em que a prova produzida foi toda examinada e discutida, presenciado a leitura da sentença e desta sido imediatamente notificado com entrega (que não põe em causa) da respectiva cópia; actuando em tudo com o empenho de que estes autos dão conta e, assim, com plena e elevada capacidade de perceber e compreender tudo o que nela se passou e na sentença se escreveu e, portanto, de discernir e distinguir o que nesta, como é normal, estava fundamentadamente exarado e era apenas resultado do acto de apreciar, julgar e decidir – bem sabendo que sujeito a possíveis falhas e mesmo erros justificativos de discordância e de recurso pelos meios próprios em busca do seu remedeio – daquilo que seria um claro desvio do acto e da função da autora impulsionado por motivos marginais ao processo e não direccionado apenas aos arguidos – não há dúvida que os fundamentos a tal propósito invocados pelo tribunal a quo para sustentar o conhecimento dele sobre o que na sentença constava e sobre a origem (percepção colhida nos meios de prova) dos extractos noticiados, são certos, seguros e de corroborar, na medida em que convincentes.

Tanto assim que a própria D… – que no dia imediato à sentença difundiu impetuosamente a notícia titulada por “Juiza de Felgueiras diz que são marginais e traiçoeiros” e que “teceu considerações não só em relação aos cinco acusados da agressão aos agentes da GNR de Felgueiras, mas também generalizou a toda a comunidade cigana” – se apressou, outro dia depois, a comunicar que “anulava” tal notícia “por o seu conteúdo não corresponder inteiramente aos factos narrados no acórdão” (facto 17).

A própria Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural, que no próprio dia em que foi lançada a notícia de que teve conhecimento através da própria D… (fls. 1463 e 1797) se manifestara “absolutamente perplexa” na medida em que, face à mesma, julgara atingida a comunidade cigana em geral e anunciou ponderar a hipótese de se queixar ao Conselho Superior da Magistratura (facto 14), não hesitou em, rapidamente, e, como ela disse, após ler a sentença, recuar naquela intenção e reconhecer, com firmeza e clareza, que “a notícia inicialmente divulgada induz em erro, não se confirmando, felizmente, as afirmações de teor pejorativo em relação à comunidade cigana”, pois, segundo se narra, por exemplo, na notícia de fls. 113, “constatou que a magistrada citava testemunhas que falaram no decorrer do processo e que, nas suas afirmações, se dirigia apenas aos arguidos, não incorrendo, por isso, em qualquer insulto generalizado” (fls. 117).

Outras personalidades (como, por exemplo, se mostra fls. 131) manifestaram compreender o teor da sentença relativo aos arguidos e distingui-lo da imputação sugerida pelas notícias e respectiva desconformidade, atribuindo esta, aliás, ao réu (“o advogado de defesa entendeu que o seu alcance … reflectia uma visão xenófoba sobre toda a comunidade cigana” (fls. 131); “as expressões polémicas apontadas pelo advogado dos réus, C…, como da autoria da magistrada” (fls. 117).

Se, portanto, tais entidades e pessoas, de fora do processo e do ambiente judiciário, perceberam e revelaram perfeito e pleno conhecimento dos factos em causa, sua origem e contexto, é evidente que o réu, melhor que todos, os captou, interiorizou e dominou como, em relação a qualquer advogado, é de presumir em tais circunstâncias, nada mostrando que assim não tenha acontecido com ele, tanto mais que, para comentar, como comentou, e ainda que a tal só tivesse sido instado após a divulgação das notícias, como sugere, teve necessariamente de reflectir sobre estas, sua razão e efeitos, por cotejo com aquilo que vivenciou e sabia ter acontecido e constar do teor da sentença.

Não tem, pois, qualquer plausibilidade, muito menos fundamento, nem abonaria a postura clarividente com que, de certeza, se postou ante o caso, o seu protesto de que “Ao contrário do que se refere em 43. e 44. dos factos provados, o R. não tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas (artigo 78º da base instrutória), nem que as expressões da sentença que foram objecto das notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam na percepção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo (artigo 79º da base instrutória). Tal como consta da contestação, o Réu sempre negou esses factos e os mesmos, ao contrário do que é dito na fundamentação da decisão da matéria de facto, não resultam das explicações do ponto II., nem da circunstância de o Réu ter intervindo, como advogado, na defesa durante o julgamento dos arguidos daquele processo (aliás, esta intervenção permitiu-lhe tirar a conclusão contrária, razão pela qual aceitou o patrocínio dos participantes) e nem do teor da sentença.”

O ponto II invocado pelo tribunal recorrido e acerca desta matéria questionado pelo recorrente, refere-se, principalmente, à fundamentação da convicção que esteve na origem da decisão de dar como provados os factos 15 e 16, não questionados aqui, como já acima se assinalou.

Impugnando o réu o conhecimento de tais factos (de que os excertos das notícias eram descontextualizados e resultavam da percepção da autora sobre os meios de prova), vejamos se e em que medida, a partir dos fundamentos que o tribunal aduziu para os dar como provados, também se retira a prova de que o réu deles tomou consciência.

Diz o tribunal a tal respeito que:

“O conjunto constituído pelos factos provados números 15. e 16. e não provado número 13., resultou da ponderação que o tribunal fez da leitura integral da sentença proferida pela Autora – constante de fls. 37 e ss. dos autos -, no confronto com a transcrição escrita dos testemunhos prestados na audiência de julgamento do processo n.º 21/06.0GAFLG do 2º Juízo de Felgueiras (também registados em áudio no CD junto aos autos na sequência de despacho proferido) e do relatório social para determinação da sanção a aplicar ao arguido G… (cuja cópia se encontra junta a fls. 616 e ss.).
Que os excertos noticiados, descritos nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., se encontravam descontextualizados, afigura-se claro, na medida em que:
-foram retirados do conjunto mais vasto de partes da sentença onde estão inscritos, e não foram acompanhados da necessária informação sobre se estávamos perante factos provados, descrição de declarações produzidas por testemunhas no decurso do julgamento, considerações feitas a partir dos factos provados para motivar as medidas da pena, ou de meras opiniões da Mm.ª Juíza sobre questões sociais;
-as expressões noticiadas “pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes”, dirigiam-se aos arguidos julgados, e não às suas etnias;
-outra parte das expressões, como “as mulheres e as crianças guincharam selvaticamente”, reportavam-se às pessoas que, embora na maioria ciganos, se encontravam no local onde ocorreram os factos e que tomaram posição contra a presença da autoridade policial que ali foi chamada, mas não aos ciganos como etnia ou grupo social;
-a expressão “as condições habitacionais são fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene)”, para além de estar truncada na sua parte final - que contém ainda “…, o que vem sido contrariado pela ação de acompanhamento da Segurança Social)” -, é retirada de um facto provado sobre as condições de vida do arguido G… que indicia claramente a sua fonte probatória – o relatório social elaborado pelo IRS.
Isto criou, num momento inicial, na opinião pública, a falsa ideia de que a Autora produziu tais afirmações em discurso direto e a título pessoal. […]
Afigura-se claro que os excertos noticiados resultam da perceção colhida pela Autora durante a prova produzida em julgamento, porque é a própria sentença que o revela, de forma expressa e no seu todo.
Não quer isto dizer que as testemunhas tenham usado as mesmas palavras que a Autora escolheu para descrever o que narraram em julgamento.
A exposição feita, em sentença, dos testemunhos e outros meios de prova produzidos no decurso do julgamento não é, nem deve ser, uma transcrição literal, constituindo uma súmula, resultante da perceção colhida pelo julgador a partir dos meios de prova.
Tratando-se de um resumo que resulta da perceção colhida pelo juiz em julgamento, não só o resultado escrito será diverso da linguagem própria de cada testemunha, como a síntese pode até, no limite, não traduzir do modo mais fiel algumas passagens da prova, por insuficiência/lapso de entendimento ou registo da mesma. A constatação legal desta realidade justifica a possibilidade de recurso tendo por objeto a reapreciação da prova produzida em julgamento.
No caso vertente, a Autora identifica claramente na sentença quem são as testemunhas a que se refere quando faz a súmula das suas declarações. A circunstância de partes do texto usadas não terem sido ditas por essas testemunhas (cfr. facto não provado número 13.), não permite duvidar que exprimam aquilo que a Autora efetivamente colheu e concluiu desses meios de prova. E ainda que se discordasse da perceção da Autora, isso não permitiria afirmar que exprimiu opiniões pessoais, quando é certo que está, de forma expressa, a descrever o que lhe pareceu ser o sentido de cada um dos testemunhos.
Também quando a Autora redige o facto provado número 29 (II) da sentença, no sentido de que “as condições habitacionais são fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene, o que vem sido contrariado pela ação de acompanhamento da Segurança Social)”, é percetível que não exprime um juízo de valor próprio, mas algo que se resulta da prova em que se baseou para o apuramento das condições pessoais dos arguidos, no que são especialmente relevantes do relatórios sociais para determinação da sanção. No caso, o relatório social para determinação de sanção referente ao arguido G…, elaborado pelo IRS no âmbito do processo n.º 21/06.0GAFLG do 2º Juízo de Felgueiras (junto a fls. 616 e ss. dos autos), refere, entre outras, coisas que Na educação dos filhos, a escolaridade vem sendo valorizada, bem como a higienização, para o que vem contribuído o acompanhamento da Segurança Social. (…) As condições habitacionais são exíguas, facto que é avaliado negativamente pelo próprio, percebendo-se contudo, que se prende não tanto com o espaço, mas com o estilo de vida da etnia cigana, que avalia como colidindo por vezes com as normas convencionadas na cultura dominante (sublinhados meus).
As questões da higiene do agregado (que segundo o relatório vem sendo valorizada com o contributo da Segurança Social) e da exiguidade das condições habitacionais devidas ao estilo de vida da etnia cigana, vêm tratadas no relatório. A Autora interpretou-o, associando um fenómeno ao outro. Pode, ou não, concordar-se com essa leitura, mas afigura-se evidente que colheu naquele relatório a convicção para o facto que deu como provado.
A referência aos arguidos, com exceção do W…, como “…pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes”, está feita numa parte da sentença reservada à descrição dos aspetos que os desfavorecem para efeito de cálculo da medida concreta da pena. Impunha-se à Autora, tendo presentes os factos provados na decisão, apontar-lhes os aspetos mais negativos.
Também aqui, não estamos perante opiniões pessoais da Autora sobre os ciganos como grupo social, mas de conclusões suas emergentes da factualidade provada e, manifestamente, restritas às pessoas dos arguidos.”

Contra isto, salienta o recorrente algumas discrepâncias.

Tal entende ser o caso quando na sentença se refere, em relação ao arguido G…, que (facto provado nº 29) “As condições habitacionais são fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene, o que vem sendo contrariado pela acção de acompanhamento da Segurança Social” (fls. 47 e 48) e (capítulo da escolha e medida concreta das penas), depois de se referir que “são grandes e intensíssimas as exigências de prevenção geral em matéria de crimes deste tipo” (resistência e coacção sobre agentes da GNR) e inexistência de atenuantes (salvo quanto a dois deles a falta de antecedentes criminais) que “Finalmente, à excepção do arguido W… são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem «pagam» desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando as suas acções em prol da ordem, do sossego e tranquilidade públicas”.

Ora, sem embargo do que o tribunal a quo ponderou a tal propósito e aqui se corrobora, aprofundemos e detalhemos excertos dos factos provados na sentença, para contextualizar o caso e a apreciação nela feita pela autora, assim demonstrando o questionado conhecimento do réu:

-quatro agentes da GNR deslocaram-se ao Bairro “a fim de pôr termo à festa organizada por um grupo de cidadãos de etnia cigana (cerca de 40 pessoas e identificar os transgressores, dado que o barulho (música em aparelhagens na rua e disparo de tiros com armas de fogo) estavam a assustar e a incomodar os restantes moradores do bairro” (1);
-os arguidos G… e J… reagiram e opuseram-se, conforme descrito no ponto seguinte (2);
-um agente da GNR abordara o arguido I… “por o mesmo revelar ascendente sobre os restante ciganos” (3);
-este arguido (pai daqueles) “acompanhado por muitas mulheres e crianças …formando uma multidão ululante que rodeavam, gritavam e insultavam os agentes, empurrando-os e batendo-lhes, abeirou-se da agente L…, empurrou-a e tentou subtrair-lhe/retirar-lhe a arma” (4);
-os agentes “foram obrigados a recuar e refugiarem-se no jipe” (5);
-“o arguido G… desferiu várias pancadas no jipe, causando várias amolgadelas e estragos” (6);
-“os agentes da GNR pediram reforço” (7);
-“por forma a evitar novos distúrbios entre os indivíduos de etnia cigana”, os agentes da GNR (então cerca de 30), vedaram a entrada no bairro; (8 e 9);
-o arguido W… desobedeceu e tentou forçar a passagem (10);
-em resultado do que atingiu corporalmente o agente X… (11);
-o arguido J… desferiu um pontapé num agente da GNR, causando-lhe lesões (12 e 13);
-o arguido Y…, ao ser detido e revistado, trazia consigo uma caçadeira de dois canos, uma pistola de alarme, um revólver calibre 7,65mmm e diversas munições, não manifestadas nem registadas e sem licença (14 e 23);
-“Todos os arguidos à excepção do arguido W…, são bem conhecidos dos agentes da GNR de Felgueiras por serem «clientes» do Posto, isto é, por ali se deslocarem em virtude de desacatos, desordens, e ilícitos de variada natureza perpetrados por eles ou por outros elementos do seu clã, maxime, por menores, sendo algumas dessas ocorrências do nosso conhecimento funcional, em processos-crime e tutelares” (25);
-“O arguido Y… antes de detido/preso preventivamente vivia com uma companheira e dois filhos menores … do Rendimento Social de Inserção no valor de 515 euros mensais. O arguido é socialmente mal visto por ser conotado com actividades ilícitas e pelo seu carácter agressivo, agravado pela ingestão excessiva de alcóol. Atenta a péssima imagem social do arguido não constituiu surpresa na comunidade envolvente e na própria família, não se perspectivando significativas alterações comportamentais por parte do arguido. Já sofreu três detenções/prisões preventivas – cfr. relatório social de fls. 557 que aqui se dá por reproduzido” (27);
-“O arguido J… vive com uma companheira, 3 filhos e um avó numa habitação social, vivendo do Rendimento Social de Inserção no valor de 637 euros mensais efectuando uns serviços esporádicos como cantor em casamentos e festas ciganas. É socialmente malvisto, sendo avaliado como um indivíduo conflituoso …- cfr. relatório social de fls. 582” (28);
-“O arguido G… vive com uma companheira e 3 filhos menores numa habitação social, tendo como rendimentos o RSI de 637 euros mensais e o subsídio a crianças no valor de 163 euros mensais. As condições habitacionais são fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene, o que vem sido contrariado pela acção de acompanhamento da Segurança Social). Em termos de inserção social, tem-se esforçado por se encontrar em regime de pena de prisão suspensa na sua execução, continuando, porém, a gerar situações disruptivas e desviantes, contrárias à normatividade cultural e jurídica comum” (29);
-“O arguido I… tem 7 filhos e vive com uma companheira e onze descendentes /filhos e netos) numa habitação social. Beneficia de RSI no valor de 1.100 euros mensais. É analfabeto. Tem uma filha e um genro que estão presos. Para além dos arguidos G… e J… que são seus filhos tem duas filhas que já foram condenadas em penas de prisão –cfr. relatório social de fls. 498”; (30);
-“O arguido W… padeceu de alcoolismo mas já efectuou terapia de desintoxicação. É servente de trolha auferindo cerca de 500 euros mensais. Tem dois filhos menores. A mulher aufere cerca de 300 euros mensais em serviços de limpeza. Estudou até à 4ª classe. Não se lhe conhecem comportamentos anti-sociais” (31);
-“Os agentes da GNR, fruto dos seus contactos funcionais com os arguidos G…, J…, I… e Y… classificam e consideram os arguidos de etnia cigana como perigosos, especialmente em grupo” (32).

Destaquemos também, que, na sentença, indicam-se genericamente, como fundamentos da convicção sobre os factos abonatórios dos arguidos mas não provados, a “descrição dos agentes que demonstraram conhecer bem as suas personalidades e relatórios sociais” e detalham-se, de seguida:

-“declarações dos arguidos no que tange à sua situação económica, familiar e habilitações literárias”;
-“depoimentos unânimes” de onze agentes da GNR “os quais depuseram com grande sentido de isenção e de forma clara, pormenorizada e sem discrepâncias quanto ao modo como os factos ocorreram…”, particularizando-se, após, entre outros, os de:
-H…, quanto aos motivos por que foram ao bairro, o que lá constataram, forma como tentaram resolver o problema do barulho mediante abordagem ao «patriarca» I…, reacção deste e dos dois filhos arguidos, “Sugestivamente e com desassombrada riqueza descritiva afirmou que a confusão era enorme, com os 3 arguidos a «liderar a revolta» e com as mulheres e as crianças a guincharem selvaticamente e a baterem e chamarem nomes” e “Discorreu ainda sobre a revista ao arguido Y… e o «arsenal bélico» de que era portador…”;
-K…, comandante do Posto da GNR local “que se pronunciou sobre o sentimento de impunidade dominante em Felgueiras relativamente ao grupo étnico traduzido no chavão de que «a GNR não faz nada» e que no caso sobressaiu pois só foi possível controlar o grupo cigano com a ajuda dos elementos da GNR da Lixa, Lousada e Paços de Ferreira, estando envolvidos ao todo (Bairro e Posto) cerca de 60 operacionais”, “Revelou a sua preocupação pois era noite e os ciganos estavam a disparar tiros” e “Discorreu que só no último ano, com elementos novos e oriundos de outras localidades e por isso pernoitantes no Posto é que a GNR logrou efectuar um policiamento eficaz do …, já que dantes era quase uma «…”;
-L…, sobre a identificação do arguido J… (entre parêntesis se acrescentando que “não sendo, visivelmente, inocentes, a saídas/ausências temporárias dos arguidos J…, G… e I…, a pretexto de mal-estar, idas ao hospital e a Sevilha, pois que se afigurarem como estratégicas, de molde a não serem sujeitos a identificação pelos agentes da GNR”, “Assumiu que conhece perfeitamente os 4 arguidos de etnia cigana e pelo seu próprio nome, jamais os podendo confundir, uma vez que presta serviço no Posto da GNR e eles são «meliantes/clientes habituais»”;
-M… que “asseverou conhecer na perfeição os arguidos de etnia cigana. Narrou que o arguido I… era o organizador da festa assessorado pelos dois filhos, os arguidos J… e G…. À intimação dos militares para baixar a música, o arguido I… ripostou que «iam ficar com a música, como queriam» e «vocês saiam daqui que os meus filhos matam-nos aqui». Definiu que o mais gordo, o G… e o mais fininho o J… são os filhos do «líder» e que o G… veio logo com pau e desatou a bater no jipe, tendo o arguido I… (com a compreensível postura paternal sem-cerimónia típica da cultura cigana) dito que os filhos podiam bater e estragar à vontade pois ele iria pagar tudo…”, “Fez notar que as pancadas com paus no jipe por banda dos quais irmãos e com «alto patrocínio do pai» só pararam quando «dois ciganos de fora, mais civilizados lhes retiraram os paus»” “Classificou com desassombro, sugestividade e descontracção que os 4 arguidos de etnia cigana bem como a sua numerosa família são «clientes fixos e privilegiados da GNR». O seu veemente e desprendido relato foi decisivo nas suas conclusões algo «naif» do saldo da operação…”;
-Z…, “a GNR daqui não conseguiu actuar, pois os residentes ciganos resistiam”, “um deles, «mais idoso», tentou arrancar a arma à soldado L…”;
-AB…, “mencionou que os ciganos eram perto de uma centena, ou seja, uma multidão incontrolável, uma turba a dar empurrões e a proferir insultos, a arremessar objectos, brandindo paus contra os agentes e desferindo pancadas nos jipes”;
-AC… “relatou os episódios dos insultos «filhos da puta», da tentativa de subtracção da arma da soldado X…, a revista do arguido Y… e subsequente apreensão das armas, o lançamento do garrafão ao soldado H… que ficou ferido, destacando que os que sobressaíam como líderes da revolta contra a autoridade, a instigar e incitar a multidão ululante e em fúria contra a actuação dos agentes eram o arguido I… e os seus dois filhos, estes armados de paus”;
-AD… e AF…, moradores do …, “que chamaram a GNR para pôr cobro ao barulho e que concederam «ter medo dos ciganos»”.

Saliente-se também, neste âmbito, que a sentença refere ter-se o tribunal baseado, além de outros documentos que descreve, nos relatórios sociais dos arguidos e nas “regras da experiência no que toca ao elementos intelectual e volitivo do dolo inevitavelmente associado aos useiros e vezeiros comportamentos desviantes e percursos marginais dos arguidos e seu pouco edificante estilo de vida”, designadamente quanto aos factos não provados, que “não foi feita prova segura ou convincente dos mesmos por forma a que pudessem ser tidos como assentes, designadamente, pela indesmentível rábula e flagrante falsidade e inverosimilhança das versões desgarradas e encenadas do arguido G… que pretendeu inculcar que estava a dormir e foram os agentes que o acordaram de madrugada, do arguido J… que acabou por efabular que foram os agentes que lhe foram bater à porta e o agrediram, não se vislumbrando a menor razão para acolher a rábula da «perseguição e vitimização dos ciganos, coitadinhos!», mais a mais, por banda de agentes de outros Postos e que não os conheciam de lado algum, sendo insofismável que todos os agentes enfatizaram que os mais violentos eram os dois irmãos, tendo o agente H… procedido à detenção do Y… com as armas”.

Por fim, na parte da subsunção jurídico-penal, refere-se ainda, na sentença, que houve uma só resolução criminosa e, portanto, que os quatro arguidos praticaram, apenas, em co-autoria, um crime de resistência e coacção (em vez dos vários em concurso real com os de injúrias e de dano por que vinham acusados) e o Y… de detenção ilegal de arma, prosseguindo, no capítulo da escolha e medida das penas, que “O dolo foi intenso porque directo. São grandes e intensíssimas as exigências de prevenção geral em matéria de crimes deste tipo dado que está em causa o desrespeito da autoridade e, por arrastamento, a própria administração da justiça, como flui com particular ingência dos recentes acontecimentos da Cova da Moura, Aziaga do Besouro, Quinta da Fonte e ainda culminando na agressão selvática dos agentes da PSP no passado fim-de-semana em Abrantes” e que, como atenuantes nada existe, salvo a ausência de antecedentes criminais do G… e I… e que “à excepção do arguido G… são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes de um Estado (ao nível do RSI, da habitação social e dos subsídios às extensas proles) e a quem «pagam» desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes e obstaculizando às suas acções em prol da ordem, sossego e tranquilidade públicas. Face ao percurso de vida marginal bem firmado no relatório social e antecedentes dos arguidos Y… …ao percurso de vida, personalidade e passado criminal …, bem como ao juízo de prognose sólido e irrefragável espelhado no relatório social em conjugação com os factos apurados (arsenal bélico em seu poder)….” E “O mesmo pano de fundo e argumentário colhe para os arguidos (irmãos) J… e G… face à sua péssima imagem social, subsídio-dependência, a conotação com actividades ilícitas …”.

Ora, cotejando o que, no ponto 29 dos factos provados na sentença penal, se refere quanto ao arguido G… acerca das condições habitacionais e estilo de vida da sua etnia com o que refere o seu Relatório Social (junto a fls. 616-618) e de que avulta ser oriundo de “um grupo de etnia cigana” e que até aos 15 anos viveu em “acampamento cigano”, “sendo a sua autonomia garantida desde os dezasseis anos …pelo subsistema da segurança social”, “a adaptação ao bairro social não foi fácil, apesar de vir beneficiando de uma imagem favorável em termos de inserção social”, “na educação dos filhos a escolaridade vem sendo valorizada, bem como a higienização, para o que vem contribuindo o acompanhamento da Segurança Social”, “a situação económica assenta no Rendimento Mínimo Garantido”, “As condições habitacionais são exíguas, facto que é avaliado negativamente pelo próprio, percebendo-se contudo que se prende não tanto com o espaço mas com o estilo de vida da etnia cigana, que avalia como colidindo por vezes com normas convencionais na cultura dominante. Não obstante, no bairro de habitação social em que se insere, o agregado é avaliado como fazendo parte de um esforço de adaptação, nem sempre conseguido pela própria diferença na interiorização dos limites do interdito”, “em termos de inserção social, apesar da diferenciação cultural, beneficia globalmente de uma imagem favorável”, ninguém pode deduzir que a autora escreveu na sentença o contrário do que daquele meio de prova resulta – para o qual, como quanto aos demais arguidos, quis obviamente remeter, só por evidente lapso o não apontando pelas folhas do processo como quanto aos outros. Destacando o relatório que o arguido viveu até aos 15 anos em acampamento cigano (que, como geralmente se sabe e lamenta em função dos padrões da população em geral, é o tipo de habitação de grupos da etnia e, como resulta da experiência comum, por vezes com miseráveis condições a tal nível), percebe-se a razão por que se diz que a “higienização” vem sendo valorizada e que “as condições habitacionais são exíguas” o que “se prende não tanto com o espaço mas com o estilo de vida da etnia” e, portanto, que a sentença, a partir daí, retire e refira como “fracas” as condições habitacionais e as relacione com a “pouca higiene”. Aliás, em tal percepção admite-se que tenha também tido algum peso a observação e experiência funcional da autora no julgamento de casos penais em que são arguidos ou interessados cidadãos de etnia cigana (cfr. ponto 25 dos factos provados na sentença) e consequente conhecimento, por via do exercício do seu múnus, do que quanto a isso se lhe patenteara antes nos tribunais.

A consideração genérica, tecida em sede de escolha da pena e determinação da respectiva medida, implicada pelos critérios legais respectivos (artºs 70º e 71º, do Código Penal) e entre os quais avultam, para além da ilicitude e da culpa, diversos aspectos, designadamente relativos à personalidade e modo de vida dos arguidos, consubstanciada na síntese de que “são pessoas malvistas socialmente, marginais, traiçoeiras, … subsídio-dependentes de um Estado … e a quem «pagam» desobedecendo…”, etc., assenta nos factos provados e nos meios de prova que a eles conduziram: sobre a visão social má que deles têm os elementos da GNR e os moradores, pronunciaram-se estes; que têm comportamentos fora das normas e valores dominantes, resulta dos autos; que vivem com subsídios do Estado, resulta dos factos provados e dizem-no os Relatórios; que, em contrapartida, atentam contra a acção da autoridade pública, emerge do crime por que foram condenados e dos factos que a tal deram azo.

Não tinha a sentença que se limitar às palavras empregues por testemunhas ou vertidas nos documentos. Ao apreciá-los, valorá-los e exprimir o juízo sobre eles quase inevitavelmente – se bem que a sentença até se esforce em fazer repetidas citações – a linguagem não é a mesma. Ainda que imbuída de “animus narrandi”, ela comporta já um juízo que, podendo até conter erros, não significa a expressão de opiniões pessoais.

É certo que, ao referir-se ao depoimento da testemunha H… e a pretexto da descrição por este feita do acontecimento, parece ao próprio imputar-se a expressão “com as mulheres e as crianças a guincharem selvaticamente e a baterem e chamarem nomes”.

No respectivo depoimento transcrito alude ele a grande confusão gerada, insultos diversos, agressões de vária ordem, resistência, empurrões, esbracejar, apelo para que os elementos da GNR se fossem embora (tudo por parte do lado dos arguidos e elementos da sua etnia que se lhe juntaram), presença de homens, mulheres e crianças, num total de 50 ou 60 pessoas. Não descortinamos, é certo, a alusão expressis verbis aos gritos de mulheres e crianças.

No ponto 4 dos factos, foi dado como provado que o arguido I… “acompanhado por muitas mulheres e crianças …formando uma multidão ululante que rodeavam, gritavam e insultavam os agentes, empurrando-os e batendo-lhes, abeirou-se da agente L…, empurrou-a e tentou subtrair-lhe/retirar-lhe a arma”.

Em face das circunstâncias concretas, das regras da experiência comum e de qualquer juiz penal que, por exemplo, tenha lido sentenças condenatórias ou absolutórias envolventes de membros da etnia e sentido os termos e os modos como manifestam, até em pleno tribunal, umas vezes o seu desagrado outras o seu regozijo, é perfeitamente perceptível e compreensível o ambiente, designadamente sonoro, gerado pela ocorrência e que as mulheres e crianças da etnia (e doutra origem que fossem…) não se exprimiam em tom baixo e notas graves, com palavras brandas, simpáticas e esmeradamente calmas e educadas.

A hipérbole descritiva – à semelhança do que ocorre, aliás, noutras partes da sentença usando expressões do género como “arsenal bélico” ou “rábula” – mediante o recurso à expressão “guincharem selvaticamente” (em vez de “gritarem”), como é evidente não parece ser de tomar à letra mas, apenas, com animus narrandi, pretender retratar, num estilo claro e vigoroso, o cenário real conforme a percepção que dele colheu a autora, sem que daí se possa concluir que se trata de invenção sua, sem fundamento na prova produzida e na factualidade a partir desta apurada, mas apenas cumprindo o dever de fundamentar a decisão em conformidade com os critérios legalmente exigidos (designadamente salientando na escolha e determinação da pena os aspectos favoráveis e desfavoráveis aos arguidos emergentes da dos factos provados), sem extrapolar para terceiros, designadamente, para a comunidade cigana em geral, o juízo feito quanto aos ali arguidos seus membros.

Afigurando-se-nos tudo isto, tal como ao tribunal a quo (e afinal aos tribunais superiores que se pronunciaram sobre a sentença e a entidades e pessoas da comunidade que a analisaram e comentaram) evidente (sem prejuízo de se gostar ou não do estilo ou de se concordar ou não com o juízo), e mesmo pacífico, não vemos como possam sobrar dúvidas de que também assim o réu, pelas razões referidas, a entendeu e de que do seu conteúdo e fundamentos se consciencializou.

Por isso, improcedem os motivos por ele aduzidos com vista a alterar as respostas aos quesitos 43 e 44, que se mantêm, e, assim, a conclusão 10ª (tal como o que, a respeito dela, se refere nas conclusões 4ª a 9ª).

h) Já no capítulo relativo às alegações de direito e nas correspondentes conclusões 13ª a 20ª, quis o autor apelante, refutar o teor ou a exactidão das considerações pelo tribunal a quo tecidas, no capítulo da subsunção jurídica dos factos, e, portanto, por ocasião da sua interpretação e avaliação em face das normas legais respeitantes à responsabilidade civil convocada em fundamento da pretensão indemnizatória da autora.

Começa por observar que, na sentença recorrida, se refere que o réu “imputa” à autora os crimes de difamação e de discriminação racial, porém, o que da queixa resulta é, apenas, que “terá cometido …um crime de difamação…e eventualmente um crime de discriminação racial” e, da acusação particular, que “cometeu …um crime de difamação”.

Ora, nos pontos 21 e 22 dos factos provados, estão cuidadosamente referidas tais peças, aludido a parte do seu teor mas fazendo remissão para fls. 155 a 164 e 166 a 191 dos autos, deste modo se precisando o que está em causa.

Eventual alusão menos rigorosa ao teor daquelas peças, é irrelevante, na medida em que é claro o seu exacto sentido e nenhuma ilação prejudicial dela resulta.

Aliás, nenhum efeito extrai também o apelante do que alega – valendo a consignação que aqui se deixa apenas para deixar a claro tal aspecto.

Depois, a pretexto, de na sentença recorrida, se referir que o entendimento do réu que o motivou a patrocinar a queixa e a subscrever a acusação não é aceitável e para tanto se justificar que: “Independentemente do eventual excesso ou desnecessidade de pontuais excertos da sentença elaborada, esta não deixa margem para dúvida razoável de que a Autora pudesse estar a exprimir uma posição pessoal contra os arguidos ou contra o grupo étnico ao qual pertenciam. A decisão é, em si mesma, reveladora de que a Autora deu conta da perceção que colheu da prova produzida em julgamento, pois que as expressões se encontram na descrição por súmula de testemunhos produzidos em julgamento, num facto provado sobre as condições pessoais de um arguido (fundado em relatório social junto) e na ponderação dos aspetos desfavoráveis provados para efeito de determinação da medida concreta da pena”, ensaiou o réu a tentativa de, nesta sede, retomar, repetindo mesmo em parte, a impugnação da decisão da matéria de facto apurada procurando, como já fizera antes a propósito dos pontos 43 e 44, demonstrar que o teor da sentença crime nem sempre se baseou nos elementos de prova e que, portanto, parte das afirmações dela constantes só podem ser da autoria da própria demandante que a elaborou.

É o que faz em relação a aspectos que destaca e compara com as transcrições (expressões de fls. 12, 15, 16, 17, 18, 19, 23 e 27) da sentença penal.

Continua, depois, referindo algumas outras passagens da mesma parte da sentença, apontando-lhes diversas críticas.

Ora, o que interessa são as questões que efectivamente coloca e que devem redundar em fundamentos eventualmente idóneos a despoletar a alteração do decidido.

Sucede que, compulsadas as conclusões 13ª a 20ª emanadas de toda essa argumentação, verifica-se que elas não passam de opiniões críticas e discordantes. Insiste-se nelas que as referências na sentença não correspondem ao que consta dos meios de prova, são generalizantes em relação à etnia e inaceitáveis, ofensivas e discriminatórias, preenchem o tipo de crime de difamação.

Nelas, quanto à decisão da matéria de facto, não se imputa qualquer invalidade nem impugna qualquer ponto, estando-se, de resto, muito longe do que para tal a lei exige; e, quanto à matéria de direito, também nenhum vício de procedimento se retira e nenhum erro de julgamento se aponta, designadamente quanto a qualquer dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil. Nada se pede, portanto, nessa parte do recurso.

Por não constituírem verdadeiras questões sujeitas à reapreciação e decisão deste tribunal, não se conhece dessa parte, por falta de objecto.

A2) Recurso da autora

Uma vez que as questões de direito suscitadas por uma e outra parte recorrentes pressupõem a estabilização da factualidade provada, passamos agora a apreciar o recurso da autora quanto à decisão da matéria de facto.

a) Na conclusão IV, defende ela que a sentença, ao não motivar a decisão que deu como não provado o facto nº 9, incorreu no vício de falta de fundamentação previsto no artº 615º, nºs 1, alínea b), e 4.

Está em causa o quesito 61, no qual se perguntava se, em consequência das notícias e ao nível da vida de relação da autora, esta faltou a reuniões da F….

Sucede que este facto consta como provado, entre outros, no nº 35 do respectivo elenco: a situação levou a que a autora “…evitasse ir a reuniões da F… …” – o que é exactamente o mesmo, para o que aqui interessa.

Está explícita e devidamente fundamentado no ponto IV da motivação.

Trata-se de uma patente contradição prevista na alínea c), do nº 2, do artº 662º, do CPC, e não da alegada nulidade do artº 615º, nºs 1, alínea b), e 4.

Remédio: constando do processo todos os elementos que permitem a alteração, aliás mencionados na dita motivação, ao abrigo da referida norma, determinar-se-á, sem mais, oficiosamente, a eliminação do ponto 9 dos factos não provados e a manutenção integral do ponto 35 dos provados.

Em suma: falta objecto cognoscível à conclusão IV.

b) Afigurando-se-nos que, no quadro acima exposto relativo aos pressupostos do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos não provados 3, 6, 7, 9, 11, 12 e 14, estes foram cabalmente observados, importa prosseguir e conhecer dela.

Respeita o ponto 3 ao quesito 3º da BI em que se perguntava se “o réu concretizou aquela declaração”, isto na sequência do que ele teria dito no final da leitura da sentença e referindo-se ao conteúdo desta, objecto do quesito 1º: “daqui a cinco minutos, isto está na D…”.

Como reconhece a autora, não ficou provado que o réu proferiu esta frase na referida circunstância.

Defende, ainda assim, que deve aquele quesito ser dado como provado, uma vez que, face ao que resulta do próprio depoimento dele (que confirmou ter sido contactado por uma jornalista D…) e dos depoimentos testemunhais que transcreve, tudo conjugado com as regras da experiência, extrai-se a conclusão de que foi ele que, efectivamente, contactou a dita D… (comunicando-lhe a sentença).

Acontece, todavia, que tal contacto extravasa o âmbito do quesito, na medida em que, em face do alegado, ele se destinava apenas a apurar se foi executado o facto que a declaração supostamente proferida anunciava: dali a cinco minutos o réu faria chegar o teor da sentença aos media – “isto est[ar]á na D….

Não se tendo inquestionavelmente provado que proferiu tal expressão, é um paradoxo e, por isso, impossível, dar como provado que concretizou o facto supostamente por ela anunciado.

Ainda que, numa tentativa de interpretação do quesito no contexto da petição, se procurasse nele um sentido mais amplo e próximo do do quesito 77 – “As notícias supra identificadas tiveram origem nas declarações do réu junto da D…?” – nele compreendendo a entrega da sentença, independentemente do anúncio verbalizado e, portanto, atribuindo à acção inicial do demandado a origem da notícia da D… que foi fonte das demais, o certo é que também aquele quesito resultou não provado e não mereceu, por parte da autora, qualquer impugnação.

Tendo, pois, o tribunal a quo considerado sobre o quesito 3 que “Nenhuma testemunha confirmou em julgamento ter ouvido o réu proferir as expressões descritas nos factos não provados 1…, nem desses factos foi revelado em julgamento registo fidedigno. Assim se justifica o teor dos factos não provados números 1 a 3…”, não tendo lógica a resposta positiva pretendida nem os meios de prova invocados mostrando (designadamente o depoimento do réu e das demais testemunhas indicados e transcritos), com clareza e segurança, mesmo conjugados entre si e com toda a demais prova à luz das regras da experiência comum, que foi o réu quem contactou ab initio a D…, mantém-se, sem necessidade de mais considerações, a resposta dada, assim improcedendo a conclusão I.

c) Respeita o ponto 6 dos factos não provados ao seguinte: “O Réu usou o processo identificado no facto provado número 20, na comunicação social, para continuar a difundir uma imagem da A. como xenófoba e racista”.

Tal facto provinha do quesito 81 da BI no qual se perguntava se o réu agiu “usando este processo [o da queixa crime, portanto] na comunicação para continuar a difundir na comunicação social uma imagem da A. como xenófoba e racista” (item 105 da pi).

Verifica-se que, dele, todavia foi dado como provado (facto 46 do respectivo elenco) que “O Réu sabia que a divulgação do processo identificado no facto provado número 20 pela comunicação social, continuaria a difundir uma imagem negativa da A.”

Assim, do mesmo quesito, deu-se uma parte como provada e outra não. Ou seja: não se deu como provado que o réu, ao patrocinar e subscrever a queixa, agiu com o propósito de, por meio dela, perseverar na citada finalidade, mas apenas que sabia que a sua publicitação implicava tal resultado.

Justificou o tribunal a quo a parte positiva da resposta ao quesito assim: “afigura-se que, depois do tratamento mediático impreciso dado à primeira sentença, em que foram atribuídas à Autora afirmações que não produziu a título pessoal, dano da mesma a imagem pública de uma juíza de direito com ideias discriminatórias relativamente a determinados grupos ou minorias étnicas, o Réu, conhecedor directo de toda a situação que até comentou publicamente para órgãos de comunicação social, sabia evidentemente que a divulgação do inquérito crime contra a Autora traria novamente o nome da Autora, e a má memória das anteriores notícias, para a ribalta informativa.”

E justificou a parte negativa dizendo que não foi produzida qualquer prova de que tenha sido o réu quem atribuiu à autora o epíteto de “xenófoba e racista” e fez chegar à D… as informações divulgadas.

É notório, pois, desde logo, que, salvo o devido respeito, a autora se equivoca ao alegar que a decisão recorrida considerou não provado (todo) o quesito 81º, uma vez que assim está julgada uma parte (facto provado 46).

Por aí definha logo o pressuposto desta impugnação.

É certo, como ela observa, que não foi com o sentido que promana da citada fundamentação para o facto provado nº 6 que o quesito foi redigido. Nem tal facto nem o quesito de que deriva se referem a uma imputação directa que pelo réu lhe tivesse sido dirigida mas apenas à apresentação da queixa para ele continuar a difundir na comunicação social uma imagem da autora daquele jaez (“xenófoba e racista”).

Todavia, o seu apelo confina-se à referida parte dada como não provada.

Não cremos, porém, que haja qualquer erro de apreciação e valoração de tal matéria e consequentemente da decisão proferida quanto a tal quesito que mereça ser corrigido.

Apesar de o réu ter consciência dos efeitos pregressos da divulgação da sentença pela comunicação social e do conjunto das notícias publicadas relativamente à imagem negativa da autora – segundo a qual ela não gostava das pessoas de etnia cigana – e de, por isso, ser inquestionável o facto provado 46, ou seja, que a divulgação do processo crime continuaria a alimentar (na expressão das próprias testemunhas) essa imagem nos media, não é a prova disponível segura, muito menos convincente, no sentido de que, desencadeando o processo-crime, ele quis precisamente usá-lo para continuar a difundir aquela imagem e que, portanto, agiu com tal propósito – sem embargo de saber que tal aconteceria, como aconteceu, e com este resultado se ter conformado.

Nem dos depoimentos para tal citados pela autora (N…, T… e U…) nem de qualquer outro meio de prova, se colhe a demonstração inequívoca de tal postura subjectiva.

Por isso, improcede a conclusão II.

d) Relativamente ao ponto 7 dos factos não provados, proveniente do quesito 35, onde se perguntava se “aquando da anulação parcial da sentença indicada em B), o R. afirmou em intervenções registadas e transmitidas nos canais televisivos AG…, AH… e AI…, nos dias 02 e 03/02/2010, que assim a A. seria obrigada a «expurgar as expressões racistas»”, justificou o tribunal recorrido que “…o Réu, no seu depoimento de parte sobre a matéria, manteve ter dito apenas que “…o acórdão permitiria expurgar…”, não confirmando ter aludido a “expressões racistas”. Feita a reprodução em julgamento dos registos de vídeo juntos autos, apenas se confirmou a prestação de declarações pelo Réu à AG…, durante as quais, na notícia gravada, não foi proferida a expressão que consta do artigo 35º da base instrutória.”

Esgrime a autora com extrapolações a partir do que o réu admitiu no seu depoimento – que “o acórdão permitia expurgar…” – no sentido de que a tal juntou “…expressões racistas” e que, por isso, o quesito devia ser dado como provado.

Esquece, porém, logo não contesta, que, reproduzidos em audiência os vídeos das declarações transmitidas, verificou o tribunal a quo que delas não consta tal expressão.

Logo, não tem qualquer cabimento a conclusão III.

e) Pretendia a autora que o facto não provado nº 9, proveniente do quesito 61º da BI, relativo às faltas a reuniões da F…, seja dado como provado.

Como já atrás se constatou, é o que já consta do ponto 35 dos factos provados: a situação levou a que “…evitasse ir a reuniões da F… …”.

Por isso se eliminou dos não provados tal ponto e se manteve integralmente o 35 dos provados, onde tal matéria se contém.

Falece objecto cognoscível a tal conclusão V.

f) Pugna a autora, na conclusão VI, por que sejam julgados provados os factos 11 e 12, provenientes dos quesitos 72 e 73, onde se perguntava:

“72. Nos anos de 2008 e 2009, nos corredores desta Instituição [Tribunal de Felgueiras], o R. comentava em voz alta para que funcionários e colegas da A. ouvissem, que a mesma era a juíza xenófoba?”
“73. Comentários estes várias vezes escutados por colegas da A. e funcionários?”.

O tribunal recorrido justificou que “nenhuma testemunha confirmou em julgamento ter ouvido o Réu proferir as expressões descritas nos factos em questão …nem desses factos foi revelado em julgamento registo fidedigno”.

Ora, além de o réu, no depoimento, ter admitido que falou, designadamente com colegas, do assunto e da sua visão sobre ele, embora não nos termos e circunstâncias sob indagação, que negou, a verdade é que a testemunha V… não se recorda de nada que, em concreto, tenha seguramente ouvido da boca do réu no local, recusando-se mesmo a fazer qualquer afirmação sobre isso e ficando-se por conversas com a autora em que a hipótese teria sido comentada e nada mais.

A conclusão, pois, tirada pela autora e o raciocínio que para tal usou e exprime não são aceitáveis.

As circunstâncias em que tais afirmações teriam sido produzidas e os testemunhos presenciais alegadamente existentes requeriam, para se tornarem plausíveis e convincentes, melhor prova.

Como assim, improcede a conclusão VI.

g) Pretende, ainda, a autora que o facto não provado nº 14 seja dado como provado com base nas mesmas provas indicadas quanto ao nº 3 e no depoimento de parte do réu.

Provém ele do quesito 77, no qual se perguntava: “As notícias supra identificadas tiveram origem nas declarações do réu junto da D…?”

A inserção do quesito na BI e a sua alegação na petição (item 96) foram feitas fora de sequência, uma vez que as notícias em causa estão referidas na parte inicial de cada peça, o que manifestamente não facilitou a sua necessária conjugação e apreensão do verdadeiro sentido. Não há dúvida, porém, que tal matéria se refere às notícias publicadas no dia 30 e 31 de Julho de 2008, ou seja, as dos pontos provados nºs 4, 5, 7 e 9.

Entendeu o tribunal recorrido, relativamente a tal ponto, que “não foi produzida qualquer prova de que tenha sido o Réu quem …fez chegar à D… de notícias as informações que foram objecto de divulgação na comunicação social no dia 30 de Julho de 2008, sendo certo que a leitura da sentença é o ato público e as expressões noticiadas podem ter outras fontes para além dos sujeitos processuais”.

Ora, apesar das circunstâncias em que ocorreu a leitura da sentença (em dia de férias, no gabinete), das pessoas que no acto estiveram presentes (apenas as relacionadas com o processo, entre elas o réu, e nenhuma estranha, muito menos da comunicação social), de a notícia da D… ter sido emitida às 16,58h do dia imediato, logo referindo ter tido acesso àquela peça e colhido declarações do advogado réu (fls. 72), e do conhecido protagonismo deste, não cremos poder afirmar-se que foi nas declarações dele ou noutra qualquer actuação (contacto espontâneo, envio de cópia) que teve origem a notícia, muito menos os termos em que ela foi elaborada e difundida.

É claro que as invocadas regras da experiência, não sendo propriamente meios de prova, são, no âmbito da livre apreciação deles, critério de julgamento, de valoração de indícios.[23]

Todavia, apesar daqueles que admitimos poderem colher-se a partir dos pela autora apontados meios de prova (a propósito quer deste ponto, quer do nº 3 para que remeteu: depoimento de parte do réu e das testemunhas Drs. N…, Q… e O… e Srs. P… e S…) e dos demais resultantes do processo, e de nada em contrário ter sido contraprovado, sempre se nos depara uma inarredável nuvem negra sobre se, antes de prestar declarações à D…, o réu algo fez, e o que fez, para gerar a notícia dessa D… e particularmente os títulos e os destaques nela dados às parcelas da sentença e, assim, para além daquelas, qual o seu exacto papel desde o momento da leitura até à publicitação, em que variadas hipóteses são racionalmente concebíveis, como ajuizou o tribunal recorrido.

Sobre isso persistindo a dúvida irremovível, improcede a conclusão VII.

B. FACTOS PROVADOS

Em resultado, portanto, da improcedência de ambos os recursos na parte vinda de analisar (e sem prejuízo da eliminação do ponto 9 dos não provados), mantém-se o seguinte elenco de factos provados:

1. A A. é Juíza de Direito a exercer funções desde 15 de Setembro de 1999 (alínea A) dos factos assentes);
2. Em 29/07/2008, a A., no exercício das suas funções, proferiu, no processo comum singular que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras com o n.º 21/06.0GAFLG, sentença na qual condenou os aí cinco arguidos, W…, G…, J…, I… e Y…, a penas de multa e de prisão efetiva e ao pagamento de indemnizações, pela prática de crimes de resistência e coação sobre funcionário e detenção ilegal de arma, nos termos constantes de fls. 37 a 71 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas (alínea B) dos factos assentes);
3. No processo que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras com o n.º 21/06.0GAFLG, o ora R. exercia funções de defensor dos aí arguidos J…, Y…, G… e I… (alínea C) dos factos assentes);
4. No dia 30/07/2008, em vários meios de comunicação social, aparecia como notícia principal ou num lugar de destaque a manchete “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros” (artigo 4º da base instrutória);
5. Mencionando-se, no seu conteúdo que a A. se havia referido não aos arguidos, mas à comunidade cigana em geral como “pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes” que durante os acontecimentos “as mulheres e as crianças guincharam selvaticamente” e que no levantamento sócio-económico da vida dos arguidos, a A. havia escrito que as condições de higiene eram “fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene)” (artigos 5º a 7º da base instrutória);
6. Em 30/07/2008, o R., em declarações à E…, disse o seguinte: “claramente houve expressões desajustadas que se referiam não só aos arguidos, que eram maioritariamente ciganos, mas também à própria etnia. Não se pode combater os problemas com estigmatização nem com utilização de expressões como clientes habituais de postos, …, ou dizer que as mulheres e as crianças guinchavam, porque quem guincha são os animais”, os termos constantes de fls. 99 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida (alínea D) dos factos assentes);
7. A notícia referente ao acontecimento foi publicada sob o mesmo título e, entre outros dizeres, que a Autora se referiu à comunidade cigana em geral como “pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes”, na edição do “AK…” de 31/07/2008 (artigo 8º da base instrutória);
8. De acordo com o “AK…” de 31/07/2008, “AL…, professor universitário e fundador da AM…, considerou a sentença indicada no facto provado número 2. como «discurso lamentável quer dos militares da GNR, quer da juíza» e «O Tribunal não tem direito de ter este discurso. Tem de ser imparcial e não pode utilizar linguagem destrutiva»” (artigo 20º da base instrutória);
9. O “AN…”, neste mesmo dia, publicou um artigo onde se escreve, em título, que o “acórdão compara cigano e marginal”, “Juíza tece considerações genéricas na condenação” e “a sentença da magistrada do Tribunal de Felgueiras está a gerar polémica por se referir à comunidade cigana como malvista e traiçoeira” e, no corpo da notícia, que “B…, juíza do tribunal de Felgueiras, proferiu sentença onde faz considerações polémicas à comunidade cigana. São pessoas mal-vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes” (artigos 9º, 10º, 11º e 12º da base instrutória);
10. As notícias referidas nos factos provados números 8. e 9. têm identificados o nome e o local de trabalho da A. e aludem a declarações do R., considerando que na referida sentença “são tecidas considerações e comentários que merecem o repúdio e se afiguram desadequadas e desnecessárias” (artigos 14º e 15º da base instrutória);
11. As notícias referidas nos factos provados números 4., 5. e 9. referem como fonte a D… (artigo 13º da base instrutória)[24];
12. A publicação destas notícias deu origem a artigos e comentários na blogosfera (artigo 16º da base instrutória);
13. Foi publicado no blog AO….blogspot.com, um post com o título Juíza B… – a xenófoba”, no qual se classifica a A. de xenófoba, como autora de “alarvidades” e se conclui com um pedido de exoneração imediata e definitiva da A. (artigos 17º a 19º da base instrutória);
14. Em declarações feitas a vários meios de comunicação social em 30/07/2008, a então Alta-Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural, AP…, afirmou ter ficado “absolutamente perplexa como é que numa sentença se fazem acusações tão genéricas relativas a uma comunidade, tomando a parte pelo todo. Uma coisa é adjectivar a conduta dos arguidos (da qual me abstenho) e outra coisa é tomar toda uma comunidade com cerca de 50 mil pessoas pelo comportamento destas cinco pessoas, destes cinco arguidos” e ainda “assim que tivermos a sentença e depois de analisada, ponderamos a hipótese de fazer uma queixa ao Conselho Superior de Justiça” (artigos 21º e 22º da base instrutória);
15. As notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam em excertos da sentença descontextualizados (artigo 23º da base instrutória);
16. Estes excertos resultam da perceção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos de que tomou conhecimento no processo (artigos 24º e 85 da base instrutória);
17. No dia 31 de Julho, a D… retificou a notícia através da declaração: “Anula-se a notícia com o título “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros” (8103044), de 30 de Julho de 2008, por o seu conteúdo não corresponder inteiramente aos factos narrados no acórdão” (artigo 25º da base instrutória);
18. A 2 de Agosto de 2008, no semanário “AQ…”, foi publicado um artigo de AS…, sob o título “Pobres e Mal-Agradecidos”, onde se escreveu: “Na sentença em que condenou cinco homens de etnia cigana a penas de prisão efectiva por agressões a soldados da GNR, a juíza B…, de Felgueiras, citando as testemunhas, referiu que os arguidos eram pessoas marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio-dependentes do Estado. Muito embora a sentença se tenha sempre referido àqueles arguidos em concreto, o advogado de defesa entendeu que o seu alcance ia muito para lá disso e reflectia uma visão xenófoba sobre toda a comunidade cigana” (artigos 26º e 27º da base instrutória);
19. Neste mesmo dia, a jornalista AT…, sub-directora do “AU…”, escreveu na sua coluna que a A. decidiu com “…equilíbrio notável questões que dizem respeito à comunidade cigana na conduta destes membros dessa comunidade. Na sentença, a juíza consegue nunca fazer comentários xenófobos. Mas também não ignora o que as testemunhas, nomeadamente, os polícias, lhe disseram sobre o comportamento ameaçador dos arguidos quando estavam em grupo, em família, protegidos pela sua comunidade. A sua preocupação principal foi fazer justiça (…)” (artigos 28º a 31º da base instrutória);
20. J… e G…, em 29/01/2009, patrocinados pelo ora R., apresentaram uma queixa-crime na Procuradoria Distrital do Porto contra a A., pela prática dos crimes de difamação e discriminação racial, previstos nos artigos 80.º e 240.º do Código Penal, nos termos constantes de fls. 133 a 149 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas (alínea E) dos factos assentes);
21. A queixa-crime identificada no facto provado número 20. deu origem ao processo de inquérito n.º 6/09.4TRGMR, que correu termos no Tribunal da Relação de Guimarães e no qual foi proferido, em 04/05/2010, despacho de arquivamento do Ministério Público com os seguintes fundamentos: 1. “Tais expressões não foram produzidas pela requerida a título pessoal, como sua opinião, ou como cidadã. Elas resultam do teor dos depoimentos das testemunhas (elementos da GNR) devidamente escalpelizados na motivação fáctica ao longo de várias páginas. 2. Ao Juiz compete apreciar os factos que lhe são apresentados. Serviu-se para o efeito, dos elementos do processo, nomeadamente das testemunhas e do teor dos relatórios sociais. 3. Julgar pressupõe fazer juízo, sopesando toda a matéria fáctica em ordem a decidir se a mesma integra, ou não, um ilícito criminal (ou outro). 4. O Juiz tem um amplo espaço de liberdade dentro da matéria fáctica enquadrada pela acusação. 5. E para decidir tem que apreciar os factos e usar o veículo necessário à comunicação: a linguagem. 6. A linguagem pode ser mais ou menos incisiva, assim como a decisão pode variar de julgador para julgador, dado que julgar pressupõe a intervenção e sensibilidade humana.”, e que “não se vislumbra qualquer intenção da arguida difamar ou de injuriar os assistentes por causa da sua raça”, nos termos constantes de fls. 155 a 164 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas (alínea F) dos factos assentes);
22. J… e G… apresentaram acusação particular, subscrita pelo ora R., nos termos constantes de fls. 166 a 191 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidos (alínea G) dos factos assentes);
23. Foi publicado no “AK…”, na sua edição 18/05/2009, um artigo sob o título «Ciganos processam juíza por sentença “difamatória”» (artigo 33º da base instrutória);
24. Tendo o Jornal “AV…”, em 03/02/2010, publicado um artigo sobre a anulação parcial da sentença referida no facto provado número 2., onde é atribuída ao Réu a seguinte frase: “Pode permitir eliminar da sentença expressões que são consideradas racistas e xenófobas e cujo uso não se justificava (artigo 36º da base instrutória);
25. Devido à notícia referida no facto anterior, a F…, em 03/02/2010, emitiu um comunicado, com o título “Manipulação da Comunicação Social”, nos termos constantes de fls. 282 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida (artigo 37º da base instrutória);
26. A A. apresentou pedido de escusa no processo de recurso n.º 21/06.0GAFLG.G2, que correu termos no Tribunal da Relação de Guimarães, pedido esse que foi julgado improcedente por acórdão datado de 26/04/2010, nos termos constantes de fls. 194 a 196 dos autos (alínea H) dos factos assentes);
27. A A. apresentou pedido de escusa no processo n.º 2/07.6GAAMT, que correu termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, o qual foi indeferido por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 17/03/2010, nos termos constantes de fls. 213 a 222 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas (alínea I) dos factos assentes);
28. Em consequência das notícias referidas nos factos provados antecedentes e do ambiente criado em seu redor, a A. viu a sua intimidade privada devassada (artigo 38º da base instrutória);
29. Sofreu ameaças e telefonemas anónimos de indivíduos que lhe diziam “vais ver o que te acontece aos filhos” e que iam incendiar a casa e o automóvel (artigos 39º e 40º da base instrutória);
30. E foi vítima de várias críticas, insultos e enxovalhos públicos na comunicação social (artigo 41º da base instrutória);
31. O que é agravado pelo facto de a A. residir num meio pequeno, a cidade de Amarante (artigo 42º da base instrutória);
32. Onde a sua família é conhecida pelo facto de o pai da A. ser oficial do exército/coronel, e de a mãe aí ter sido farmacêutica e professora de matemática (artigos 43º e 44º da base instrutória);
33. As mencionadas notícias e o processo-crime desencadeado com a queixa referida no facto provado número 20., afetaram a saúde da A., que devido a elas sofreu grande nervosismo, depressão, apatia, prostração, insónias, perda de peso, isolamento, quebra de autoestima, insegurança profissional, impaciência, irritabilidade na sua vida privada e no relacionamento com os dois filhos (artigos 45º, 46º, 48º, 49º e 50º a 57º da base instrutória);
34. E também afetaram os pais da Autora, que sofreram, se afligiram e incomodaram (artigos 58º e 59º da base instrutória);
35. Tal levou ainda que, em várias ocasiões, a A. se isolasse do convívio com colegas de profissão, evitasse ir a reuniões da F…, ações de formação, devido ao receio de ser confrontada com o estigma de ser considerada a “juíza dos ciganos” e que a rodeassem de perguntas penosas e agudizadoras do seu desânimo e humilhação (artigos 60. a 64. da base instrutória);
36. A A. teve ainda que lidar com a possibilidade de ser suspensa do exercício de funções na eventualidade de ser deduzida acusação no processo identificado no facto provado número 21. (artigo 65º da base instrutória);
37. O que lhe trouxe angústia acrescida, prejudicou a sua capacidade de concentração nos problemas dos outros, e se refletiu na celeridade do despacho dos seus processos (artigo 66º da base instrutória);
38. Angústia que apenas apaziguou quando o Conselho Superior da Magistratura deliberou no sentido de que não seria suspensa no caso em apreço (artigo 70º da base instrutória);
39. Os problemas de saúde da A., identificados nos factos provados números 33. e 35., fragilizam-na e diminuem-na no seu dia-a-dia, na sua relação com familiares próximos e com colegas de profissão (artigos 83º e 84º da base instrutória);
40. O R., no exercício das suas funções de advogado, trabalha com frequência no Tribunal Judicial de Felgueiras (artigo 71º da base instrutória);
41. Em 18 de Maio de 2009, preparava-se a segunda inspeção da A. (artigo 74º da base instrutória);
42. Em 18 de Maio de 2009, o “AK…” publicou um artigo com o título “Ciganos processam juíza por sentença difamatória”, onde é referido que … C…, o advogado dos queixosos, recusa comentar o processo-crime mas lamenta, “conforme resulta de várias reacções públicas, especialmente na blogoesfera”, que “ainda existam muitos portugueses que defendam e elogiem comportamentos racistas e xenófobos” (artigos 75º e 76º da base instrutória);
43. O R. tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas (artigo 78º da base instrutória);
44. E que as expressões da sentença que foram objeto das notícias referidas nos factos provados números 4., 5., 7. e 9., assentavam na perceção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo (artigo 79º da base instrutória);
45. O R., na qualidade de advogado, tem conhecimentos técnicos para avaliar se, na sentença referida no facto provado número 2., a A. cometeu os crimes que lhe são imputados no processo identificado no facto provado número 20. (artigo 80º da base instrutória);
46. O Réu sabia que a divulgação do processo identificado no facto provado número 20. pela comunicação social, continuaria a difundir uma imagem negativa da A. (artigo 81º da base instrutória);
47. O R. conhecia os efeitos que o conjunto das notícias referidas nos factos provados, no âmbito das quais fez declarações aos órgãos de comunicação social, tinham sobre o bom-nome e a imagem da A. (artigo 82º da base instrutória).

C) Matéria de Direito

Através desta acção, pretende a autora ser indemnizada pelo dano alegadamente sofrido e consequente lesão dos seus fundamentais direitos de personalidade.

A circunstância de ser Juíza e de à decisão penal condenatória que proferiu no pretório onde exercia o seu múnus remontar a génese do caso, justifica que lembremos, antes de mais, a respectiva sentença e a apreciação jurisdicional que pelas instâncias recursivas dela resultou e, bem assim, o juízo a que a sua própria autora foi (ou não) sujeita, a propósito dela, no âmbito criminal, civil e disciplinar.

Tal servirá para melhor se compreender e avaliar, depois, a conduta do réu, designadamente discernindo, na perspectiva da culpa e da ilicitude, se ela se inscreve e justifica no direito à crítica enquanto mandatário dos arguidos, como advogado e como simples cidadão, ou se ela contende, e nesta hipótese em que medida, com a pessoa da autora e respectivos direitos, e, assim, se, do respectivo balanço resulta porventura nítida e intolerável desarmonia e desequilíbrio entre o exercício dos direitos dele e o respeito devido pelos dela (honra, nome, imagem) cujo dano consequente, pela indemnização possa e deva ser reparado, e, pela condenação a pagar-lha, àquele imposto.

É que, “quando esteja em causa uma figura pública – como é o caso de um juiz, sobretudo se estiver envolvido em casos de acentuado relevo social –, a tutela da honra tem de tomar em consideração o seu comportamento”, como ainda muito recentemente afirmou o STJ.[25]

Ora, relativamente à sentença – cujos requisitos constam do artº 374º, do CPP, e, entre eles, a fundamentação integrada pela enumeração dos factos provados e não provados (alegados pela acusação, pela defesa e resultantes da discussão da causa com relevo para a imputação de crime e determinação da sanção, à luz dos artºs 368º e 369º), bem como por uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, dos fundamentos da decisão, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – já acima se transcreveram os extractos que entendemos como mais significativos da referência à etnia cigana e aos arguidos como cidadãos à mesma pertencentes.

Bastará agora, para aqui os recordarmos, remeter para aquela transcrição.

Em ter julgado e decidido e se ter expressado na sentença nos termos que ali constam, redunda o “comportamento” da autora visado pelo réu.

Com o patrocínio deste, o inconformismo perante a decisão foi levado, em várias das suas perspectivas incluindo a de facto, pela via do recurso, à apreciação das instâncias superiores.

Numa primeira decisão, por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-02-2010 (fls. 228 a 279 e 986 a 1037 dos autos), foi ela anulada, nos termos do artº 379º, nº 1, do CPP, mas apenas para ser comunicada aos arguidos a alteração não substancial de factos nos termos do artº 358º e feita a ponderação (omitida) do regime penal especial aplicável a jovens delinquentes previsto no Decreto-Lei 401/82, de 23 de Setembro.

Reaberta, por isso, a audiência e, após, proferida nova sentença nos mesmos termos e sentido, foi ela integralmente confirmada, sem se lhe referir qualquer mácula, por Acórdão da mesma Relação de 03-12-2012 (fls. 1870 a 1889). Subsequentemente, por Acórdão de 04-02-2013, foi indeferido pedido de aclaração (fls. 1890 e 1891), por Decisão Sumária do Tribunal Constitucional de 03-05-2013, não foi conhecido o recurso interposto por dois dos arguidos (fls. 1892 a 1895), por Acórdão de 17-06-2013 foi indeferida uma reclamação aí apresentada (fls. 1896 a 1904), e por Acórdão ainda do mesmo Tribunal de 15-07-2013, em conferência, foi indeferido o pedido de aclaração e nulidades.

Supõe-se, portanto, que a decisão, relativa a factos ocorridos em Janeiro de 2006, inicialmente sentenciada em 29-07-2008, terá, finalmente, incólume, passado em julgado, notando-se que, foi antes de tudo isso, e, portanto, de se esgotaram as vias jurisdicionais onde eventualmente poderia ser impugnada e alterada em qualquer das suas vertentes (maxime quanto às expressões fácticas impetradas), que, como chamou a atenção o Ministério Público e sublinhou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 23-05-2102 (junto a fls. 870 a 885), se despoletou a reacção alegadamente protagonizada pelo réu e de que trata este processo.

No que concerne à pessoa da Juíza autora, não consta que pelo respectivo órgão disciplinar (o Conselho Superior da Magistratura previsto na Lei – artºs 136º, da Lei 21/85, de 30 de Julho, e na Constituição – artº 217º, nº 1), seja na sequência de qualquer queixa, seja por iniciativa própria, qualquer censura lhe tenha dirigido. Pelo contrário, consta até dos autos que foi entretanto inspeccionada e que o seu desempenho mereceu classificação de mérito.

Em sede de responsabilidade penal e civil, foi, por dois dos condenados e com patrocínio do réu (ponto nº 20 dos factos provados), apresentada, em 29-01-2009, ao Ministério Público uma queixa-crime (fls. 133 a 149 dos autos) referindo-lhe a prática de crimes de difamação e discriminação racial (artigos 180º e 240º, do Código Penal).

Após o respectivo inquérito em que foi constituída arguida e que correu termos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, por despacho de 04-05-2010, conforme melhor consta a fls. 155 a 164 e 1299 a 1312, decidiu-se pelo arquivamento dos autos, concluindo: “1. “Tais expressões não foram produzidas pela requerida a título pessoal, como sua opinião, ou como cidadã. Elas resultam do teor dos depoimentos das testemunhas (elementos da GNR) devidamente escalpelizados na motivação fáctica ao longo de várias páginas. 2. Ao Juiz compete apreciar os factos que lhe são apresentados. Serviu-se para o efeito, dos elementos do processo, nomeadamente das testemunhas e do teor dos relatórios sociais. 3. Julgar pressupõe fazer juízo, sopesando toda a matéria fáctica em ordem a decidir se a mesma integra, ou não, um ilícito criminal (ou outro). 4. O Juiz tem um amplo espaço de liberdade dentro da matéria fáctica enquadrada pela acusação. 5. E para decidir tem que apreciar os factos e usar o veículo necessário à comunicação: a linguagem. 6. A linguagem pode ser mais ou menos incisiva, assim como a decisão pode variar de julgador para julgador, dado que julgar pressupõe a intervenção e sensibilidade humana.”, e que “não se vislumbra qualquer intenção da arguida difamar ou de injuriar os assistentes por causa da sua raça”.

Perante isso, foi deduzida acusação particular subscrita por dois dos arguidos (assistentes) e pelo aqui réu, conforme fls. 166 a 191, na qual requerem o julgamento da autora imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artºs 180º e 183º, nº 1, do Código Penal, e peticionaram, com fundamento em inerente responsabilidade civil, a sua condenação a pagar-lhes a indemnização por danos no valor de 10.000€.

Tal acusação foi rejeitada por decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29-11-2011 (fls. 1163 a 1175) e confirmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2012 (fls. 870 a 885)[26], em que consta:

“São pertinentes as razões de fundamentação constantes da decisão recorrida, quando assinala:

“As expressões que os assistentes consideram ofensivas da sua honra e consideração (algumas das quais não contêm cariz ofensivo e outras não lhes são dirigidas) foram escritas pela arguida na sentença por si elaborada, em que aqueles foram condenados pela prática de um crime de coacção e resistência sobre funcionário, […].
A sentença penal condenatória (especialmente esta) contém sempre factos desfavoráveis ao arguido - os factos provados, cuja enumeração é obrigatória sob pena de nulidade (art°s374°, nº2 e 3('9°, ambos do C.P.P.), são susceptíveis, em abstracto, de integrar um tipo legal de crime e, na medida em que configuram um comportamento criminoso são, objectivamente, uma ofensa à honra. Embora nem sempre, o mesmo pode acontecer nos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, em que o julgador tem que indicar não só as provas ou os meios de prova em que se baseou e fazer uma resenha daquilo que de cada um extraiu mas também demonstrar o raciocínio que lhe permitiu chegar à prova dos factos, sem o que a sentença também é nula.
Por isso, também não é de estranhar que o julgador faça juízos de valor.
No caso dos autos, as expressões que os assistentes consideram difamatórias, para além de constarem dos factos provados, constam também da motivação de facto e da motivação de direito, concretamente da escolha e medida concreta da pena.
Tais expressões, como bem refere o Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu despacho de fls.323/332, tais expressões resultam do teor dos depoimentos das testemunhas (elementos da GNR) devidamente escalpelizados na motivação fáctica e outras foram retiradas dos relatórios sociais, encontrando-se algumas delas entre aspas. As apontadas expressões são usadas, nos factos provados, com um verdadeiro animus narrandi, ou seja, para descrever a ocorrência e, no mais, para fundamentar as premissas do raciocínio da julgadora. Por isso, não podem ficar vulneráveis e sujeitas ao crivo da tipificação penal comum.”
Se a decisão recorrida considerou que “algumas das expressões utilizadas podem ser consideradas polémicas, excessivas e mesmo perfeitamente dispensáveis e desnecessárias.”, logo acrescentou: ”Não contêm, contudo, qualquer ataque pessoal gratuito, sendo dada, relativamente a algumas delas, uma explicação objectiva (veja-se, a propósito, a explicação dada para «clientes») e, analisadas no contexto em que foram escritas, afigura-se claro que o fim visado foi, exclusivamente, relatar os factos o mais próximo possível da forma apartada pela prova, não se vislumbrando intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes ou sequer que tal tivesse sido representado como possível”
Como a propósito conclui a arguida (conclusões 2ª a 5ª) na resposta à motivação: “a acusação particular deduzida consubstancia-se apenas em excertos e passagens da sentença proferida pela Recorrida enquanto Magistrada, que explicita de forma clara, coerente e cabal, a fonte e autoria das afirmações sobre a personalidade e o modo de vida dos Recorrentes, nomeadamente os depoimentos das testemunhas naquele processo, assim como, dos relatórios sociais, e outros documentos apensos ao processo.
Além do mais, muitas das expressões alegadamente ofensivas estão situadas na secção da sentença "Da escolha e medida concreta da pena", que, naturalmente contém expressões desfavoráveis ao arguido.
A Recorrida, na elaboração da sentença, teve apenas como preocupação principal, fazer justiça, não se indicando qualquer facto na acusação particular que suporte a intenção da Recorrida de difamar ou injuriar os Recorrentes.
Ainda que se concluísse que hipoteticamente a referida fundamentação fosse considerada incisiva ou contundente, tais expressões são destituídas do elemento subjectivo respectivo, pelo facto de a Arguida ter agido no rigoroso cumprimento de um dever e, por isso, não censuráveis penalmente, como resulta do artigo 31.º, n.º 2, alínea c), do CP.”
As expressões utilizadas pela arguida em decisão judicial no exercício da função jurisdicional, de harmonia com os seus poderes legais de cognição, no âmbito do objecto do processo, não resultam de actuação pessoal, particular, de sua mera invenção, de forma a que delas se retire que a arguida quis ofender a honra e consideração dos Assistentes; outrossim, as explica com fundamento na prova que indica e delas retirando a fundamentação da pena, pelo que não extravasam os limites legalmente exigidos pela decisão, circunscrevendo-se assim, no exercício de um direito e no cumprimento de um dever imposto por lei (o direito de julgar perante o dever de administrar justiça), o que exclui a ilicitude nos termos do artº 31º nº 1 al,. b) e c) do CP, e, por isso, não constitui ilícito criminal.”[27]

Em suma: ignora-se qualquer censura à decisão e aos termos da respectiva sentença, bem como à pessoa da autora que a elaborou e proferiu, seja a propósito da sua reapreciação jurisdicional e por causa daquelas, seja em sede de responsabilidade criminal, civil ou disciplinar, pelos meios e nas instâncias para tal vocacionados e com fundamento na sua própria conduta.

Não será demais lembrar que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhes, nesse exercício, a defesa dos direitos e interesses (legalmente protegidos) dos cidadãos e reprimir a violação da legalidade democrática, com independência e sujeição única à lei (neste dever se compreendendo o de respeitar os juízos de valor legais – artºs 202º e 203º, da CRP, 2º, nºs 1 e 2 e 22º, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) e 4º Lei 21/85, de 30 de Julho (EMJ).

Apesar de serem “órgãos complexos”[28], não há dúvidas que a sua dimensão soberana é corporizada pelo juiz e manifestada nas decisões deste, enquanto proferidas no exercício da função jurisdicional.

Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões ou em razão do exercício das suas funções, salvo casos especialmente previstos na lei em que podem ser sujeitos a responsabilidade civil (neste caso, apenas mediante acção de regresso do Estado com fundamento em dolo ou culpa grave e se a falta não constituir crime), criminal ou disciplinar – artºs 216º, nº 2, da CRP, 4º, nº 2, da LOSJ, e 5º, do EMJ.

Estas e outras garantias constitucionais e legais relativas ao seu Estatuto enquanto condição de exercício da função, protegem não só o Juiz mas também a comunidade.

À pessoa daquele, todavia, como a qualquer outra pelo simples facto de o ser, ligam-se direitos de personalidade, como o direito ao bom nome e reputação, à imagem, integridade moral, identidade pessoal, reserva da intimidade da vida privada – artºs 25º e 26º, da CRP.

A protecção do direito à honra e ao bom-nome está, aliás, prevista na lei penal (artº 180º do Código respectivo) e na lei civil.

Assim, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, garantindo-lhes, além do mais, a indemnização, pela ofensa ilícita ou ameaça de ofensa, ou pelos danos causados no seu crédito ou bom nome por quem afirmar ou difundir um facto capaz de o prejudicar, com fundamento em responsabilidade civil – artºs 70º, 483º e 484º, do CC.

Quando, como no caso, a alegada ofensa provém de acção ou omissão perpetrada pela pessoa de um advogado na de um juiz, ocorre em circunstâncias relacionadas com processo penal que este decidiu condenando os arguidos e cuja defesa foi por aquele patrocinada e se propala pelos meios de comunicação social, atenta a matéria em jogo e a qualidade dos interessados e respectivos papéis, desde logo se coloca em contraponto com os direitos deste (enquanto cidadão e juiz), entre outros, o direito à liberdade de expressão daquele (enquanto cidadão e advogado mandatário).

A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça – artº 208º, da CRP.

No exercício da sua actividade, os advogados devem agir com total independência e autonomia técnica e de forma isenta e responsável, encontrando-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão – artº 12º, nº 3, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto.

As referidas imunidades estão desde logo previstas no artº 13º, dessa lei, em ordem a assegurar aos advogados o exercício dos actos próprios de forma isenta, independente e responsável.

A Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), enquanto que a Lei 49/2004, de 24 de Agosto, define o sentido e o alcance dos actos próprios de advogados.

Ambas estabelecem o que se considera como mandato forense (artºs 62º e 2º, respectivamente).

No âmbito do EOA, o artº 67º, comete aos magistrados o dever de assegurar aos advogados, aquando do exercício da sua profissão, além do mais, tratamento compatível com a dignidade da advocacia, ao passo que o artº 90º impõe a estes o correspectivo dever de para com aqueles proceder com urbanidade.

Aliás, nas relações com os tribunais – com os juízes – deve o advogado actuar com diligência e lealdade na condução do processo, sendo-lhe vedado enviar ou fazer-lhes enviar quaisquer memoriais ou, por qualquer forma, recorrer a meios desleais de defesa dos interesses das partes, devendo exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo de defender adequadamente os interesses do seu cliente, e obstar a que os seus clientes sejam menos correctos tanto com advogados da parte contrária como com os magistrados – artºs 103º e 105º, do EOA.

De acordo com o artº 76º, o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

No capítulo da deontologia profissional, entre os deveres a cujo cumprimento pontual e escrupuloso está adstrito e que tem de se abster de negligenciar, estabelecidos por lei ou decorrentes dos usos, costumes e tradições, contam-se os de ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce e de actuar com honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade, além de manter sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, seja esta resultante dos seus interesses ou de influências exteriores, mormente no intuito de agradar ao cliente, colegas, tribunal ou terceiros – artºs 83º e 84º.

Obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias, constitui ainda dever especial do advogado para com a comunidade não advogar contra o direito, recusar os patrocínios que considere injustos, recusar a prestação de serviços quando suspeite seriamente que estes visam obter resultados ilícitos e não se servir do mandato para prosseguir objectivos que não sejam profissionais – artº 85º, nº 2, alíneas a), b), d) e g).

No que tange à discussão de questões profissionais pendentes, não pode o advogado sobre elas pronunciar-se publicamente, na imprensa ou noutros meios de comunicação social, salvo excepcionalmente mediante autorização da sua Ordem, precedida de pedido devidamente justificado, estando em causa o direito de resposta e como forma de prevenir ou remediar ofensa à dignidade, direitos e interesses legítimos do cliente ou do próprio – artº 88º, nºs 1 a 3.

Ao dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sobrepõe-se o de cumprimento de normas legais e deontológicas – artº 92º, nº 2.

Deve dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca – artº 95º, nº 1.

A responsabilidade disciplinar que do incumprimento de qualquer destes deveres lhe advenha é independente da responsabilidade criminal ou civil – artºs 111º, nº 1, e 99º, nºs 1 e 2.

Uma vez que os direitos dos seus constituintes enquanto arguidos no processo criminal em que responderam foram já neste exaustivamente debatidos e a pretensa ofensa naquele cometida pela julgadora foi apreciada e definitivamente afastada no inquérito penal em que contra esta se queixaram e a demandaram depois civil e criminalmente e, portanto, o concomitante exercício de qualquer direito por parte deles – ou do réu, concernente ao seu estatuto ou ao exercício do patrocínio – está esgotado, tem de ter-se presente que aqui está em causa apenas ou sobretudo a responsabilidade (civil) do réu pelos seus actos.

Actos que, relativos à apresentação da queixa-crime e dedução da acusação e à sua actuação junto da comunicação social, na medida em que exorbitem o seu papel de advogado e não sejam justificados em razão do seu múnus, o poderão responsabilizar no plano pessoal e de cidadania.

Plano este em que, então, se defrontam os respectivos direitos fundamentais de um e de outro e que, em caso de colisão gerada por acto ilícito, culposo e causador de danos, convoca a responsabilidade civil para os reparar, nos termos dos artºs 483º e sgs e 562º e sgs, do Código Civil.

Na verdade, todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, mas às pessoas lesadas em consequência de tal exercício é assegurado o direito à indemnização pelos danos sofridos – artº 37º, nºs 1 e 4, da Constituição.

Como consta do Acórdão do STJ de 29-01-2015, atrás citado, “a liberdade de expressão do pensamento é um direito de personalidade que constitui um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, importando, todavia e porque o seu exercício pode colidir com direitos antinómicos (como seja o direito à honra) e não menos relevantes, que o ordenamento jurídico disponha de mecanismos (inclusive, a compressão de um dos direitos colidentes) que assegurem uma exercitação harmónica dos mesmos”, “o abuso da liberdade da expressão cometido através da imprensa é fonte de responsabilidade civil extracontratual” mas na ponderação dos respectivos pressupostos legais desta “há que ter em conta o circunstancialismo em que decorrem os factos, bem como a qualidade dos visados”, “quando esteja em causa uma figura pública – como é o caso de um juiz, sobretudo se estiver envolvido em casos de acentuado relevo social –, a tutela da honra tem de tomar em consideração o seu comportamento, dado que, pela escolha profissional que assumiram, as pessoas que se integram nesta categoria estão sujeitas a uma maior curiosidade por parte dos meios de comunicação social …, sendo que, nessas hipóteses, bem se compreende que somente os casos que comportam nítida ofensa da dignidade devem merecer censura”, “sendo a licitude delimitada pela necessidade de a crítica se manter dentro do confronto de ideias, na apreciação e avaliação de actuações ou comportamentos de outrem, com a correspondente emissão de juízos racionais apreciativos ou depreciativos, não podendo resvalar para considerações ou argumentação ad hominem”.

Refere-se no Acórdão do STJ, de 26-01-2011[29], citando o Prof. Costa Andrade[30], que, na jurisprudência alemã, é pacífico o entendimento “de que a crítica pela actuação das entidades públicas é ilimitada, afastando-se os critérios do bem fundado ou da verdade, em oposição àquele outro exigindo uma crítica objectivamente proporcionada, fundada e pertinente, valendo aquele entendimento para os actos da administração pública, sentenças, despachos dos juízes, promoções, decisões e desempenhos dos órgãos de soberania ou do Governo”.

Acrescenta-se que “só não será assim se a crítica cair na constelação típica, numa irredutível afronta à exigência da consideração e respeito da pessoa”, pois sendo certo que “o exercício de funções de magistrado não tem que revestir uma «unção carismática» como que um «atributo metafísico»”[31], “há uma linha de fronteira abaixo da qual se não pode descer em termos de protecção da honra e consideração da pessoa sob pena de aviltamento e atentado inqualificável; em nome de uma liberdade irrestrita não pode desculpabilizar-se uma ofensa à pessoa humana e muito menos se gratuita, sem fundamento, pois, mais intolerável”.

No domínio penal, o Código (artºs 180º, 181º e 184º), a propósito da tutela da honra, pune a imputação a uma pessoa de um facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou a formulação de um juízo sobre ela e distingue a honra de consideração, punição que é agravada se a vítima for magistrado no exercício de funções ou por causa delas mas cuja ilicitude pode ser excluída considerando a ordem jurídica na sua totalidade, designadamente se a ofensa decorrer do exercício de um direito ou no cumprimento de um dever (artº 31º, nºs 1 e 2, alíneas b) e c), sendo precisamente no confronto dialéctico com o exercício da liberdade de expressão que esse balanço se impõe.

No domínio civil, esse confronto convoca as normas da colisão de direitos, do abuso de direito, da limitação voluntária conforme aos princípios de ordem pública (artºs 334º, 335º e 81º, CC).

Como se refere no Acórdão do STJ, de 03-06-2009[32], “Uma tradição longamente firmada no seio das democracias admite com largueza a crítica e a opinião em certos domínios sociais e sobretudo políticos, aqui envolvendo mesmo os protagonistas. Todavia, a crítica e a opinião não podem ter como único sustentáculo, mesmo aí, o ataque pessoal, sobretudo quando esse ataque é imotivado, cego, ditado pela paixão ideológica ou por um espírito de vindicta ou de ajuste de contas”, “Se é verdade que o exercício da liberdade de expressão e de comunicação exigem, muitas vezes, um recuo da tutela da honra, esse recuo há-de ser justificado como meio necessário, adequado e proporcional para o exercício eficaz daquele direito”.

A crítica não pode, pois, constituir “um ataque directo à pessoa” que nada tenha a ver com uma “crítica da sua actuação”, mas, para o facto ser penalmente punível, nem sequer necessário é que atinja efectivamente a honra e consideração do visado e produza um resultado danoso efectivo de tal bem, bastando a susceptibilidade para ofender qualquer das dimensões tipicamente tuteladas (facto, juízo, suspeita), seja na concepção fáctica de “honra interior ou subjectiva” (numa perspectiva de autoavaliação) ou de “honra exterior ou objectiva” (na perspectiva de heteroavaliação, também referida por reputação) ou na concepção normativa (em que se subdistinguem o aspecto social (reconhecimento social) e a dimensão pessoal (valor pessoal/individual de cada um pelo facto de ter nascido).

Assim feito o enquadramento normativo em que se movem pessoal, funcional e profissionalmente autora e réu, em particular o entendimento sobre o modo como podem harmonizar-se direitos que, como é o caso do direito à honra e à livre expressão, frequentemente surgem em rota de colisão, vejamos agora, em síntese, o que se passou.

-No dia 29-07-2008, a autora, no exercício das suas funções de Juíza de Direito do Tribunal de Felgueiras, procedeu à leitura de uma sentença por si elaborada em que condenou quatro arguidos de que o réu advogado nesse processo era defensor, por crime de resistência e coacção sobre agentes da GNR, sendo-o dois deles em pena de prisão efectiva (ponto 1 a 3 dos factos provados);
-Da parte da sentença (constante de fls. 37 a 71) relativa aos factos provados e não provados, à fundamentação da decisão quanto a eles e da escolha e determinação da medida das penas, já atrás foi feita resenha dos passos mais impressivos no que à questão interessa, para ela ora se remetendo;
-A D… elaborou uma notícia sobre o caso que serviu de fonte às demais (ponto 11 e fls. 72 e 73);
-A essa notícia foi dado o título “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros” e o subtítulo de “A magistrada teceu considerações não só em relação aos cinco acusados da agressão aos agentes da GNR de Felgueiras, mas também generalizou a toda a comunidade cigana” (fls. 72 e 73);
-No corpo da notícia, além de se referir a contenda entre “moradores” de um Bairro habitacional em Felgueiras – “um grupo de cidadãos de etnia cigana” – e “agentes da GNR”, que constituiu objecto do processo e razão da condenação, citavam-se alguns dos trechos da sentença – os que mais ligavam negativamente os arguidos e a sua etnia –, ora se atribuía esta e aqueles à “magistrada”, ora à “juíza” e, por seis vezes, a “B…” (a autora), indicando-se que a D… teve acesso à sentença e citando-se, no discurso directo, declarações indicadas como tendo sida colhidas ao réu (fls. 72 e 73);
-O teor das declarações reportadas era: “São tecidas considerações e comentários que merecem o repúdio e se afiguram desadequadas e desnecessárias” e “Estamos a viver a ressaca pós-Quinta da Fonte, que sendo aparentemente politicamente correcta e populista, pode estigmatizar uma etnia” (fls. 72 e 73);
-Citando tal notícia da D… como fonte, no dia seguinte à leitura (30-07-2008), em vários desses meios apareceu como notícia principal ou em lugar de destaque a manchete “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros” e, no respectivo conteúdo, que a A. se havia referido não aos arguidos, mas à comunidade cigana em geral como “pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes” que durante os acontecimentos “as mulheres e as crianças guincharam selvaticamente” e que no levantamento sócio-económico da vida dos arguidos, a A. havia escrito que as condições de higiene eram “fracas, não por força do espaço físico em si, mas pelo estilo de vida da sua etnia (pouca higiene)” (pontos 4, 5 e 11);
-No mesmo dia (30-07-2008), o réu, em declarações à D…, disse: “claramente houve expressões desajustadas que se referiam não só aos arguidos, que eram maioritariamente ciganos, mas também à própria etnia. Não se pode combater os problemas com estigmatização nem com utilização de expressões como clientes habituais de postos, …, ou dizer que as mulheres e as crianças guinchavam, porque quem guincha são os animais” (ponto 6 e fls. 99 dos autos);
-Ainda no dia 30-07-2008, a então Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural, AP…, em declarações feitas a vários meios de comunicação social afirmou ter ficado “absolutamente perplexa como é que numa sentença se fazem acusações tão genéricas relativas a uma comunidade, tomando a parte pelo todo. Uma coisa é adjectivar a conduta dos arguidos (da qual me abstenho) e outra coisa é tomar toda uma comunidade com cerca de 50 mil pessoas pelo comportamento destas cinco pessoas, destes cinco arguidos” e ainda “assim que tivermos a sentença e depois de analisada, ponderamos a hipótese de fazer uma queixa ao Conselho Superior de Justiça” (ponto 14);
-No dia imediato (31-07-2008), o “AN…”, referindo com fonte a D…, publicou um artigo do mesmo jaez da notícia elaborada e difundida por esta (pontos 9 e 11);
-Também neste dia (31), o “AK…”, sob o mesmo título, noticiou o acontecimento, enfatizando que a autora se referia à comunidade cigana em geral, e incluía declarações do Professor Universitário AL…, presidente da AM…, considerando um “discurso lamentável quer dos militares da GNR, quer da juíza”, opinando que o “Tribunal não pode ter este discurso. Tem de ser imparcial…”, (pontos 7 e 8);
-As peças do “AK…” e do “AN…”, identificam o nome e o tribunal da autora e aludem a declarações do réu, nas quais este considerou que “São tecidas considerações e comentários que merecem o repúdio e se afiguram desadequadas e desnecessárias” (ponto 10);
-A publicação destas notícias deu origem e comentários na blogosfera, entre os quais se referia a autora como Juíza e pelo nome próprio com o epíteto de “xenófoba” e atribuindo-lhe “alarvidades” (pontos 12 e 13);
-As referidas notícias assentavam em excertos da sentença resultantes da percepção colhida pela autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos de que tomou conhecimento no processo, excertos esses apresentados em termos descontextualizados (pontos 15 e 16);
-No entanto, o réu tinha conhecimento que na sentença a A. havia explicitado e fundamentado a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formulados e que as expressões da sentença que foram objecto das notícias referidas nos factos provados nos pontos 4, 5, 7 e 9 assentavam naquela percepção colhida pela autora a partir dos referidos meios de prova (pontos 43 e 44);
-O réu conhecia os efeitos que o conjunto de tais notícias no âmbito das quais fez declarações aos órgãos de comunicação social, tinham sobre o bom- nome e a imagem da autora (ponto 47);
-A D…, ainda no dia 31-07-2008, rectificou a notícia, divulgando uma declaração: “Anula-se a notícia com o título “Juíza de Felgueiras diz que ciganos são marginais e traiçoeiros” (8103044), de 30 de Julho de 2008, por o seu conteúdo não corresponder inteiramente aos factos narrados no acórdão” (ponto 17);
-A referida Comissária, AP…, reconheceu que “a notícia inicialmente divulgada induz em erro, não se confirmando, felizmente, as afirmações de teor pejorativo em relação à comunidade cigana”, pois, “constatou que a magistrada citava testemunhas que falaram no decorrer do processo e que, nas suas afirmações, se dirigia apenas aos arguidos, não incorrendo, por isso, em qualquer insulto generalizado” (fls. 113 e 117);
-No “AQ…” e no “AU…” do dia 02-08-2008, pelo comentador AS… e pela jornalista AT… foi escrito, além do mais, respectivamente, que “muito embora a sentença se tenha sempre referido àqueles arguidos em concreto, o advogado de defesa entendeu que o seu alcance ia muito para além disso e reflectia uma visão xenófoba sobre toda a comunidade cigana” e que “na sentença, a juíza consegue nunca fazer comentários xenófobos” (pontos 18 e 19).

Além disto, estando ainda a sentença proferida pela autora em recurso no Tribunal da Relação de Guimarães interposto pelos arguidos, com patrocínio do réu:
-dois deles, em 29-01-2009, também patrocinados pelo réu, apresentaram uma queixa-crime no Ministério Público contra a autora, pelos crimes de difamação e de discriminação racial, conforme fls. 133 a 149 dos autos, consignando haver ”manifesta intenção de ofender os participantes na sua honra e consideração social e em virtude da sua raça ou origem étnica” (ponto 20);
-na sua edição do dia 18-05-2009, o “AK…” publicou um artigo intitulado “Ciganos processam juíza por sentença «difamatória»”, em cujo teor era referido que “… C…, o advogado dos queixosos, recusa comentar o processo-crime mas lamenta, “conforme resulta de várias reacções públicas, especialmente na blogoesfera”, que “ainda existam muitos portugueses que defendam e elogiem comportamentos racistas e xenófobos” (pontos 23 e 42);
-no inquérito penal originado pela referida queixa, em que a autora foi constituída arguida e chamada a interrogatório pelo Ministério Público, este decidiu, por despacho de 04-05-2010, arquivar os autos, conforme fls. 155 a 164, designadamente por entender que “tais expressões não foram produzidas pela requerida a título pessoal, como sua opinião”, considerando que o juiz “para decidir tem que apreciar os factos e usar o veículo necessário à comunicação: a linguagem…que pode ser mais ou menos incisiva, assim como a decisão pode variar de julgador para julgador” e por não vislumbrar “…qualquer intenção da arguida difamar ou de injuriar os assistentes por causa da sua raça” (ponto 21);
-perante isso, os dois queixosos deduziram acusação particular, subscrita pelo réu, imputando à autora um crime de difamação (artº 180º, do C. Penal) e pedindo a sua condenação a pagar-lhes indemnização de 10.000€, conforme fls. 166 a 191 (ponto 22);
-O Jornal “AV…” de 03-02-2010 publicou um artigo sobre a parcial anulação da sentença em causa (ponto 2), nele atribuindo ao réu a seguinte frase: “pode permitir eliminar da sentença expressões que são consideradas racistas e xenófobas e cujo uso não se justificava” (ponto 24);
-o réu sabia que a divulgação pela comunicação social do processo-crime contra a autora deduzido, continuaria a difundir uma imagem negativa dela (ponto 46);
-o réu, na qualidade advogado, tinha conhecimentos técnicos para avaliar se, na sentença em causa (ponto 2), a autora cometeu os crimes referidos na queixa e na acusação particular apresentadas no referido processo-crime (ponto 45).

Perante o quadro fáctico acabado de sintetizar e que remonta ao apurado em 1ª instância e ora fixado –, o tribunal a quo cindiu os actos praticados pelo réu em dois grupos:

-o primeiro, relativo à promoção das notícias na comunicação social;
-o segundo, referente à queixa-crime patrocinada e à acusação particular subscrita pelo réu no processo-crime.

Concluiu, quanto a estes, haver responsabilidade civil do réu e com tal fundamento o condenou.

Entendeu, pelo contrário, quanto àqueles, não se verificar o pressuposto da ilicitude.

O tribunal a quo, para julgar verificados os elementos fundamentadores do direito à indemnização por que condenou o réu, depois de salientar a qualidade de advogado deste e o patrocínio dos queixosos que ele teve a seu cargo, várias das normas estatutárias a que este está vinculado (e que já citamos também acima), a responsabilidade que sobre ele impende e prevista mesmo no respectivo diploma, considerou o seguinte:

“No caso vertente, o Réu foi a pessoa juridicamente habilitada que patrocinou os queixosos no processo de natureza crime movido contra B….
Sendo o aqui Réu tecnicamente dotado de conhecimentos jurídicos para iniciar e dar seguimento ao referido processo, é inquestionavelmente sua a responsabilidade pelo aconselhamento, autónomo e independente, dos seus clientes, concretamente plasmado na descrição dos factos e respetiva interpretação jurídica constantes da queixa crime e da acusação particular deduzidas contra a aqui Autora.
Como vimos, estava estatutariamente vedado ao Réu assumir uma posição jurídica diversa da que, em consciência, considerasse correta, para agradar aos seus clientes.
Aqui chegados, importa apurar se a apresentação da queixa-crime e a dedução da acusação particular contra a Autora, constituíram, no caso vertente, atos ilícitos e culposos, suscetíveis de produzir a responsabilidade civil do Réu.
A apresentação de queixa e a dedução de acusação particular constituem instrumentos processuais necessários para os cidadãos iniciarem e darem continuidade ao procedimento criminal relativo a determinado tipo de infrações penais (cfr. artigos 49º e 50º do Código de Processo Penal e 113º a 117º do Código Penal).
São, por isso, instrumentos para o pleno exercício do direito individual à ação penal por parte do Estado.
Apesar de estarmos perante instrumentos processuais destinados ao exercício de direitos, o seu uso abusivo, contrário às finalidades previstas por lei, torna-se ilegítimo e ilícito, tal como o exercício abusivo de um outro direito (artigo 334º do Código Civil).
O exercício abusivo do direito de queixa pode até constituir crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º, n.º 1 do Código Penal, quando o agente denuncie factos que saiba serem falsos, com intenção de fazer desencadear procedimento contra o denunciado.
No caso vertente:
a) a queixa crime apresentada com o patrocínio do Réu, imputa à Autora a prática dos crimes de difamação e de discriminação racial, previstos nos artigos 80.º e 240.º do Código Penal […];
b) a acusação particular subscrita pelo Réu, imputa à Autora a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º e 183º n.º 1 do Código Penal […].
Em qualquer dos casos, o Réu patrocina iniciativas processuais contra a Autora em que se não queda por um posicionamento crítico relativamente ao modo escolhido pela Autora para exprimir aquilo que da prova produzida em julgamento colheu e traduziu na decisão.
O alcance da posição patrocinada pelo Réu na queixa e na acusação particular, vai muito para além da mera crítica à linguagem usada na sentença do processo […], imputando agora à própria Autora a emissão, em nome próprio, de juízos de valor contidos em certas passagens da redação e com intenção de ofender os queixosos na sua honra e consideração social, em razão da sua origem étnica.
Como resulta da exposição antecedente sobre as passagens da redação da sentença proferida pela Autora, o entendimento sustentado pelo Réu não é aceitável.
Independentemente do eventual excesso ou desnecessidade de pontuais excertos da sentença elaborada, esta não deixa margem para dúvida razoável de que a Autora pudesse estar a exprimir uma posição pessoal contra os arguidos ou contra o grupo étnico ao qual pertenciam.
A decisão é, em si mesma, reveladora de que a Autora deu conta da perceção que colheu da prova produzida em julgamento, pois que as expressões se encontram na descrição por súmula de testemunhos produzidos em julgamento, num facto provado sobre as condições pessoais de um arguido (fundado em relatório social junto) e na ponderação dos aspetos desfavoráveis provados para efeito de determinação da medida concreta da pena.
A propósito, recorda-se aqui mais uma parte da douta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.11.2011 […].[33]
O descrito circunstancialismo levou à rejeição, por manifestamente infundada, da acusação particular deduzida contra a ali arguida B….
Do conjunto das considerações antecedentes, afigura-se que o Réu patrocinou como advogado, um procedimento criminal contra a aqui Autora, fundado na imputação de factos praticados no exercício funcional desta como Juíza de Direito, descabido e totalmente inconsistente, por ser manifesto que não traduziam opiniões pessoais da Autora relativamente aos ciganos como grupo étnico e que não teve qualquer intenção de ofender a honra e a consideração dos assistentes.
Estranha-se, aliás, que num momento inicial, logo depois de proferida pela Autora a primeira sentença condenatória dos arguidos, o Réu tenha mantido as suas declarações críticas num registo que não lhe imputa a intenção de injuriar, difamar ou discriminar os arguidos[34], para mais tarde, quando a polémica inicial provocada pela falta de rigor noticioso se havia já esbatido, pela clarificação pública do contexto em que as expressões foram usadas naquela decisão, vir sustentar uma tese claramente infundada.
A atuação em destaque lesou direitos de personalidade da Autora com acolhimento legal e constitucional […].
Exigia-se ao Réu, na qualidade de advogado dotado dos conhecimentos técnicos necessários para avaliar se, na sentença proferida, a Autora cometeu os crimes que lhe foram imputados, uma outra atuação, consentânea com a realidade que uma leitura desapaixonada e objetiva põe em evidência.
Tanto mais que o Réu tinha perfeito conhecimento da sentença, na qual a Autora havia explicitado e fundamentado, a razão de ser de certas declarações sobre a personalidade e o modo de vida dos arguidos que nela são formuladas e que as expressões assentavam na perceção colhida pela Autora dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos existentes no processo.
Por isso, embora se não tenha provado que o Réu agiu intencionalmente para lesar os descritos direitos de personalidade da Autora, afigura-se certo que a sua atuação é, no mínimo, censurável por não ter atuado com a diligência e o zelo que, em face das circunstâncias do caso, seria exigível a um homem médio, com as mesmas aptidões e conhecimentos técnico-jurídicos que possuía.
Crê-se até, que estamos perante um caso de negligência grosseira, dada a profunda inconsistência da tese propugnada no processo-crime movido à aqui Autora.
Estamos, portanto, uma ação voluntária do Réu - o patrocínio de iniciativas processuais de natureza criminal contra a Autora –, ilícita – violadora de direitos de personalidade da visada -, culposa – censurável a título de negligência grosseira -, causadora de danos, que reúne todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (artigo 483º do Código Civil).
Termos em que se conclui que o Réu é responsável civil pelo ressarcimento dos descritos danos sofridos pela Autora em consequência da atuação descrita sob o ponto ii. em análise.”[35]

Vejamos as discordâncias das partes.

C1) Recurso do réu

Na sua apelação e quanto à parte de cuja apreciação ora se trata, advoga o réu (conclusão 21ª) que a sua actuação surge em execução do mandato judicial conferido pelos seus constituintes, representativo, e, portanto, que os actos jurídicos praticados por ele produzem efeitos directamente na esfera jurídica daqueles, e não na própria, nos termos dos artºs 258º e 1178º, do Código Civil.

Ora, só é assim quanto a actos realizados em nome dos representados e que se confinem aos limites dos poderes que lhe competem e para que esteja mandatado.

Não é este o caso.

O réu, como resulta dos factos apurados e da fundamentação jurídica da sentença, vem responsabilizado por actos próprios praticados (por acção ou omissão) que exorbitam o seu papel de defensor no primeiro processo em que os seus patrocinados eram arguidos e, no segundo, em que eram queixosos e, assim, fora daquele exercício – o que aquelas normas não acolhem, as do seu Estatuto de Advogado (Lei 15/2005, de 26 de Janeiro) não permitem e, afinal, violando culposamente os direitos da autora.

Por aí não se vê, nem mais ele refere a tal propósito (como já não referira na contestação), que ponha em causa a sua responsabilidade civil, nos termos em que a sentença a delineia.

Na conclusão 22ª, limita-se a citar o artº 208º, da Constituição da República, e, nas alegações, a referir que a sentença faz tábua rasa deste preceito.

Não se vê como, uma vez que tal norma apenas estatui que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato, regula o patrocínio forense e proclama este justamente como essencial à administração da justiça.

Nunca tal exercício esteve em causa enquanto a conduta do réu a ele se confinou nos processos respectivos e que, aliás, desenvolveu através das instâncias e até ao Tribunal Constitucional, como bem mostram estes autos.

As leis processuais e orgânicas, tal como o seu Estatuto, concretizam as referidas imunidades necessárias e as regras de exercício do mandato forense.

Como refere a passagem da obra que cita[36], são “individualizadas através da lei, a imunidade civil ou penal por todas as declarações pertinentes feitas de boa fé, por escrito ou em alegações orais ou no âmbito das suas intervenções profissionais perante um tribunal judicial ou outro ou uma autoridade administrativa”.

Porém, como é bom de ver e a sentença recorrida bem demonstra, a conduta do réu espelhada nos factos provados, não se traduz naquelas “declarações” nem se confina àquele “âmbito”, exorbitando-a e visando a autora já não enquanto juíza e decisora, mas como pessoa, saindo fora dos caminhos possíveis para, nos próprios tribunais ou perante o seu órgão disciplinar, alcançar a reparação do eventual erro da sentença ou o sancionamento de qualquer conduta incorrecta dela enquanto magistrada.

Trata-se, pois, de conduta objectivamente apartada do seu papel de advogado e mandatário e impulsionada por atitude subjectiva reprovável.

As referidas imunidades não a cobrem nem a tornam lícita. Assim tendo entendido o tribunal a quo, nos termos que exarou e para os quais se remete, não se vê como possa ela ter feito “tábua rasa” da citada norma.

Na conclusão 23ª, defende o réu que o juízo de responsabilidade formulado pelo tribunal reconduz-se à decorrente da litigância de má fé, devia ter sido apreciado no processo crime movido à autora e dar-se conhecimento à Ordem dos Advogados para que esta aplicasse eventual sanção.

Acontece que, no processo penal em causa, a responsabilidade primeira a esse título – a havê-la e a admitir-se o seu exercício nele, o que não é pacífico, apesar do Acórdão que cita e que não a enjeita em casos evidentes[37] –, tal como no processo civil cujas normas seriam as aplicáveis subsidiariamente por força do artº 4º do Código respectivo, radica na conduta da parte litigante (no caso, os queixosos). O mandatário só poderá ser responsabilizado se e na medida em que se lhe reconheça responsabilidade pessoal e directa nos actos praticados em nome daqueles (aí sim, com efeitos na sua esfera jurídica) e pelos quais se revelou a má fé.

Nesta situação, não estão em causa apenas actos estritos do processo enquanto tais nem, por isso, a actuação no âmbito deste, mas sim a conduta própria que os extravasa assumida pelo réu, marginal aos interesses e fins dos queixosos, decidida e realizada sob sua responsabilidade, projectando-se fora daquele e sem relação directa com o litígio (traduzido na queixa), direccionada exclusivamente à pessoa da autora, e que, assim, objectiva e subjectivamente, só a ele é imputável.

Como se refere no citado Acórdão “na litigância de má fé, o que está primordialmente em causa é a ofensa ao valor público da boa administração da justiça e só reflexamente o interesse da parte lesada”.

Ora, sendo principalmente os direitos da autora, como pessoa e magistrada, que foram postos em causa pela actuação do réu e desta resultando a lesão directa dos seus interesses, consumada na comunicação social e perante a opinião pública, como ele sabia que continuaria a acontecer e com cujo resultado se conformou sem cuidar de nada fazer para o evitar, mais do que ser visada por uma queixa crime, afigura-se-nos claro que a conduta e o dano não coincidem nem se cingem aos que poderiam ali ter lugar no âmbito do referido instituto, nem, por isso, a sua exigência e decisão, se harmonizam com o respectivo regime (a verificar-se a litigância de má fé, seriam os queixosos condenados em indemnização pelo tribunal e, eventualmente numa quota desta, o seu advogado, pela respectiva Ordem).

Na conclusão 24ª, refere o réu, e mais não diz nas alegações, que os denunciantes no processo penal não foram objecto de juízo de má fé ou de negligência grave nos termos do artº 520º, do Código de Processo Penal.

Nada daí concluindo, resta deixar consignado que tal norma se refere à responsabilidade por custas e nada tem a ver com a responsabilidade civil a que aqui o réu é chamado.

Na conclusão 25ª, defende também que, não tendo, em relação a ele e aos mandantes, sido apreciada e decidida, no processo penal, a eventual responsabilidade por litigância de má fé, está agora precludida a possibilidade de, neste, a sua conduta ser julgada por efeito do caso julgado material, excepção dilatória que devia ter sido declarada oficiosamente.

Não se verificam os pressupostos de tal excepção, evidentemente, nem nunca ela foi alegada e apreciada.

Acrescenta, ainda, na conclusão 26ª, que é necessária muita cautela e bom senso para se afirmar que a parte litiga com má fé e que se deve exigir a demonstração inequívoca do dolo ou culpa grave para se evitarem condenações injustas quando a verdade obtida nos autos deriva em grande parte da prova testemunhal. E, na 27ª, que a conduta da autora, no processo crime em que proferiu a sentença poderia em abstracto integrar os tipos penais que lhe foram imputados na queixa-crime e na acusação particular, pelo que não se verifica qualquer negligência grosseira, como referido na sentença.

Nas alegações esgrime com a citação de jurisprudência relativa àquele instituto que culmina na afirmação de que a autora não provou os pressupostos da responsabilidade civil (repetida, depois, na conclusão 28ª), designadamente qualquer negligência, pelo que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente.

Ora, além de nenhum efeito retirar das ditas conclusões, é patente que nelas se refere ao regime da litigância de má fé, apesar de a condenação não assentar, claro, em tal regime.

Não se impõe nem é necessário, por isso, proceder a uma reapreciação ou reverificação dos pressupostos da indemnização e da fixação do quantum desta previstos no quadro daquele, nem sequer nos da responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos em geral, pelo tribunal a quo julgados verificados, uma vez que, neste âmbito, o réu não apresenta qualquer argumento que ponha em causa o decidido e os respectivos fundamentos.

São, assim, inconsequentes tais alusões.

Trata-se, enfim, neste conjunto de conclusões (21ª a 28ª), de aspectos que se revelam manifestamente inatendíveis, quer pelo seu patente demérito, quer porque nem chegam a constituir verdadeiras questões, quer ainda porque apresentadas como inteira novidade, uma vez que nunca colocados ante o tribunal recorrido e jamais por este apreciadas, por isso nem sequer, em rigor, sendo passíveis de reapreciação pelo tribunal ad quem e, portanto, objecto da apelação.

Ainda assim, porque, na conclusão 31ª, o réu parece de novo aflorar a inexistência de culpa, remete-se para a factualidade apurada relativa à sentença e à síntese dos extractos mais “polémicos” acima feita e para o que o tribunal recorrido, na parte acabada de transcrever a tal propósito, bem pondera e com cujo juízo se concorda.

Por isso, sempre a referida conclusão, ou o que nas demais se considere estar referido quanto a estes pressupostos, improcede.

Neste pé, observa-se apenas que partindo a “Resposta a Consulta” junta pelo réu do pressuposto de que ele, enquanto advogado, foi “convidado pela comunicação social a comentar o caso” depois de este ter tido nela eco (ao que, como diz repetidamente, teria sido alheio) e ainda de que a queixa-crime foi subscrita apenas pelos dois arguidos, tal não corresponde aos factos apurados. Além de comentar, ele patrocinou a queixa e firmou a acusação particular. Por isso, não colhe a opinião de que “não é viável amalgamar, no que aos danos respeita e ao nexo causal” da sua produção “aquilo que pode ter decorrido do processo noticioso desencadeado pela comunicação social com aquilo que foi o decorrente da conduta do Advogado” (no processo crime).

Na realidade, o réu, sabendo da falta de fundamento das referências negativas que à autora vinham sendo feitas nas notícias e que, como se sabe, foi comentando e animando, acabou, ao desencadear o processo-crime, por “dar um passo em frente”, assumir ele próprio a sua imputação à autora bem patente nos termos dos respectivo textos (queixa e acusação), ciente que não tinha razão para tal, dos efeitos prejudiciais que este processo por si provocaria, avivando e perpetuando assim a ideia quanto a ela já antes criada, daquele e deste modo atentando contra os seus direitos e lhe causando os correspondentes danos.

Tal conduta não se confinou ao exercício do patrocínio nem se encontra justificada, subjectiva e objectivamente, pelos deveres deste e parâmetros em que, legal e deontologicamente, deve conter-se, mormente para defesa dos interesses dos clientes ou na perspectiva da função social e pública da advocacia enquanto voz daqueles ou da sua etnia.

Nas conclusões 29ª e 30ª, questiona o réu o valor fixado a título de indemnização, dizendo que sempre será de considerar desadequado e excessivo e que sempre deveria o tribunal ter considerado a culpa da autora para o reduzir ou até excluir – artºs 494º, 496º e 570º, do Código Civil.

Porque a autora, no seu recurso, também questiona o montante da indemnização e tal depende do que, quanto àquele, se decidir no que concerne ao âmbito da ilicitude, da culpa e do dano, pressupostos cuja reapreciação, por via da impugnação de facto, suscitou, passamos agora a apreciar a apelação dela, relativamente à matéria de direito no que tange ao relevo dos factos respeitantes ao referido primeiro grupo, deixando para final a apreciação conjunta, atentas as duas perspectivas mutuamente exclusivas, sobre o referido quantum.

C2) recurso da autora

Comecemos também por recordar o que o tribunal a quo ponderou para, no que concerne às notícias e sua divulgação, concluir pela irresponsabilidade do réu quanto a tais factos.

Assim, depois de sintetizar as publicações noticiosas, seu teor e circunstâncias, o âmbito nacional dos órgãos, a ampla divulgação tida, os comentários e reacções desfavoráveis à autora tecidos pela Alta Comissária, pelo fundador da AM…, nos blogs, e que elas assentavam em excertos descontextualizados da sentença, observou:

“Na verdade, as notícias inculcam no leitor a ideia de que a Autora produziu na sentença tais afirmações a título pessoal e por referência à comunidade cigana como grupo ou minoria étnica, quando na realidade assim não foi.
Nos termos que se encontram desenvolvidos supra, no ponto II. da motivação da decisão da matéria de facto (que aqui se renovam), afigura-se que a Autora, em qualquer dos excertos objeto das notícias, exprimiu apenas perceção que colheu durante o julgamento dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios sociais e dos documentos de que tomou conhecimento no processo.
Fê-lo:
- com referências expressas - identificando claramente quem é a testemunha a que se refere quando usa a expressão “as mulheres e as crianças guincharam selvaticamente”, na súmula que faz das suas declarações; ou
- implícitas: ao redigir um facto provado (29 – II) sobre as condições económico-pessoais do arguido G…, usando terminologia que consta do relatório social para determinação de sanção, na relação que estabelece entre as condições habitacionais e “o estilo de vida da etnia cigana”; ou ainda quando, na parte da sentença reservada à descrição dos aspetos que desfavorecem os arguidos para efeito de cálculo da medida concreta da pena, conclui quanto a alguns deles que são “…pessoas mal vistas socialmente, marginais, traiçoeiras, integralmente subsídio dependentes de um Estado a quem pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral dos seus agentes”, conclusões que são tributárias da factualidade provada relativa às suas condições pessoais.
Conclui-se, por isso, que as notícias em apreço não fazem jus à sentença da Autora, nem os comentários de AP… e AL…, à sua pessoa e ao seu exercício profissional.
Certamente por se dar conta da incorreção da notícia divulgada no dia 31 de Julho, a D… retificou-a através da declaração […][38].
Com a divulgação do teor integral da sentença, surgiram posições públicas noutros registos, umas em defesa da Autora – como a da jornalista AT…, sub-directora do “AU…” – outras procurando analisar os factos sem especulação - como a de AS…, no semanário “AQ…” de 2 de Agosto de 2008.
Sucede que não ficou provado ter sido o Réu quem, depois da leitura da sentença, transmitiu à D… as expressões descontextualizadas que, sem rigor noticioso, foram objeto de divulgação pública nos meios de comunicação social.
Para além de não se ter apurado que foi o Autor[39] a fonte das notícias em causa, deve também ter-se presente que, uma vez lida a sentença, os órgãos de comunicação social que pretendessem noticiá-la poderiam e deveriam consultá-la para verificar se, e em que contexto, continha as expressões que as notícias atribuíram à Autora sobre o grupo étnico dos ciganos.
Se a informação se funda apenas nas declarações do Réu, a notícia deve reproduzir, expressa e corretamente, as correspondentes afirmações e identificar o seu autor. Quando assim não suceda, a notícia torna-se da responsabilidade do jornalista e do editor ou responsável do órgão que a publica, que não estão dispensados de, antes da publicação, confirmar na origem (in casu, a sentença proferida) a sua autenticidade (cfr. artigos 3º, 29º e 31º, nºs. 1, 3 e 4, todos da Lei de Imprensa).
O que o Réu comprovadamente fez, foi comentar, de forma crítica, na E…, a sentença proferida pela Autora, entendendo que […].[40]
Também se provou que algumas das notícias publicadas pelos órgãos de comunicação social foram acompanhadas de declarações atribuídas ao Réu, considerando que na sentença “são tecidas considerações e comentários que merecem o repúdio e se afiguram desadequadas e desnecessárias”.
As sentenças judiciais são, em regime democrático, onde a liberdade de expressão é um fundamental valor jurídico-constitucional, passíveis de discordância e crítica públicas (artigo 37º da Constituição da República Portuguesa).
Nos limites da responsabilidade civil e criminal que deve nortear a conduta de qualquer cidadão, é legítimo, e até próprio do funcionamento da democracia, exprimir livremente a divergência de entendimento, quer quanto à redação utilizada pelo julgador, quer quanto aos fundamentos e ao sentido da decisão judicial.
Os advogados gozam, como outros cidadãos, do mesmo direito, embora sujeitos a especiais regras estatutárias que regulam o exercício da sua profissão.
Concretamente, no que respeita à discussão pública de questões profissionais pendentes, o artigo 88º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.) prevê que […][41].
O incumprimento desta norma de natureza estatutária pode gerar a responsabilidade disciplinar do advogado (artigos 109º e ss. do E.O.A.).
No caso, o Réu manifestou-se discordante, na sentença proferida pela Autora:
- com o uso de expressões que reputou “desajustadas que se referiam não só aos arguidos, que eram maioritariamente ciganos, mas também à própria etnia” e “considerações e comentários que merecem o repúdio e se afiguram desadequadas e desnecessárias”;
- por considerar que não se pode combater os problemas com “…estigmatização, nem com a utilização de expressões como clientes habituais de postos, Cova da Moura cigana, ou dizer que as mulheres e as crianças guinchavam, porque quem guincha são os animais”.
Vimos já que a Autora usou as expressões noticiadas, entre outras constantes da sentença, em resultado da perceção fundada na prova produzida em julgamento, não estando obrigada a reproduzir literalmente as palavras usadas pelas testemunhas ou outros meios de prova.
Cabia-lhe, portanto, a escolha da redação que reputasse mais adequada a transmitir essa perceção.
Essa margem de conformação do texto da sentença, é passível de crítica, quer pelo estilo ou tom do discurso utilizado - que pode ser mais ou menos rico, polido, contundente, entre outras características -, quer pela fidelidade do texto à prova produzida.
Nos fundamentos da douta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.11.2011, que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida por J… e G… contra B…, encontra-se expresso que a Autora fez uso das expressões constantes da sentença com …verdadeiro «animus narrandi», ou seja, para descrever a ocorrência e, no mais, para fundamentar as premissas do raciocínio da julgadora.
Mas também se entendeu …certo que algumas das expressões utilizadas podem ser consideradas polémicas, excessivas e mesmo perfeitamente dispensáveis e desnecessárias (cfr. documento junto a fls. 1265 e ss. dos autos).
Sem perder o equilíbrio que a questão merece, é de admitir, como fez a decisão do tribunal superior, que algumas passagens do texto da sentença proferida pela Autora, embora não transmitam posições pessoais da aqui Autora, nem tenham sido usadas com animus injuriandi ou difamandi, podem, razoavelmente, ser consideradas …polémicas, excessivas e mesmo perfeitamente dispensáveis e desnecessárias… ou, nas palavras usadas pelo Réu, desadequadas, desajustadas, desnecessárias ou merecedoras de repúdio.
O Réu, nas afirmações que constam dos factos provados números 6. e 10. de que estamos a tratar, dirige a sua crítica às expressões constantes da sentença, mas não produz a afirmação (que seria falsa) de que a Autora as usou para manifestar juízos pessoais sobre os ciganos. O que, objetivamente, resulta daquelas posições do Réu, é o desagrado relativo à linguagem usada em passagens da decisão dirigidas, não só aos arguidos, mas também à etnia.
Expressões como “clientes habituais de postos”, “Cova da Moura cigana”, “as mulheres e as crianças guincharam selvaticamente” podem, razoavelmente, no espírito de alguns, ser entendidas como intensas.
Sem exprimir um juízo pessoal da Autora, antes a súmula das declarações de uma testemunha, a expressão “…com a tradicional sem cerimónia típica da cultura cigana”, contém uma generalização que talvez pudesse ser contornada.
Crê-se, por isso, que os comentários críticos do Réu descritos nos factos provados números 6. e 10., dirigidos à linguagem da sentença, não excedem aquilo que, razoavelmente, pode ser entendido por um número significativo de pessoas de bem, pelo que não se afiguram ofensivas da honra e consideração da Autora.
Também está provado que no Jornal “AV…”, de 03/02/2010, foi publicado um artigo sobre a anulação da sentença proferida pela Autora, onde é atribuída ao Réu a seguinte frase: “Pode permitir eliminar da sentença expressões que são consideradas racistas e xenófobas e cujo uso não se justificava” (sublinhado meu).
Não ficou demonstrado que o Réu tenha afirmado, nessa ocasião, perante os órgãos de comunicação social, que a A., em consequência da anulação da sentença, seria obrigada a “expurgar as expressões racistas” (sublinhado meu).
As subtis variações, vindas de destacar, entre a redação dos factos provado e não provado, traduzem, no entanto, uma diferença relevante na posição do Réu sobre o teor da sentença da Autora:
- a versão não provada, atribui ao Réu o entendimento de que a sentença contém expressões racistas; enquanto,
- na matéria provada, não é o Réu quem manifesta esse entendimento, estando a referir-se aos que considerem que a sentença contém expressões racistas e xenófobas.
A matéria de facto provada sob o número 24. não constitui, assim, imputação, dirigida pelo Réu à sentença proferida e, concomitantemente, à Autora, de expressões racistas e xenófobas, razão pela qual também não constitui facto ilícito suscetível de produzir ofensa da honra e consideração da Autora.”

Nas conclusões VIII a XII, defende a autora que, nesta parte, houve erro de julgamento, desde logo, porque deviam, a seu ver, ter sido dados como provados os factos 3, 6, 7 e 14.

Tal não tendo logrado por via da impugnação da respectiva decisão, por aí soçobra a sua tese de que a publicação das notícias foi da “responsabilidade” do réu, que este teve “intenção de manipulação” e que aquelas resultaram desta.

Com efeito, como atrás já salientado, nada mais se apurou, para além dos comentários, sobre se o réu algo fez e o que fez em ordem à publicação das notícias, nos termos polémicos em que elas o foram pelos órgãos de comunicação social, não sendo possível distinguir o papel que nelas ele alegadamente teve do dos respectivos jornalistas e, designadamente, não se recortando actuação pessoal que exceda a crítica e a discordância.

Além disso, o que consta dos factos provados 6 e 10, como sobejamente analisou e concluiu o tribunal recorrido em termos que corroboramos, não mostra que ele, nos comentários, tivesse ultrapassado tal direito e pisado o risco da ilicitude mediante voluntária imputação à própria autora, através deles, das expressões em causa. Dizer que houve expressões que se dirigiam não só aos arguidos mas “também à própria etnia” e considerá-las inadequadas e inaceitáveis, não implica que, por tal modo, quisesse, ele próprio, propalar que a autora era “xenófoba e racista” e que aquelas eram fruto de tais ideias dela.

Do facto provado 24, cotejado com o não provado nº 7, não se pode concluir como pretende a autora.

Por um lado, não se provou que o réu disse a frase, mas apenas que o jornal lha atribuiu. Por outro, do segmento “expressões que são consideradas racistas” não resulta que tenha sido ele a assim julgá-la mas, atenta a forma como o verbo está conjugado (no infinitivo impessoal presente[42]), que por outrem foram assim consideradas. A fina distinção fáctica está, pois, correctamente ajuizada ao nível do seu relevo jurídico, nela não cabendo a extrapolação pretendida, maxime quanto às intenções do réu.

Não é certo que apenas ele teceu considerações, nem se provou que ele, ao fazê-las, admitiu, a princípio, que elas desencadeariam nos media e na opinião pública tal onda. Muito menos que tivesse agido de caso pensado (com subtileza) para indirectamente atingir a autora pessoalmente. A comunicação social fez delas amplo eco e as opiniões foram divergentes. Apenas a própria D… e a Comissária se retrataram. Todavia, a polémica gerada prosseguiu, sem que isto se lhe possa imputar.

Daí que, corroborando-se o juízo do tribunal recorrido, improcedam as conclusões X a XII.

D) indemnização

Reunidos, assim, embora só quanto a uma parcela da alegada conduta do réu, os pressupostos da obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade civil (que a sentença, aliás, detalha, e para que se remete), tendo em conta os factos apurados, o âmbito da respectiva ilicitude e a culpa inerente, resta apreciar os recursos de uma e outra parte quanto ao valor indemnizatório.

Com efeito, o réu, na conclusão 29ª defende que o fixado pelo tribunal a quo, na parte em que o considerou responsável, é desadequado e excessivo e violador dos artºs 494º e 496º, além de que, como diz na 30ª, deveria ter-se atendido à culpa da autora na produção dos danos ao abrigo do artº 570º.

Por sua vez, a autora, no pressuposto da procedência do seu recurso quanto à matéria de facto e à de direito respeitante à divulgação das notícias e comentários na comunicação social – já que quanto ao mais expressamente se conformou e defendeu mesmo dever manter-se o decidido –, defende que, em razão da conduta do réu com isso relacionada, deve ele também ser condenado “no correspondente pedido indemnizatório”.

Aquele não apresenta concretos fundamentos para justificar o “excesso”, nem critérios justificativos do “adequado”, muito menos qualquer valor certo. Esta, semelhantemente, nada disse sobre como e em quanto deveria ser fixado o valor “correspondente”, no caso de procedência quanto à dita parte, sendo certo que o inicial peticionado foi de 500.000€.

Como se sabe, a obrigação de indemnização tem por baliza os danos causados e só estes, e, por objectivo, reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo – artºs 483º, 562º e 563º, CC.

No caso de danos não patrimoniais, conforme artº 496º, nºs 1 e 3, deve atender-se à sua gravidade, ao merecimento de tutela jurídica e fixar-se equitativamente o montante indemnizatório, tendo em atenção as circunstâncias previstas no artº 494º, ou seja, fundando-se a responsabilidade em mera culpa do agente, se o grau desta, a situação económica daquele e do lesado e outras circunstâncias o justificarem, pode a indemnização (ainda com recurso à equidade) ser fixada em montante inferior aos correspondentes danos causados.

Não sendo, infelizmente, possível a reconstituição natural, este dano deve ser aferido pela entrega ao lesado de uma quantia capaz de propiciar-lhe um benefício e correspondente satisfação que, contrapondo-se ao mal sofrido, o dilua ou minimize e assim contribua para, senão restabelecer pelo menos melhorar, o património “moral” atingido, já que ao apagamento da lesão deste não podemos, através de qualquer valor pecuniário, aspirar. Manda a lei, para isso, utilizar o critério da equidade – artº 566º, nºs 1 e 3.

Estando em causa factos ofensivos de direitos de personalidade da autora, designadamente ao nível da reserva da sua intimidade privada e familiar e prejudiciais do seu crédito e bom nome, o réu responde não só pelo que fez e não devia ter feito, como pelo que não fez, designadamente ao nível do que lhe impõe o seu Estatuto de advogado em termos de esclarecimento e reposição da verdade e evitar patrocinar procedimentos injustos, mas devia ter feito – artºs 70º, 80º, 484º e 486º.

O artº 570º refere-se a facto culposo do lesado que tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos.

Ora, o quadro de consequências pessoais resultante é o que consta dos pontos de facto 28 a 39, de que resulta, em síntese: a A. viu a sua intimidade privada devassada; sofreu ameaças e telefonemas anónimos de indivíduos que lhe diziam “vais ver o que te acontece aos filhos” e que iam incendiar a casa e o automóvel; foi vítima de várias críticas, insultos e enxovalhos públicos na comunicação social; tudo agravado pelo facto de a A. residir num meio pequeno, a cidade de Amarante, onde a sua família é conhecida pelo facto de o pai da A. ser oficial do exército/coronel, e de a mãe aí ter sido farmacêutica e professora de matemática; as mencionadas notícias e o processo-crime desencadeado com a queixa referida afetaram a saúde da A., que devido a elas sofreu grande nervosismo, depressão, apatia, prostração, insónias, perda de peso, isolamento, quebra de auto-estima, insegurança profissional, impaciência, irritabilidade na sua vida privada e no relacionamento com os dois filhos; também afetaram os pais da Autora, que sofreram, se afligiram e incomodaram; tal levou ainda que, em várias ocasiões, a A. se isolasse do convívio com colegas de profissão, evitasse ir a reuniões da F…, ações de formação, devido ao receio de ser confrontada com o estigma de ser considerada a “juíza dos ciganos” e que a rodeassem de perguntas penosas e agudizadoras do seu desânimo e humilhação; a A. teve ainda que lidar com a possibilidade de ser suspensa do exercício de funções na eventualidade de ser deduzida acusação no processo identificado no facto provado número 21; o que lhe trouxe angústia acrescida, prejudicou a sua capacidade de concentração nos problemas dos outros, e se refletiu na celeridade do despacho dos seus processos; angústia que apenas apaziguou quando o Conselho Superior da Magistratura deliberou no sentido de que não seria suspensa no caso em apreço; os referidos problemas de saúde fragilizam-na e diminuem-na no seu dia-a-dia, na sua relação com familiares próximos e com colegas de profissão.

Em face disto, considerou o tribunal a quo:

“O julgador deverá apelar ao que lhe parecer justo, agindo com um prudente arbítrio, ponderando as razões das partes, verificando os factos provados, fixando moderadamente uma indemnização. O valor do dano moral deve ser estabelecido com base em parâmetros razoáveis, não devendo ser meramente simbólico, mas também não devendo constituir uma fonte de enriquecimento. A reparação deve ser justa e equilibrada.
Ponderando as circunstâncias do caso:
-a ilicitude traduzida pela conduta do Réu é forte, porque: se revela em atos praticados num momento em que havia já decorrido tempo suficiente para superar alguma emoção e desagrado produzidos pelo teor da sentença proferida pela Autora e depois de superados os excessos do tratamento que teve na comunicação social imediatamente depois da leitura; se dirige à atuação da Autora no exercício das funções de magistrada judicial; o Réu sabia que a divulgação, pela comunicação social, do processo-crime movido à Autora, continuaria a difundir uma imagem negativa desta;
-o grau de culpa é intenso, traduzindo-se numa negligência grosseira;
-o dano produzido pela conduta do Réu é marcante, quer pelas consequências profissionais que o meio usado potenciava - a conduta do Réu colocou a Autora perante a real possibilidade de ser suspensa do exercício de funções, o que lhe trouxe angústia acrescida, prejudicou a sua capacidade de concentração nos problemas dos outros, refletindo-se na celeridade do despacho dos seus processos -, quer pela repercussão pública, inicialmente deformada, conhecida do Réu, que todo o caso teve na comunicação social – geradora de grande nervosismo, depressão, apatia, prostração, insónias, perda de peso, isolamento, quebra de autoestima, insegurança profissional, impaciência e irritabilidade na Autora;
- consideradas as profissões exercidas pela Autora e pelo Réu, pode concluir-se que ambos gozam de inserção sócio-económica acima da média nacional.”

Perante o que concluiu ser justa e adequada a quantia de 16.000€.

Ora, prejudicada que está, nesta parte, a pretensão da autora em face do desfecho do seu recurso, importa apenas apreciar o do réu.

Apesar de, como foi dito, algumas das locuções exaradas por ela na sentença poderem ser consideradas “polémicas, excessivas e mesmo perfeitamente dispensáveis e desnecessárias” (como disse a Relação de Guimarães e entendeu ser pertinente o STJ), o certo é que “o fim visado foi, exclusivamente, relatar os factos o mais próximo possível da forma aportada pela prova, não se vislumbrando intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes ou sequer que tal tivesse sido representado como possível” (como referiu o Ministério Público), não podendo, pois, considerar-se nelas radicar qualquer juízo de culpa, por acção ou omissão próprias, conexo com a produção ou agravamento dos danos por ela sofridos.

Ainda assim, tendo em conta o específico circunstancialismo relativo à apresentação da queixa e dedução da acusação – único que fundamenta a condenação do réu ora confirmada –, a ilicitude por ele revelada, o modo e grau de culpa e os danos a ele causalmente ligados (e só esses), ponderando todo o contexto em que aquele se desenvolve e a qualidade e protagonismo de cada um dos sujeitos nele, sem embargo de se reconhecer a dificuldade que nesta operação jurídica é consabida, cremos que, numa perspectiva de equidade – o critério decisivo – não se justifica o valor fixado pelo tribunal recorrido.

Se bem que a busca do “ponto de equilíbrio” e da “solução justa” de que se fala, por exemplo, no já citado Acórdão do STJ, de 29-01-2015, não prescinda aqui da responsabilização nítida do réu advogado pelos danos severos causados à autora juíza, cremos que a valorização destes, no contexto de casos análogos relativos à indemnização por danos não patrimoniais, surge algo exagerada, por exemplo à luz do Acórdão do STJ de 26-01-2011, também atrás referido.

Assim, tudo ponderado, considerando a aptidão do dinheiro para realização de uma ampla e variada panóplia gama de interesses e pensando-se no custo material daqueles cujo desfrute poderá, em nossa perspectiva, adequadamente compensar a autora, proporcionando-lhe correspondente satisfação moral reparadora do dono sofrido, entendemos que se impõe a redução do quantum indemnizatório para a quantia global de 10.000€.

Enfim, conclui-se pela parcial procedência da apelação do réu nesta parte e pela total improcedência da da autora.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em, julgando em parte procedente a apelação do réu e totalmente improcedente a da autora, alterar a decisão recorrida e, em consequência, eliminando-se o facto nº 9 do elenco dos não provados na sentença, em condenar o réu Dr. C… a pagar à autora Drª B… a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal desde a data daquela (28-04-2014) até efectivo e integral pagamento.

Custas da acção por autora e réu, na proporção do vencimento/decaimento.

Custas da apelação do réu por este e pela autora, na proporção; e da apelação da autora por ela – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP) - sem prejuízo da isenção legal de que beneficia.

Notifique.

Porto, 26-03-2015
José Amaral
Teles de Menezes
Mário Fernandes
____________
[1] Subscrita por AW…, Advogado.
[2] Não deve perder-se de vista que, como refere Teixeira de Sousa, sendo o recurso um meio específico de impugnar uma decisão judicial, de provocar a reapreciação das questões já decididas pelo tribunal recorrido e de obter a sua alteração, o seu objecto “é constituído por um pedido e um fundamento, sendo que o pedido consistirá normalmente na pretensão de se ver revogada a decisão impugnada, enquanto o fundamento, na invocação de um vício no procedimento (error in procedendo) ou no julgamento (error in judicando)” – in Estudos Sobrte o Novo Processo Civil, página 453..
[3] Neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-03-2014, procº 2651/12.3TBSXL.L1, e o Acórdão do STJ de 19-02-2015, processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, ambos relatados pelo então Desemb. E agora Consº Tomé Gomes.
[4] Na síntese de Amâncio Ferreira, “expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razoes de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão” – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª edição, páginas 172 e 173.
[5] Entendimento tradicional e recentemente reafirmado no Acórdão do STJ, de 20-11-2014, processo 810/04.0TBTVD.L1.S1).
[6] Neste sentido, os Acórdãos do STJ, de 23-09-2009 (Consº Bravo Serra), de 21-10-2009 (Consº Vasques Dinis), de 24-02-2011, 15-12-2011, 19-04-2012 e 14-01-2015 (Consº Pinto Hespanhol), de 23-05-2012 (Consº Sampaio Gomes), 11-07-2012 e 14-01-2015 (Consº Fernandes da Silva).
[7] Neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto, de 07-10-2013 (Desemb. Eusébio Almeida), 03-02-2014 (Desemb. Carlos Gil) e do STJ, de 14-05-2014 (Consº Mário Belo Morgado) e 09-09-2014 (Maria Clara Sottomayor).
[8] A Sentença Cível, Janeiro de 2014, texto-base das Jornadas de Processo Civil organizadas pelo CEJ em 23 e 24 de Janeiro de 2014, acessível na Internet.
[9] Proc. 07A3060, relator Consº Nuno Cameira.
[10] Proc. 971/11.TBCTB.C1, relator Desemb. Carlos Moreira.
[11] Citando José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, artigos 381 a 675º, páginas 605 e 606.
[12] Código de Processo Civil, volume V, página 141.
[13] Neste sentido, Amâncio Ferreira, in Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pág. 56: “a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento.”
[14] Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, III, página 249.
[15] Sobre a destrinça entre fundamentação da sentença e da decisão de facto, cfr. Acórdão desta Relação de 05-03-2015, proc. 1644/11.0TMPRT-A. P1.
[16] Efeito previsto na alínea c), do nº 2, do artº 662º, do CPC, que nada tem a ver com os vícios apontados pela apelante.
[17] Na apreciação e valoração dos meios de prova quando livres e, consequentemente, na formação (também quando livre) da convicção.
[18] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 124 e seguintes.
[19] Acrescento este que não nos parece representar um verdadeiro requisito novo, pois a indicação do sentido da alteração já tinha de, inevitavelmente, resultar, ou pelo menos inequivocamente deduzir-se dos obrigatórios fundamentos a alegar e da alteração pretendida a indicar.
[20] “Na impugnação da matéria de facto, o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo onde elenque, desde logo, as provas, deve, em seguida, produzir uma análise crítica das mesmas, pois que, verdadeiramente, só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver” – Acórdão da Relação do Porto, de 12-05-2014 (Desemb. Manuel Domingos Fernandes).
[21] “Uma manifestação genérica de inconformismo contra a generalidade da decisão da matéria de facto, sem uma concretização mínima da matéria que os recorrentes consideram incorrectamente julgada, não observa o ónus prescrito na alínea a), do nº 1, do artº 640º, do CPC” – Acórdão da Relação do Porto, de 19-05-2014 (Desemb. Carlos Gil).
[22] Acórdão da Relação do Porto, de 17-03-2014 (Desemb. Alberto Ruço).
[23] Sobre a matéria, remete-se para o Acórdão do STJ, de 06-07-2011, proc. 3612/07.6TBLRA.C2.S1, relatado pelo Consº Hélder Roque.
[24] Cuja notícia se encontra documentada a fls. 72 e 73 dos autos.
[25] Acórdão de 29-01-2015, proc. 24412/02.6TVLLSB.L1.S1, relatado pelo Consº Távora Victor.
[26] Tal Acórdão, relativo ao processo nº 6/09.4TRGMR.S1, relatado pelo Consº Pires da Graça, está integralmente publicado na Base de Dados do DGSI, nele se detalhando mais circunstanciadamente o caso.
[27] Sublinhados nossos.
[28] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, página 791.
[29] Relatado pelo Consº Armindo Monteiro.
[30] Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, página 239.
[31] Expressões referidas a Martinez Calcerrada, citado por Ferpefcto Ibañez, in Independência do Poder Judicial.
[32] Proc. 617/09, relatado pelo Consº Rodrigues da Costa).
[33] Decisão que rejeitou a acusação particular e já atrás referida.
[34] Esta afirmação pressupõe o que na sentença recorrida foi considerado quanto à postura do réu relativamente às notícias, maxime considerando que não se verificava a ilicitude e não tem em conta os dois factos aditados (nºs 11-A e 21-A)
[35] Sublinhados por nós ora apostos.
[36] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, volume II, 4ª, página 541.
[37] Acórdão da Relação de Lisboa, de 12-10-2005, proc. 4040/2005-3 (relator: Desemb. Clemente Lima).
[38] Transcreve-se o teor do comunicado a anular a notícia, referido nos factos provados (ponto 17).
[39] Queria certamente dizer-se o réu.
[40] Teor referido no ponto 6 dos factos provados.
[41] Já atrás citámos e transcrevemos a norma, na parte interessante.
[42] Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Luís Lindley Cintra, Editora Sá da Costa, Lisboa, 16ª edição, 2000, página 404.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4cc5b7c0cecf4b6880257e2800347076?OpenDocument

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