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sexta-feira, 13 de junho de 2014

REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS GUARDA ALTERNADA DO MENOR - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 13.05.2014


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5253/12.9TBVFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS
GUARDA ALTERNADA DO MENOR

Nº do Documento: RP201405135253/12.9TBVFR-A.P1
Data do Acordão: 13-05-2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O critério da preferência maternal não pode ser hoje, por si só, o critério determinante para fixar a residência do menor, nos casos de tenra idade.
II - Este elemento tem que ser conjugado com todos os outros elementos disponíveis a fim de se apurar da capacidade de cada um dos progenitores para ter o filho a viver consigo.
III - A solução da “guarda alternada” (o filho ficará a residir alternadamente com cada um dos progenitores por períodos idênticos – 1 semana; 2 semanas; 1 mês) apresenta inconvenientes relacionados com a instabilidade que cria nas condições de vida do menor, motivadas pelas constantes mudanças de residência.
IV - Contudo, a solução da residência alternada pode ser adoptada se os pais, acordando nesse sentido, mostrarem uma inequívoca vontade de cooperar e de pôr de parte os seus diferendos pessoais.
V - Não deve, porém, ser seguida num caso em que o menor tem cinco anos de idade e existe um clima de animosidade entre os pais.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Proc. nº 5253/12.9 TBVFR-A.P1
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – 3º Juízo Cível
Apelação
Recorrente: B…
Recorridos: C…; Ministério Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
C… veio requerer a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao menor D…, que é seu filho e de B….
Foi designado dia para a conferência a que se refere o art. 175º do OTM, não se tendo alcançado acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais, pois ambos os progenitores pretendem que lhes seja atribuída a guarda do menor.
Com vista a fixar-se regime provisório quanto à guarda do menor, solicitou-se à Segurança Social a realização de relatório social sumário, quanto às condições sócio-económicas dos progenitores e ao relacionamento de cada um deles com o menor.
Foi ainda dado cumprimento ao disposto no art. 178º, nº1, da OTM, sucedendo que os progenitores não apresentaram alegações nem róis de testemunhas.
Junto relatório sobre a situação económica, moral e social dos progenitores, o Min. Público emitiu parecer constante de fls. 61.
Foi depois proferida sentença que procedeu à regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor D… pela seguinte forma:
a) O menor fica confiado à guarda e cuidados da sua mãe C…, ficando determinada a sua residência junto desta, determinando-se que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância sejam exercidas em comum por ambos os progenitores;
b) O pai, B…, poderá visitar e estar com o seu filho, fixando-se o regime de visitas da seguinte forma:
- O pai passará com o menor o fim de semana, de quinze em quinze dias, de sexta à tarde a segunda de manhã, devendo ir buscá-lo à escola e entregá-lo na escola.
- Na semana seguinte ao fim-de-semana que o pai não passa com o menor, deverá poder estar com ele, na sexta e na segunda feira, indo buscá-lo à escola nesses dias e jantando com o menor, devendo entregá-lo em casa da mãe até às 21h00.
- O pai passará com o menor metade de todas as férias escolares do menor, devendo comunicar à mãe, com antecedência de 60 dias, qual o período de férias que pretende passar com o menor.
- As festividades do Natal (véspera e dia), Ano Novo (véspera e dia) e Páscoa deverão ser passadas alternadamente com o pai e com a mãe, iniciando o Natal de 2013 com o pai.
- Nos dias de aniversário do menor e dos pais, o menor deve fazer uma refeição com cada um dos progenitores.
c) O pai contribuirá para o sustento e educação do filho com a quantia de €150,00 mensais (cento e cinquenta euros), que será pago directamente à mãe, até ao dia 8 de cada mês, por cheque, vale de correio ou transferência bancária.
d) A prestação mensal referida será actualizada anualmente, de acordo com o índice de aumento de preços publicado pelo I.N.E (Instituto Nacional de Estatística).
e) O abono de família e todos os subsídios a que o menor tenha direito serão enviados directamente à mãe pela entidade que os processar.
f) O pai comparticipará, na proporção de metade, nas despesas médicas, medicamentosas e escolares do menor, mediante a apresentação do respectivo recibo.
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o requerido B…, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 – O Requerido e ora Recorrente não se conformando com a douta sentença proferida, dela vem interpor recurso nos termos legais.
2 – O presente recurso versa sobre matéria de direito.
3 – As normas jurídicas que o recorrente entende terem sido violadas constam dos artigos 180.º n.º 1 e 2 da OTM, 1906.º n.º 5 e n.º 7, e 2004.º, n.º 1 do Código Civil, e, 607.º, n.º 5, do NCPC.
4 – Os princípios fundamentais a observar, no que respeita à regulação das responsabilidades parentais – o interesse do menor e a igualdade entre os progenitores, não foram respeitados na sentença ora posta em crise.
5 - O tribunal “a quo” decidiu ao arrepio da manifestação de vontade dos progenitores, efetuada em momentos distintos, de aplicação de regime de guarda partilhada.
6 – Ambos os progenitores já não partilham a mesma residência desde 31 de Julho do corrente ano, sendo que tal situação, não invalidou que o menor mantivesse as suas rotinas diárias e a sua estabilidade emocional e psíquica não fosse afetada.
7 – O tribunal “a quo” não teve em consideração factos relevantes, como a capacidade económica dos progenitores, convivência com outros familiares, condições de habitabilidade, entre outros.
8 – Ao invés disso, baseou-se em critérios desatualizados e desconexos com a realidade, bem como, potenciadores de desigualdade entre ambos os progenitores e contrários aos reais interesses do menor.
9 – Não se compreende que o tribunal “a quo” tenha fundamentado a decisão de atribuir a um dos progenitores a guarda do menor, sobremaneira, na tenra idade do menor e num relatório social efetuado e que apenas atesta competências educativas de ambos de forma uniforme, adotando critérios subjetivos não devidamente justificativos e ignorando os circunstancialismos do caso concreto, em termos atuais.
10 – Adotou uma interpretação historicista do art.º 180.º, n.º 1, da OTM, quando o deveria ter interpretado em termos atualistas, levando a que a decisão tomada não reflita a situação atual, seja contrária aos interesses do menor e potencia um clima de injustiça e desigualdade injustificada, devendo a mesma ser alterada em conformidade, tendo em consideração a posição das partes no processo, a guarda partilhada será a que melhor protege o menor.
11 – O tribunal “a quo”, no que concerne ao regime de visitas, apesar de considerar benéfico um amplo quadro de relacionamento pessoal e direto entre o menor e o progenitor a quem a guarda não foi confiada, decidiu em sentido inverso, colocando em perigo a manutenção da estabilidade emocional e psíquica do mesmo.
12 – Ambos os progenitores manifestaram o propósito de promover um convívio alargado com o menor.
13 – O menor tem rotinas diárias que atestam a comparticipação na partilha das mesmas entre ambos os progenitores, sendo de salientar que cabe ao pai adormecer a criança e acordar a mesma, preparando o pequeno-almoço e o menor para a escola, levando o mesmo à escola.
14 – Atendendo a este circunstancialismo, seria de aguardar uma decisão que, em prol do interesse do menor, contribuísse para a manutenção da sua estabilidade emocional e psíquica, enveredando por uma proximidade significativa do progenitor com o menor.
15 – Ao invés disso, com a decisão tomada, o tribunal “a quo” manifestou uma insensibilidade pelos interesses do menor, já que, a mesma potencia um afastamento entre o menor e o pai em termos desequilibrados e injustificados, quebrando a harmonia existente, como se todos os casos fossem iguais e de aplicação automática, sendo limitativa do relacionamento existente entre pai e filho.
16 – Interpretou o tribunal “a quo” os artigos 180.º, n.º 2, da OTM, e, 1906.º, n.º 5 e 7 do Código Civil, em termos restritivos quando os deveria ter interpretado extensivamente, de forma a salvaguardar uma maior proximidade entre as partes, atendendo às circunstâncias relevantes do caso em concreto e à vontade das partes, devendo a mesma ser alterada em conformidade, de forma a que o progenitor a quem não for entregue a guarda da criança possa estar com a mesma, sempre que quiser, sem prejuízo de não perturbar a sua atividade escolar ou outras de natureza análoga, no intuito de se manter a rotina diária a que o menor sempre esteve sujeito e que lhe trouxe estabilidade emocional e psíquica, apesar da rotura do casal.
17 – O tribunal “a quo” fixou uma prestação de alimentos ao progenitor a quem a guarda não foi confiada em termos exagerados e injustificados, não tendo em consideração o rendimento disponível do mesmo e contrariando mesmo a promoção do Ministério Público sobre esta matéria.
18 – Interpretou extensivamente o preceito legal decorrente do art.º 2004.º, n.º 1, do Código Civil, quando o deveria ter interpretado restritivamente, de forma a salvaguardar a capacidade económica do obrigado a alimentos e a não colocá-lo numa situação em que a sua subsistência do nível de vida esteja em causa, decidindo sem critério, pelo que a mesma deverá ser alterada em conformidade, considerando-se ajustada à realidade existente uma prestação de alimentos fixada no montante de € 100,00.
19 – O tribunal “a quo”, com a decisão tomada sobre as responsabilidades parentais, não teve em consideração critérios objetivos em termos concretos e suficientes de forma a decidir como decidiu, muito pelo contrário, baseou-se em critérios subjetivos não devidamente justificados.
20 – A livre apreciação da prova não significa arbitrariedade e pura subjetividade, pelo menos, deve ter em consideração as regras da experiência e normalidade.
21 – O tribunal “a quo” analisou as provas – relatório social incompleto e desatualizado (apenas aborda a capacidade educativa em termos semelhantes para ambos os progenitores), decidindo factos sem qualquer elemento concreto, pura subjetividade e arbitrariedade que acarreta, analisada a decisão judicial, a incerteza de onde emana a sua fundamentação para considerar um progenitor mais capaz do que outro, para diminuir e limitar a proximidade entre o menor e o progenitor, e, fixar uma prestação de alimentos ao arrepio das despesas e necessidades do obrigado a prestar alimentos.
22 – Ao interpretar extensivamente o art.º 607.º, n.º 5, do NCPC, quando o deveria ter interpretado restritivamente, de forma a salvaguarda[r] [a] objetividade da decisão tomada e não a pura arbitrariedade e subjetivismo, acarretou a violação do Princípio da livre apreciação de prova, devendo a sentença ser alterada em conformidade, no sentido do respeito por tal Princípio.
23 – Em prol do respeito pelos superiores interesses do menor, atendendo a todo o circunstancialismo referenciado, a douta sentença deve ser revogada por outra que satisfaça tal intento, julgando-se assim procedente o presente recurso com as suas correspondentes consequências legais.
Tanto a requerente C… como o Min. Público apresentaram contra-alegações pronunciando-se pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
Uma vez que estamos perante decisão proferida em 18.11.2013 em processo que foi instaurado depois de 1.1.2008, é aplicável ao presente recurso o regime previsto no Novo Cód. do Proc. Civil.
*
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
*
A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se foi correcta a forma como na decisão recorrida se procedeu à regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor D…, no que toca à determinação da sua residência, ao regime de visitas e ao montante da prestação de alimentos a cargo do progenitor.
*
OS FACTOS
É a seguinte a factualidade dada como provada pela 1ª Instância:
a) O menor D… é filho de C… e de B….
b) Nasceu no dia 24 de Agosto de 2008.
c) Os progenitores são casados entre si, tendo a separação conjugal acontecido em Setembro de 2012, por iniciativa da progenitora.
d) Ambos os progenitores permaneceram com o menor na casa de morada de família, na Rua …, nº.., …, adquirida pelo progenitor antes do matrimónio.
e) Trata-se de uma moradia com dois pisos, de tipologia T3, com garagem e jardim, dispondo de boas condições de habitabilidade.
f) Desde a separação, a progenitora ocupa um dos quartos e o progenitor partilha provisoriamente o quarto do filho.
g) O progenitor exerce actividade laboral como técnico administrativo, há cerca de 12 anos, na empresa de papel “E…, Ldª”, sedeada em …, cumprindo um horário de trabalho das 09h00 às 18h30.
h) Aufere um vencimento líquido mensal de €1.300,00.
i) Apresenta como despesas mensais mais significativas, a amortização da prestação da casa, no valor de €400,00; amortização de dois empréstimos comuns, no valor de €200,00; consumos de água, luz, gás e internet, no valor de €130,00; natação do menor no valor mensal de €25,00 e hip-hop no valor mensal de €11,00.
j) O progenitor denota forte afectividade relativamente ao filho, sendo ele quem habitualmente prepara o menor de manhã, dando-lhe o pequeno-almoço, preparando o lanche e levando-o à escola, indo a mãe buscá-lo à escola à tarde.
l) O progenitor considera que tem melhores condições e competências para assumir a guarda do filho, salientando que poderá contar com o apoio dos seus pais e irmãos, também residentes em ….
m) Manifesta propósito de promover um convívio alargado do menor com a mãe.
n) A progenitora mantém a co-habitação com o progenitor, apesar da ruptura conjugal, uma vez que não pretende mudar de casa sem levar o menor consigo, sendo que o progenitor não concorda com tal.
o) No início de tal co-habitação, os progenitores procuraram manter uma comunicação amigável para não prejudicar a estabilidade emocional do menor; com o decorrer do tempo, a comunicação tem vindo a deteriorar-se e ambos anseiam pela conclusão deste processo.
p) A progenitora pretende mudar de residência, tendo já arrendado um apartamento em ….
q) A progenitora exerce actividade laboral como assistente administrativa, há 11 anos, estando actualmente colocada no F…, em Lourosa, cumprindo um horário das 09h00 às 17h00.
r) Aufere como vencimento mensal €685,00.
s) Apresenta despesas com as deslocações para o trabalho, no valor de €80,00 e com a renda de casa, cujo valor não foi apurado. t) A progenitora dispensa ao filho uma atitude e desempenho maternais de grande proximidade e envolvimento, demonstrando uma atitude adequada face às obrigações e cuidados necessários ao menor.
u) A progenitora foi quem sempre assumiu a articulação com o estabelecimento de ensino que o menor frequenta, bem como os cuidados de saúde.
v) A progenitora considera que tem melhores condições e competências para assumir a guarda do filho, denotando uma atitude educativa adequada e preocupada.
x) A requerente manifesta propósitos de promover um convívio alargado com o pai.
w) O D… frequenta, há dois anos, o Jardim de Infância nº., da …, em ….
y) No início o menor registou algumas dificuldades de adaptação, que entretanto foram ultrapassadas, estando presentemente bem integrado e denotando satisfação face à frequência escolar.
z) O menor apresenta-se diariamente bem cuidado, sendo uma criança de trato fácil, tímido e meigo, que se relaciona bem com todos os colegas e não deixa transparecer problemas de ordem familiar, apresentando ser uma criança feliz.
aa) A educadora referiu que a mãe sempre foi o elemento parental mais presente, contactando-a com frequência e mostrando-se interessada pelo funcionamento da escola. O pai nunca procurou falar com a educadora, quando ia levar o filho, tendo-a contactado recentemente para se inteirar da evolução do menor.
*
O DIREITO
1. O requerido B…, através do presente recurso, insurge-se contra a forma como a 1ª Instância, na sentença recorrida, procedeu à regulação do exercício das responsabilidades parentais, discordando, em primeiro lugar, de se ter determinado que o menor ficasse confiado à guarda e cuidados da sua mãe, residindo junto desta.
Pretende, em alternativa, uma situação de guarda partilhada.
O processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais é considerado de jurisdição voluntária, razão pela qual não está o tribunal sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. arts. 150º da O.T.M. e 987º do Novo Cód. do Proc. Civil).
Sucede que, nesta matéria, o critério que deve servir de referência ao julgador é o do superior interesse do menor, sendo em função dele que se deve determinar a sua residência, o regime de visitas, o quantitativo dos alimentos que lhe são devidos, bem como a forma de os prestar.
Aliás, no art. 3º, nº 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança[1] estabelece-se que «todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.» O superior interesse do menor surge assim como um conceito jurídico indeterminado que, apesar de “não ser definível, é dotado de uma especial expressividade”, é “uma «noção mágica», de força apelativa e tendência humanizante”; não sendo susceptível de uma definição em abstracto que valha para todos os casos.[2]
Este conceito está intimamente dependente de um determinado projecto de sociedade, de um projecto educativo preciso. Trata-se de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigentes em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar cultural e moral.
A sua eficácia específica permite tomar em conta cada caso particular. O interesse de uma criança não é o interesse de uma outra criança e o interesse de cada criança é, ele próprio, susceptível de se modificar.[3]
O superior interesse do menor foi tido em conta pela Mmª Juíza “a quo”, conforme se alcança da decisão recorrida, tendo esta concluído, depois de uma cuidada ponderação, pela atribuição da sua guarda à mãe com quem ficaria a residir.
Um dos argumentos que aduziu nesse sentido foi o da tenra idade do menor, aderindo ao critério que entende ser a mãe, por razões biológicas e sociológicas, o progenitor mais apto a cuidar dos filhos e a satisfazer as suas necessidades físicas, emocionais e psicológicas, sobretudo nos seus primeiros anos de vida.
Não se ignora que este critério, que sempre assumiu na nossa jurisprudência grande relevo, deve ser visto hoje com algum cuidado, face à modificação que se tem vindo a operar no conceito de família.
Com efeito, na medida em que a mulher tem hoje uma plena intervenção no mercado de trabalho, tem vindo progressivamente a desaparecer a figura tradicional da mãe, cuja função primacial era a de se dedicar, em casa, à educação dos seus filhos.
Por outro lado, o pai, que noutros tempos centrava a sua vida no trabalho e na actividade profissional fora de casa, está hoje bem mais presente na educação dos filhos.
Assiste-se pois nos nossos dias a uma progressiva equiparação entre os dois sexos, surgindo o homem mais envolvido nas tarefas domésticas e na educação dos filhos e a mulher cada vez mais participante no mercado de trabalho.
Por isso, o critério da preferência maternal não pode hoje, por si só, ser o determinante para fixar a residência do menor nos casos em que este é de tenra idade. A tarefa que se apresenta ao julgador para decidir esta questão é a de, conjugando a idade do menor com todos os outros elementos disponíveis, aferir da capacidade de cada um dos progenitores para ter o filho a viver consigo e assim exercer, com carácter de habitualidade, as responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente deste.[4]
No caso “sub judice” a Mmª Juíza “a quo”, tal como já se referiu, entendeu ser de confiar o menor à guarda e cuidados da mãe, com quem ficaria a residir. Não vemos razão para divergir deste entendimento.
Sublinhou esta que ambos os progenitores manifestam carinho e afecto pelo filho e desejam manter com ele uma relação de grande proximidade, de tal modo que se batem os dois para que o tribunal considere que um tem melhores condições que o outro.
Há, porém, que ter em conta os seguintes elementos resultantes da factualidade dada como assente:
- A progenitora dispensa ao filho uma atitude e desempenho maternais de grande proximidade e envolvimento, demonstrando uma atitude adequada face às obrigações e cuidados necessários ao menor [al. t)];
- A progenitora foi quem sempre assumiu a articulação com o estabelecimento de ensino que o menor frequenta, bem como os cuidados de saúde [al. u)];
- A progenitora denota uma atitude educativa adequada e preocupada [al. v)];
- A progenitora manifesta propósitos de promover um convívio alargado com o pai [al. x)];
- Na relação com a educadora a mãe sempre foi o elemento parental mais presente, contactando-a frequentemente e mostrando-se interessada pelo funcionamento da escola [al. aa)].
E simultaneamente deu-se também como provado, na al. aa), que o pai nunca procurou falar com a educadora, quando ia levar o filho, só a tendo contactado recentemente para se inteirar da sua evolução.
Ora, neste contexto factual, onde sobressai uma melhor articulação da mãe com o estabelecimento de ensino, é de concluir que a decisão da 1ª instância no sentido de confiar o menor à guarda e cuidados da mãe, com quem ficaria a residir, se mostra acertada, tanto mais que, em conformidade com o art. 1906º, nº 1 do Cód. Civil, se determinou que relativamente às questões de particular importância da vida do filho as responsabilidades parentais serão exercidas em comum por ambos os progenitores.
A “guarda partilhada” sugerida pelo recorrente, que em bom rigor melhor se designará por “guarda alternada” por implicar que o filho resida, alternadamente, por períodos idênticos (1 semana; 2 semanas; 1 mês) com cada um dos progenitores, foi afastada na sentença recorrida face ao quadro de animosidade existente entre pai e mãe.
Aliás, uma solução deste tipo sempre envolve inconvenientes, conforme é referido por Maria Clara Sottomayor (in “Estudos e Monografias – Exercício do Poder Paternal”, Porto, Publicações Universidade Católica, 2003, 2ª ed., págs. 439 a 444), que escreve: “a guarda alternada acarreta para a criança inconvenientes graves pela instabilidade que cria nas suas condições de vida e pelas separações repetidas relativamente a cada um dos seus pais, causadas pela constante mudança de residência.”
Escreve ainda esta autora que “a guarda alternada compromete o equilíbrio da criança, a estabilidade do seu quadro de vida e a continuidade e unidade da sua educação, pois não garante a colaboração dos pais no interesse da mesma” concluindo que “a forma ideal de guarda conjunta é aquela que, para além da partilha de poderes educacionais e decisórios relativamente à pessoa da criança, envolve a residência permanente ou principal da criança junto de um dos pais, mantendo aquela com o outro progenitor contactos prolongados.”[5]
No entanto, cremos que em determinadas situações, face ao contexto factual que se verifique, nada impede que se possa avançar no sentido da “guarda alternada”, ou seja, no sentido da determinação de duas residências ao menor.
Porém, essencial para que se enverede por este caminho “será a capacidade revelada pelos pais de pôr de parte os seus diferendos pessoais para atingir decisões em relação aos seus filhos e de reconhecer a importância da manutenção de uma relação próxima do filho com o outro progenitor para o bem-estar daquele. Têm, ainda, os pais que demonstrar, inequivocamente, terem um respeito e uma confiança recíprocos, bem como um nível razoável de comunicação e de vontade de cooperar.”[6]
Em suma, é imprescindível que haja acordo dos progenitores quanto à fixação de duas residências ao menor.
Manifestamente não é esse o caso dos autos, onde, tal como se afirmou na sentença recorrida, existe um quadro de animosidade entre os progenitores que o desaconselha e que claramente transparece das alíneas l), n) e o) da matéria fáctica dada como assente. Disso é sintoma a deterioração da comunicação entre ambos e a intenção de cada um deles demonstrar que tem melhores condições do que o outro para ficar com o menor.[7]
Deste modo, consideramos que a solução adoptada pela 1ª instância, determinando que o menor fique a residir com a mãe e que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância sejam exercidas em comum por ambos os progenitores é a que melhor se adequa aos contornos do presente caso.
Tanto mais que foi complementada pelo regime de visitas acima transcrito, que se mostra equilibrado e pormenorizado e que permitirá um contacto muito frequente entre o menor e o seu pai, de forma a manter uma relação de proximidade entre ambos e a salvaguardar os correspondentes laços afectivos, de grande importância para o são desenvolvimento psíquico e emocional do menor.
Não se crê, assim, que tal regime de visitas, ao invés do que é sustentado pelo recorrente, possa pôr em perigo a manutenção da estabilidade psíquica e emocional deste.
*
2. O recorrente insurge-se também contra a prestação de alimentos que lhe foi fixada no montante de 150,00€ mensais, pugnando pela redução desta para 100,00€, verba que considera mais ajustada à sua situação económica.
Nos termos do art. 1878º, nº 1 do Cód. Civil compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens.
Os alimentos devidos aos menores englobam tudo o que for indispensável ao sustento, habitação e vestuário, incluindo ainda a instrução e educação do alimentando – cfr. art. 2003º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil.
Com efeito, na senda do que se diz no art. 27º da Convenção sobre os Direitos da Criança, a criança tem direito a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social, cabendo aos pais a primordial responsabilidade de lhe assegurar um nível de vida adequado.
Prosseguindo, salientar-se-á que os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los – cfr. art. 2004º, nº 1 do Cód. Civil.
As necessidades do alimentando são assim a primeira medida da obrigação, traçando o limite máximo da obrigação alimentar – esta não existe para lá das referidas necessidades, mesmo que as possibilidades do devedor sejam mais que suficientes para ir além de tal medida.
Por seu turno, a medida das possibilidades assenta basicamente nos rendimentos do obrigado, sendo ainda integrada pelos seus encargos. A medida da contribuição de cada progenitor deve encontrar-se na capacidade económica de cada um para prover às necessidades do filho, sendo certo que estas necessidades sobrelevam a disponibilidade económica dos pais, no sentido de que o conteúdo da obrigação de alimentos que lhes compete cumprir não se restringe à prestação mínima e residual de dar aos filhos um pouco do que lhes sobra, mas antes no de que se lhes exige que assegurem as necessidades dos filhos menores com prioridade sobre as próprias e se esforcem em obter meios de propiciar aos filhos menores as condições económicas adequadas ao seu sadio, harmonioso e equilibrado crescimento.[8]
Da factualidade dada como assente resulta que o progenitor exerce actividade laboral como técnico administrativo na empresa de papel “E…, Ldª”, auferindo um vencimento líquido mensal de €1.300,00 [als. g) e h)].
Por conseguinte, não podemos deixar de concordar com a decisão da 1ª instância na qual se considerou, em atenção aos gastos normais com o sustento, habitação e educação de uma criança de cinco anos de idade, ao nível sócio-económico onde esta se enquadra e às possibilidades económicas do requerido, que este pode satisfazer uma prestação de alimentos no montante mensal de 150,00€.
O seu vencimento mensal, onde esta verba corresponde a pouco mais de 10% do mesmo, sobejamente o comprova, dele resultando evidente a possibilidade de o pai poder satisfazê-la.
E a circunstância de o Min. Público no parecer que antecedeu a sentença recorrida se ter pronunciado no sentido de que tal prestação se circunscrevesse a 120,00€ mensais não é naturalmente obstáculo a que a Mmª Juíza “a quo” viesse a fixar um montante superior, por considerá-lo – de resto, acertadamente – como mais adequado à situação “sub judice”.
*
3. Por fim, o recorrente fez ainda algumas referências à forma como a prova foi apreciada, afirmando designadamente que a livre apreciação da prova, prevista no art. 607º, nº 5 do Novo Cód. do Proc. Civil, não significa arbitrariedade e que o relatório social em que a Mmª Juíza “a quo” se apoiou está incompleto e desactualizado.
Sucede, contudo, que estas considerações se mostram totalmente inócuas, porquanto o recorrente no seu recurso não procedeu à impugnação de qualquer concreto ponto da matéria de facto.
*
Assim, sem necessidade de mais considerações, há que julgar improcedente “in totum” o recurso de apelação interposto pelo requerido B….
*
Sintetizando:
- O critério da preferência maternal não pode ser hoje, por si só, o critério determinante para fixar a residência do menor, nos casos de tenra idade.
- Este elemento tem que ser conjugado com todos os outros elementos disponíveis a fim de se apurar da capacidade de cada um dos progenitores para ter o filho a viver consigo.
- A solução da “guarda alternada” (o filho ficará a residir alternadamente com cada um dos progenitores por períodos idênticos – 1 semana; 2 semanas; 1 mês) apresenta inconvenientes relacionados com a instabilidade que cria nas condições de vida do menor, motivadas pelas constantes mudanças de residência.
- Contudo, a solução da residência alternada pode ser adoptada se os pais, acordando nesse sentido, mostrarem uma inequívoca vontade de cooperar e de pôr de parte os seus diferendos pessoais.
- Não deve, porém, ser seguida num caso em que o menor tem cinco anos de idade e existe um clima de animosidade entre os pais.
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo requerido B…, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
Porto, 13.5.2014
Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
______________
[1] Adoptada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20.11.1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990.
[2] Cfr. Maria Clara Sottomayor, “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos casos de Divórcio”, 4.ª ed., págs. 33 e 34.
[3] Cfr. “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”, Quid Juris, 2ª ed., págs. 64 e 65 [obra colectiva de Helena Melo, João Raposo, Luís Carvalho, Manuel Bargado, Ana Leal e Felicidade Oliveira].
[4] Cfr. sobre esta questão “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”, Quid Juris, 2ª ed., págs. 69 e 70.
[5] Em sentido idêntico na jurisprudência, cfr. Ac. Rel. Lisboa de 6.2.2007, p. 705/2007-7, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”, Quid Juris, 2ª ed., pág. 87.
[7] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 18.3.2013, p. 3500/10.0 TBBRR.L1 -6, disponível in www.dgsi.pt., onde se entendeu que o regime da residência alternada não é, normalmente, o mais adequado no caso de conflito acentuado entre progenitores e em que estejam em causa crianças muito pequenas.
[8] Cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 14.6.2010, p. 148/09.6 TBPFR.P1, de 28.9.2010, p. 3234/08.6 TBVCD.P1 e de 29.11.2011, p. 107/08.6 TBSJM-B.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d7ed0552c70bb75680257cec003da443?OpenDocument&Highlight=0,responsabilidades,parentais

segunda-feira, 9 de junho de 2014

CHAPA DE MATRÍCULA FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO DOLO ESPECÍFICO - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 28.05.2014


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
209/13.7GAFCR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CHAPA DE MATRÍCULA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
DOLO ESPECÍFICO

Data do Acordão: 28-05-2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256º Nº 1 CP

Sumário: 1.- A chapa de matrícula de um ciclomotor é, para efeitos penais, um documento;
2.- São elementos constitutivos do tipo base da falsificação ou contrafação de documento (art. 256º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objetivo]

- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjetivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade;

- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

3.- Não basta que conste da acusação que o agente agiu com intenção de causar prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo, para nela se ter por contemplado o dolo específico do crime em questão. Esta fórmula traduz apenas e só um juízo conclusivo, cuja validade de imputação fica dependente da possibilidade de ser densificado através de outros factos constantes da acusação.

4.- Tendo o arguido colocado no veículo uma outra chapa que não correspondia à matrícula atribuída àquele veículo, o benefício ilegítimo visado pelo arguido foi o de circular com o ciclomotor na via pública, circulação que não podia fazer com aquela chapa, posto que não se encontra matriculado, traduzindo-se o engano das autoridades num mero pressuposto para alcançar aquele benefício.


Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da comarca de Figueira de Castelo Rodrigo o Ministério Público requereu o julgamento, em processo especial sumário do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 1 do Dec. Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro e de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, a) e nº 3 do C. Penal, com referência ao art. 255º, a) do mesmo código.

Por despacho de 15 de Novembro de 2013 o Mmo. Juiz recebeu a acusação na parte respeitante ao crime de condução de veículo sem habilitação legal e rejeitou-a na parte respeitante ao crime de falsificação ou contrafacção de documento.
*

Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
A. O arguido A... foi acusado pela prática de Crime de Falsificação ou Contrafacção de Documento, previsto e punível pelo artigo 256°, n.º 1 al. a) e n.º 3, por referência ao artigo 255° al a), todos do Código Penal.
B. O Meritíssimo Juiz proferiu despacho de rejeição, parcial, da acusação por, no seu entender, a mesma ser manifestamente infundada, por não conter a narração de factos, e, bem assim, da verificação de todos os elementos integradores e necessários da verificação de um crime.
C. Salvo devido respeito por opinião contrária, os factos narrados, preenchem os elementos típicos do crime de Falsificação ou Contrafacção de Documento.
D. O ilícito típico em causa pressupõe, antes de mais, a existência de um documento sobre o qual incidam os actos de falsificação, exercendo o documento – enquanto "declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizada num objecto que possa constituir meio de prova" –, uma tripla função, em concreto, função de perpetuação, de garantia e, ainda, função probatória.
E. Nos termos vertidos no Assento do STJ 3/98, tem-se por assente que a chapa de um veículo integra, em si, um documento e, para efeito do n.º 3 do artigo 256º do Código Penal, um documento autêntico ou com igual força, uma vez que, a sua emissão tem origem numa autoridade pública.
F. Relativamente a enunciação de factos na acusação por referência ao preenchimento do tipo objectivo de ilícito, nada consignou o Meritíssimo Juiz a quo na medida em que, atentos os fundamentos vertidos no despacho recorrido, o mesmo apenas põe em causa e conclui pela não aposição de factos que permitam concluir do preenchimento do tipo subjectivo de ilícito, seja, por um lado, que o agente actuou com determinada intenção de obter para si benefício, seja, por outro lado, que agente pretendia causar prejuízo ao Estado.
G. Considerando o tipo legal de crime em causa, estamos perante um crime doloso, tendo por referência qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal. Todavia, para além do dolo genérico, exige, ainda, a verificação ele um dolo específico, que consiste no agente actuar com intenção de causa prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.
H. Na situação em apreço e ao teor da acusação pública deduzida, verifica-se que o arguido, aquando da operação de fiscalização de que foi alvo, circulava com chapa ele matrícula que não correspondia ao veículo ciclomotor por si conduzido e a este correspondente atribuída pelo I.M.T.T., tendo sido colocada pelo arguido como se genuíno e autêntico se tratasse, por forma a circular com a mesma na via pública, ainda que, não correspondendo à realidade, ou seja, às características atribuídas, quer ao veículo por si conduzido, quer ao veículo a que correspondia a chapa de matricula correspondia na verdade.
I. Haverá pois que concluir que a chapa de matrícula – documento, que o arguido colocou para poder circular com o veículo e apresentou perante as autoridades não coincide com a realidade, o que representou, resultando, assim, da acusação pública que o arguido tinha consciência e vontade de praticar tais factos, pondo em causa a fé pública, a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório do documento.
J. E por conseguinte, obtendo, o arguido benefício ilegítimo, nomeadamente, conduzir e circular com o veículo na via pública, sabendo que o mesmo não correspondia ao emitido por quem de direito e correspondente àquele veículo.
K. Pelo que, do quadro factual enunciado na acusação, nomeadamente, do artigo 11°, ressalta, efectivamente, que o arguido agiu com a intenção de obter para si óbvio benefício que é o de circular com o veículo, na via pública, sem que estivesse em condições para tal, pois que, como é comummente conhecido e sabido, qualquer veículo não poderá circular sem que se encontre devidamente matriculado, daí que, a sua ausência incorporará uma intenção certa de enganar e ludibriar as autoridades e não incorrer na prática de qualquer ilícito, nomeadamente, contra-ordenacional.
L. Destarte, considerando que o tipo legal de crime e previsto pelo artigo 256º do Código Penal, entendemos que se encontram representados na acusação deduzida todos os elementos estruturais do tipo de ilícito, ou seja, a acção do arguido e, bem assim, na sequência da mesma, a intenção de causar prejuízo ao Estado e obter para si benefício ilegítimo.
M. Entendemos que retira-se do quadro factual constante da narração, factos que constituem crime, isto é, que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, conforme consagrado no artigo 1º do C.P.P..
N. Afigura-se-nos, assim, que do texto da acusação, conseguimos aferir da existência de elementos constitutivos do crime de falsificação de documento, quer elementos objectivos, quer elementos subjectivos.
O. Assim, é nosso entender, que a acusação deduzida, não deverá ser considerada infundada, uma vez que, nos seus próprios autos tem condições de viabilidade.
P. Entendemos, porquanto, que a acusação ora colocada em crise no despacho recorrido, contém a narração dos factos que constituem os elementos do crime de Falsificação de Documento previsto e punido pelo artigo 256°, n.º 1 al. a) e n.º 3 do Código Penal, de forma perceptível, para que o arguido deles possa saber, com precisão e, para que face a ela possa organizar a sua defesa, garantindo o necessário contraditório assegurado pelo disposto no artigo 32º do Código Penal.
Q. Deste modo, se conclui que o presente recurso deverá proceder, por inexistir fundamento legal para a rejeição da acusação.
Termos em que, deverá ser dado provimento ao presente recurso, por se entender que o Tribunal violou o disposto pelos artigos 256°, n.º 1 al. a) e n.º 3, por referência ao artigo 255° a) do C.P. e os artigos 311°, n.º 2 al. a), n.º 3 al. d) e 386º do C.P.P., revogando o despacho recorrido e determinada a sua substituição por outro que receba a acusação e ordene o prosseguimento dos autos, com realização de audiência de discussão e julgamento, por respeito à forma especial do processo.
VOSSAS EXCELÊNCIAS, porém, apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA.
*

Respondeu o arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
I) – A acusação deve descrever de forma clara, explícita e inequívoca todos os factos materiais concretos praticados pelo arguido penalmente censuráveis (elemento objectivo), sem imprecisões ou referências vagas e sem expressões conclusivas das normas penais, e ainda os motivos que levaram o arguido a agir ilicitamente (elemento subjectivo), pois este tem direito a saber com clareza e exactidão aquilo de que vem acusado;
II) – No caso, por imposição da norma do art° 256°, n° 1 do Cód. Penal, deveria a narrativa acusatória ter reconstituído os acontecimentos da vida real, indicando qual o prejuízo, qual o benefício e quem e como foi prejudicado, beneficiado, quem e como preparou, facilitou, executou e encobriu ou ocultou outro crime, uma vez que ludibriar (enganar) nem sequer integra qualquer elemento típico do crime previsto e punido por aquela norma;
III) – Só, assim, o juiz, na sua decisão, poderia vir a dar por verificados ou não esses acontecimentos da vida real como fundamento da eventual sanção a aplicar ao arguido;
IV) – A estrutura acusatória do processo penal português, aliada ao princípio da vinculação temática, impõem ao juiz a fiscalização liminar da legalidade da acusação, como se acabada de referir no ponto II) (dois), em ordem a garantir um processo justo.
Pelo exposto, e salvo melhor e certamente mais douta opinião de V. Ex.ªs, será de manter o douto despacho, confirmando-o, na parte recorrida, negando-se provimento ao recurso ora interposto,
Assim se fazendo a requerida e esperada JUSTIÇA!

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a motivação da Digna Magistrada recorrente, invocando a natureza de crime formal e de crime de resultado cortado da falsificação de documento, e concluiu pela procedência do recurso.
*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
*
*
*

II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a acusação deduzida, na parte relativa ao crime de falsificação de documento é de rejeitar, por não preencherem todos os elementos do respectivo tipo os factos nela imputados ao arguido.

*

Para a resolução desta questão importa ter presente:

A) O teor da acusação, que é o seguinte, na parte relevante:
“ (…).
1º No dia 05 de Novembro de 2013, pelas 17h30m, na Rua 25 de Abril, na localidade de Figueira de Castelo Rodrigo, o arguido A... conduzia o veículo ciclomotor de passageiros, de marca Yamaha, modelo Target, cor preta e vermelha, ostentando a chapa de matrícula com o n.º 05-ED-60.
2º Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1. o veículo conduzido pelo arguido e sua propriedade ostentava a chapa de matrícula n.º 05-ED-60, correspondente à matricula de um veículo ciclomotor, marca Yamaha, modelo 1974 BY-S, cor azul e outras.
3º Em data e modo não concretamente apurado, o arguido procedeu à troca da matrícula do veículo ciclomotor mencionado em 1., ao qual corresponde o n.º de matrícula 1-FCR-10-73, pela matrícula n.º 05-ED-60, passando a circular com o veículo na via pública.

4º Ao colocar a referida matrícula, bem sabia o arguido que a mesma não atestava factos verdadeiros, isto é, a mesma não correspondia com a realidade, não medida em que não correspondia à matrícula atribuída àquele veículo pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes
Terrestres, IP. (IMTT).
5º O arguido conduzia o veículo acima mencionado em 1. sem para tal estar habilitado com a necessária carta de condução de veículo ciclomotor.
6º O arguido bem sabia não ser possuidor de carta de condução que o habilitasse a exercer a condução, em via pública ou equiparada, sem estar legalmente habilitado, o que não obstou a que efectivamente conduzisse o veículo em apreço.
7º Ao colocar a referida matrícula no veículo mencionado em 1. pretendia o arguido circular no com veículo na via pública, ostentando matrícula, de modo a ludibriar as autoridades, policiais ou outras, obtendo, dessa forma, benefício ilegítimo para si e, simultaneamente, prejudicando o Estado, garante da fé pública de tal documento.
8º Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.
Incorreu, pelo exposto, em autoria material e na forma consumada, na prática, em concurso real ou efectivo de:
- um crime de "Condução sem habilitação legal", p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1 do D.L. 2/98, de 3.01.
- um (1) crime de "Falsificação ou contrafacção de Documento", p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1 al. a) e n.º 3, por referência ao artigo 255º a), todos do Código Penal.
(…)”.

B) O teor do despacho recorrido que é o seguinte:
“ (…).
O Tribunal é competente.
O processo é o próprio.
O Ministério Público acusou o arguido da prática de factos passíveis de integrarem dois crimes de natureza pública, pelo que se mostra legitimado para agir penalmente (art. 48º do CPP).
*
No que respeita ao imputado crime de condução sem habilitação legal não se verifica qualquer das hipóteses do nº 2 do art 311º do CPP.
Pelo exposto recebo a acusação deduzida pelo Ministério Publico contra o arguido A..., aí melhor identificado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º nº 1 do Decreto-Lei 2/98, de 3/01.
*
Porém, quanto ao crime de falsificação de documento conclui-se que a acusação não menciona qualquer facto de onde resulte preenchida a específica intenção de obtenção de benefício ou causação de prejuízo que é elemento deste do tipo de crime (nem estando em causa factos que impliquem a preparação, execução ou encobrimento de outro crime).
O tipo de crime em questão tem a seguinte redacção:
Artigo 256.°
Falsificação ou contrafacção de documento
1 – Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Decorre pois do corpo do nº 1 do artigo que para que seja preenchido o tipo é necessária a (imputação e) prova de que o agente actuou com uma determinada intenção. Essa intenção pode ser a de causar prejuízo (ao outrem ou ao Estado), a de obter um benefício ilegítimo ou preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Ora perscrutada a acusação não resulta da mesma qual o benefício que o arguido visava obter (sempre sabendo que tal benefício pode ser de ordem patrimonial ou não), nem que prejuízo pretendia causar ao Estado (sendo certo que nos parece tautológico afirmar meramente que o prejuízo causado ao Estado seria a circulação com matrícula diversa da atribuída pelos serviços competentes. Se assim se entendesse o benefício seria … a prática do próprio crime sem aquele elemento subjectivo específico mencionado no tipo-de-crime. Tal entendimento redundaria, afinal em desconsiderar-se como necessária aquela intenção específica.).
Tomando de empréstimo algumas das palavras do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/11/2010 (processo 449/07.8GBAVV.Gl, disponível em www.dgsi.pt), afirmar que o arguido actuou com o intuito de "(…) ludibriar as autoridades, policiais ou outras, obtendo, dessa forma, beneficio ilegítimo para si e, simultaneamente, prejudicando o Estado, garante da fé pública de tal documento", além de não concretizar qual foi o prejuízo nem qual o benefício, é formular um juízo que inclui a resposta à questão a decidir, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino.
Em conclusão, entende o Tribunal que ludibriar as autoridades não constitui, em si mesmo, nenhum benefício ou prejuízo.
Pelo exposto, ao abrigo do art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) e do art. 386º do CPP, por os factos imputados não constituírem crime, rejeito a acusação pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelo artigo 256º nº 1 al. a) e n.º 3, por referência ao artigo 255º a), todos do Código Penal.
*
Não são conhecidas outras nulidades, ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e susceptíveis de obstarem ao conhecimento da causa.
*
Inicie-se, de imediato, a audiência de julgamento.
(…)”.
*
*
1. A Digna Magistrada recorrente imputou ao arguido, além do mais, a prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, a) e 3 do C. Penal, por referência ao art. 255º, a) do mesmo código por o mesmo, brevitatis causa, no dia 5 de Novembro de 2013, numa via pública de Figueira de Castelo Rodrigo, um ciclomotor Yamaha Target, ao qual correspondia a matrícula 1-FCR-10-73, e na ocasião tinha aposta a matrícula 05-ED-60, correspondente a um ciclomotor Yamaha 1974 BY-S, tendo sido o arguido quem havia procedido à troca das referidas matrículas, assim pretendendo circular com o ciclomotor na via pública com aquela matrícula de modo a ludibriar as autoridades fiscalizadoras do trânsito.
O Mmo. Juiz a quo entendeu que, exigindo o preenchimento do tipo imputado a verificação de uma específica intenção do agente – a de causar prejuízo a terceiro ou ao Estado, a de obter um benefício ilegítimo, ou a de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime – e não constando da acusação nem o benefício visado, nem o prejuízo a causar, a afirmação de que o arguido agiu ‘de modo a ludibriar as autoridades’ não constitui, em si mesmo, benefício ou prejuízo, e por isso concluiu ser, nesta parte, de rejeitar a acusação por manifestamente infundada, dada a ausência de tipicidade da conduta.
Vejamos.

1.1. O art. 255º, a) do C. Penal define documento como, a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
Para efeitos do crime de que cuidamos, documento é, portanto, a declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante, e o sinal feito, dado ou posto numa coisa para provar um facto juridicamente relevante. Assim, a chapa de matrícula de um veículo, designadamente, de um ciclomotor, depois de nele aposta, enquanto sinal que identifica e revela que foi feita a matrícula – entendida como o resultado do acto de matricular isto é, o acto administrativo de registo de um veículo destinado ou autorizado a circular na via pública, efectuado pela entidade competente, que identifique o veículo e estabeleça as suas condições de circulação (art. 2º, b) do Dec. Lei nº 128/2006, de 5 de Julho) – e que o respectivo número é o que dela [chapa] consta, constitui um documento, aliás, com força igual à de um documento autêntico [conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência 3/98, DR, I-A, de 22 de Dezembro de 1998].

Em conclusão, a chapa de matrícula de um ciclomotor é, para efeitos penais, um documento.

1.2. Integrado no Livro II, Título IV – Dos crimes contra a vida em sociedade, Capítulo II – Dos crimes de falsificação, do C. Penal, a falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que à prova documental respeita (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte Especial, Tomo II, pág. 680).

São elementos constitutivos do tipo base da falsificação ou contrafacção de documento (art. 256º, nº 1 do C. Penal):
[Tipo objectivo]
- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;
[Tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade;
- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Posto isto.

2. Estando indiciado nos autos que o arguido, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas na acusação, conduzia um ciclomotor no qual havia previamente colocado a chapa de matrícula pertencente a um outro ciclomotor, podemos seguramente concluir que está indiciariamente preenchido o tipo objectivo do crime de falsificação ou contrafacção de documento, com referência à alínea a) do nº 1 e ao nº 3 do art. 256º do C. Penal.

Relativamente ao tipo subjectivo e, concretamente, no que respeita ao dolo específico, consta da acusação que o arguido, ao colocar a matrícula 05-ED-60 no ciclomotor, pretendia assim circular com ele na via pública, de modo a ludibriar as autoridades fiscalizadoras do trânsito, obtendo desta forma um benefício ilegítimo e prejudicando o Estado, garante da fé pública do documento em questão.
Concordamos com o Mmo. Juiz a quo quando afirma, no despacho recorrido, que ‘ludibriar as autoridades não constitui, em si mesmo, nenhum benefício ou prejuízo’, e que ‘parece tautológico afirmar meramente que o prejuízo causado ao Estado seria a circulação com matrícula diversa da atribuída pelos serviços competentes’. Mas, no caso concreto, a questão do dolo específico, ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, não pode ser assim equacionada.

Como é evidente, não basta que conste da acusação que o agente agiu com intenção de causar prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo, para nela se ter por contemplado o dolo específico do crime em questão. Esta fórmula, ou qualquer outra semelhante, até porque corresponde à letra da lei, traduz apenas e só um juízo conclusivo, cuja validade de imputação fica dependente da possibilidade de ser densificado através de outros factos constantes da acusação.

Resulta dos arts. 1º a 3º da acusação que o arguido, em 5 de Novembro de 2013, em Figueira de Castelo Rodrigo, conduzia na via pública um ciclomotor Yamaha a que correspondia a matrícula 1-FCR-10-73, mas que na ocasião, porque o arguido as havia trocado, ostentava a matrícula 05-ED-60, correspondente a um outro ciclomotor.
O Dec. Lei nº 128/2006, de 5 de Julho, aprovou o Regulamento de Atribuição de Matrícula a Automóveis, Seus Reboques e Motociclos, Ciclomotores, Triciclos e Quadriciclos, regulamento que, no seu art. 33º, nº 1 estabelece distintos prazos para a substituição das matrículas atribuídas pelas câmaras municipais, mas cujo limite, em qualquer caso, é o dia 31 de Dezembro de 2008.
Não tendo sido requerida ao IMT, neste prazo, a substituição da matrícula, ela perdeu validade, o que significa que o ciclomotor passou a ser considerado veículo não matriculado e por isso, susceptível de ser apreendido pelas autoridades fiscalizadoras do trânsito, nos termos do art. 162º, nº 1, b) do C. da Estrada [como é evidente, estas considerações constituem apenas matéria de direito, sendo por isso irrelevante a sua figuração, ou não, na acusação, tanto mais que jura novit curia].
Assim, o que resulta da supra enunciada factualidade é que o benefício ilegítimo visado pelo arguido foi o de circular com o ciclomotor na via pública, circulação que não podia fazer com a chapa 1-FCR-10-73, razão pela qual colocou no veículo uma outra chapa, correspondente a uma matrícula já emitida pelo IMT. Por isso, devendo reconhecer-se que a acusação não é modelar, o benefício ilegítimo, mencionado no seu art. 7º, determinativo da direcção da vontade do arguido, consubstancia-se na própria circulação do ciclomotor na via pública, posto que não se encontra matriculado, traduzindo-se o engano das autoridades num mero pressuposto para alcançar aquele benefício.

Em conclusão, a acusação contém os factos essenciais necessários à concretização do benefício ilegítimo que o arguido, com a sua conduta visou alcançar, pelo que se considera conter a peça acusatória todos os elementos do tipo do crime de falsificação ou contrafacção de documento, não havendo, em consequência, lugar à sua rejeição, parcial, nos termos do art. 311º, nº 2, a) do C. Processo Penal, como se decidiu no despacho recorrido.
*
*
*
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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.
Em consequência, revogam o despacho recorrido, na parte em que rejeitou a acusação pela prática do crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, a) e nº 3 do C. Penal, com referência ao art. 255º, a) do mesmo código, e determinam a sua substituição por outro que, nenhum outro obstáculo existindo, ordene o prosseguimento dos autos.

Recurso sem tributação.

*

Coimbra, 28 de Maio de 2014

(Heitor Vasques Osório – relator)
(Fernando Chaves)
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/41ed90f79ac97d3980257cee003261b0?OpenDocument

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