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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ SOCIEDADE NOVO CPC - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 26.09.2013


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4351/08.8TBVNG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SOCIEDADE
NOVO CPC

Nº do Documento: RP201309264351/08.8TBVNG.P2
Data do Acordão: 26-09-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O artº 544º, do novo CPC, que alterou o artº 458º do anterior, passou a admitir a possibilidade de condenação, como litigantes de má fé, das pessoas colectivas e sociedades e eliminou a responsabilização do representante que estivesse de má fé na causa.
II - Tal norma é de aplicação imediata, pelo que, apreciando-se em recurso uma tal condenação, esta não pode subsistir.
III - Tendo o tribunal de 1ª instância, na sentença, condenado a própria sociedade e tendo-a a Relação, em recurso, absolvido, com o fundamento de que a responsabilidade é do representante, não pode o tribunal a quo, por no Acórdão tal não ter sido determinado, proferir, ex officio, nova decisão baseada naquele entendimento, uma vez que estava esgotado o seu poder jurisdicional (artºs 666º, nº 1, do anterior, e 613º, nº1, do novo Código).
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Apelação nº 4351/08.8TBVNG.P2– 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº 94)
Des. Dr. Fernando Manuel Pinto de Almeida (1º Adjunto)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (2º Adjunto)

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
Na 2ª Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia correu termos acção declarativa ordinária movida pela Sociedade Comercial “C…, SA”, contra “C…, SA”, em que aquela – através do respectivo patrono forense para o efeito mandatado por procuração (formalizada pelo documento escrito de fls. 97 dos autos e datada de 12-11-2007) outorgada, em sua representação, pelo Administrador D… – pediu a condenação desta no pagamento, com fundamento em responsabilidade pré-contratual pela ruptura de negociações tendentes à conclusão de certo contrato-promessa, da quantia de 1.952.500,00€ (e juros), a título de indemnização pelos prejuízos consequentemente sofridos.
Na final da sua contestação, a Ré alegou que a Autora, ao intentar a acção e nela deduzir a pretensão indemnizatória, litigou de má fé e, com esse fundamento, requereu a condenação dela – Sociedade – em multa e indemnização, esta de montante nunca inferior a 25.000€.
Uma vez notificada, a Autora, na réplica que apresentou, impugnou os fundamentos desta pretensão, batendo-se pela sua improcedência, e, por sua vez, imputando conduta litigante de má fé à Ré, requereu a sua condenação em moldes similares – pretensão também contraditada na tréplica.
Percorrida a normal tramitação e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, proferida sentença (fls. 550 a 560) que, além de julgar a acção totalmente improcedente e absolver do pedido a Ré, decidiu condenar a Autora – Sociedade – como litigante de má fé na multa de 12 UC´s e indemnização.
Inconformada, apelou a Autora para esta Relação, mas restritamente quanto à parte relativa à litigância de má fé, defendendo que os factos apurados não integram os pressupostos objectivos e subjectivos de tal instituto e, assim, pedindo a sua absolvição da multa e indemnização em que foi condenada.

Então, por Acórdão desta Relação de 23-10-2012 (exarado a fls. 634-647) com fundamento no entendimento de que, por força do artº 458º, do Código de Processo Civil então vigente, uma sociedade não pode ser condenada como litigante de má fé e de que – última frase do capítulo relativo ao mérito do recurso e a anteceder o da decisão – “Para que a eventual litigância de má fé possa ser objecto de punição será necessário identificar o representante legal da apelante responsável pela litigância de má fé, conceder-lhe a possibilidade de se defender e decidir em conformidade”, julgou-se procedente a apelação, em consequência do que foi a Autora – Sociedade – absolvida do pedido.
Transitada em julgado esta decisão e devolvidos os autos ao tribunal de 1ª instância, foi aí, depois, proferido (fls. 662) o seguinte despacho:
“Na esteira do decidido pelo Douto Acórdão da Relação do Porto proferido nestes autos determino a notificação de D… e das partes para, em 10 dias, se pronunciarem sobre a possibilidade de aquele ser condenado como litigante de má fé na qualidade de representante legal da Ré [queria, manifestamente, dizer-se, “da Autora”!] e subscritor da procuração de fls. 97, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 458º do CPC.”
Pronunciaram-se a Autora e o próprio seu representante, D…, alegando, então, ambos, em síntese, que ao decidir-se, sem mais, pela absolvição daquela Sociedade do pedido, ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à questão, violando o despacho o caso julgado. Caso, assim não se entenda, por os factos não preencherem os pressupostos da litigância de má fé, deve aquele ser absolvido.
E pronunciou-se também a Sociedade Ré, mas em sentido diametralmente oposto àqueles.
Foi, de seguida, proferida a seguinte decisão:
“Do caso julgado/manutenção ou não do poder jurisdicional sobre a questão da litigância de má-fé.
No âmbito da sentença que conheceu do mérito da causa a fls. 550 e ss. decidiu-se condenar a A. como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Ré.
De tal decisão interpôs recurso a A. o qual veio a ser decidido nos termos do Douto Acórdão de fls. 634 e ss.. no qual se julgou a apelação procedente e “absolveu-se a A. do pedido”.
Tal recurso versou sobre a condenação da A. como litigante de má-fé.
Sendo esse o objecto do recurso a absolvição proferida incide sobre a A., ou seja, a decisão que condenou a A. como litigante de má-fé foi revogada.
Os fundamentos daquele Douto Aresto são, em síntese, que a A., sociedade comercial, não pode nunca ser condenada como litigante de má-fé e que se tal comportamento se verificar na sua actividade processual quem deve ser condenado como litigante de má-fé é o seu representante legal, nos termos do disposto no artº 458 do CPC..
A fundamentação do referido Acórdão termina dizendo que “Para que a eventual litigância de má fé possa ser objecto de punição será necessário identificar o representante legal da apelante (a A.), conceder-lhe a possibilidade de se defender e decidir em conformidade”.
O que se fez com o despacho de fls. 662 foi, precisamente, dar cumprimento a tal decisão.
Em conclusão importa concluir que o alcance (força) de caso julgado proferido pelo Douto Acórdão “in casu” é, apenas, a impossibilidade de a A. ser condenada como litigante de má-fé, ou seja, a sua absolvição de tal imputação.
Não resulta da respectiva decisão e muito menos da sua fundamentação a inexistência de litigância de má fé e/ou a impossibilidade de condenar qualquer outro sujeito como tal. Resulta, aliás, exactamente o contrário; cfr. o parágrafo supra citado.
A possibilidade de o tribunal (1ª instância) se pronunciar sobre a litigância de má-fé não se esgota com a prolação da sentença da causa nem a mesma, neste caso, se vê limitada pelo Acórdão proferido antes se renovou o nosso poder jurisdicional face à revogação da condenação da A. e à possibilidade, expressamente mencionada/sugerida, de eventual condenação do respectivo representante legal, desde que devidamente identificado e cumprido o principio do contraditório, como foi o caso.
Da litigância de má-fé.
“Litiga de má-fé, artº 456 nº2 alíneas a) e b) do C. P. C., quem tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e/ou quem com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.”
“Quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o representante que esteja de má-fé na causa”, artº 458 do CPC..
A A. é uma sociedade anónima, sendo que à data da propositura da presente acção era seu administrador D…, tendo sido ele quem emitiu a procuração forense de fls. 97. (cfr. fls. 97 e 257 e ss..).
Foi igualmente D… quem prestou depoimento de parte, em representação da A.; cfr. 467/468 e gravação do mesmo depoimento.
De igual forma foi aquele D… quem conduziu todo o processo negocial em apreço nos autos e que, em última análise, redundou na propositura da acção por parte da A..
Tal é o que resulta do conjunto dos factos provados, ex. vi p. ex. os nºs 5º, 7º, 8º e 10º.
Ao deduzir a presente acção com fundamento na existência por parte da Ré de culpa “in contrahendo” bem sabendo, pois não podia ignorar factos que são pessoais e consigo se passaram, que a recusa da Ré em contratar se ficou a dever, em suma, à rejeição/não aceitação da inclusão no contrato de uma clausula ou conjunto de clausulas para resolução/salvaguarda de uma questão que a Ré desde o inicio das negociações reputou de essencial, a A., por intermédio do seu representante legal D…, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
Ao exposto acresce que, para fundamentar a dedução da presente acção a A., por intermédio do seu representante legal D…, alegou factos que sabia não corresponderem à verdade (p. ex. artºs 19º e 49º da P.I.), omitiu factos relevantes para a decisão da causa (p. ex. a devolução da quantia de euros 100.000,00 a que alude o facto provado nº 28º) e impugnou factos que sabia serem verdade (p. ex. os constantes dos factos provados 33º, 34º e 35º).
Ao proceder da forma descrita o legal representante da A., D…, litigou com má-fé a qual esteve na génese da própria propositura da acção sendo causadora da mesma.
Assume, pois, elevada gravidade o comportamento em apreço, sendo que deverá suportar as consequências legais do mesmo o referido representante legal da A., D…, por força do disposto no citado artº 458 do CPC..
A litigância de má-fé implica a condenação em multa (a fixar entre 2 e 15 Uc´s, artº 10 do RCP. e indemnização (desde que seja pedida) sendo que esta pode corresponder ao reembolso das despesas originadas pela má-fé, honorários dos mandatários inclusive acrescida dos demais danos sofridos pela Ré em consequência directa ou indirecta da má-fé, artº 456 nº 1 e 457 nºs 1 e 2 do CPC..”
Face ao exposto decide-se fixar em 12 Uc´s a multa a aplicar e relegar a liquidação da indemnização para fase posterior nos termos do disposto no artº 457 nº 2 do CPC..
Termos em que condeno o representante legal da A., D…, como litigante de má-fé, no pagamento de multa no valor de 12 Uc´s e de uma indemnização à Ré correspondente ao reembolso das despesas originadas pela má-fé, honorários dos mandatários inclusive, acrescida dos demais danos sofridos por aquela Ré em consequência directa ou indirecta da referida má-fé.”
O referido representante da Autora – C… – não se conformou e interpôs recurso para esta Relação, concluindo assim as suas alegações:
A. Com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que julgou procedente o recurso e determinou a absolvição da sociedade Autora, concretizou-se definitivamente o poder jurisdicional quer do tribunal a quo quer do tribunal ad quem.
B. Desta forma, no modesto entendimento do recorrente, dúvidas não restam que a revogação da decisão do tribunal de primeira instância pelo tribunal de recurso e sua substituição por outra em sentido diametralmente oposto, esgotaram inelutavelmente o poder jurisdicional no que tange à decisão recorrida.
C. Só assim não seria caso o Tribunal ad quem, tivesse expressamente ordenado, como se fez na decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.11.2009, Carlos Gil, 1624/08.2TBCBR-A.C1 in www.dgsi.pt, amplamente citada no acórdão da Relação do Porto proferido nos presentes autos, que os autos baixassem à primeira instância.
D. Assim, não pode o recorrente deixar de concluir que a interpretação dada pelo Mmo. Juiz a quo à fundamentação do acórdão da Relação do Porto não tem sustentação legal e que a sua condenação viola o caso julgado já formado e constitui um acto ferido de nulidade ou inexistência, art.º 201º CPC, por desconsiderar o disposto no art.º 666º nº 1, CPC, que de forma expressa prevê que uma vez proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional.
E. Da matéria dada como provada, verifica-se a existência de efectivas negociações (num estado muito avançado) susceptíveis de gerarem confiança e expectativas legítimas na conclusão do contrato,
F. havendo apenas um único ponto divergente nestas negociações, nada levava a crer que a Ré, de forma inesperada tenha desistido da concretização do negócio.
G. Prova disso é que a A. chegou a efectuar um pagamento ao E…, pelos serviços de acessória por este prestados no âmbito da negociação da venda à F…, S.A., (ponto 28º da matéria provada), tão convencida que estava na celebração do negócio,
H. a convicção estava criada até na pessoa do próprio intermediário do negócio, que chegou a receber a quantia devida pela acessória no negócio.
I. O facto da A. conhecer as reservas da R. (também sentidas pela A.) no valor assumir pela A., não quer dizer que esta conhecesse a essencialidade desse último valor sugerido: 300.000,00€, (ponto 34º da matéria de facto provada), que a A. sempre julgou que se iria conseguir reduzir, por acordo entre as partes, até porque, nunca pela A. considerado como um valor final.
J. Atendendo ao exposto no Ac. da Relação do Porto de 27/10/2009 in www.dgsi.pt. acima referido e ao avançar das negociações - faltava apenas o acordo quanto a um último ponto - é totalmente legitima a convicção da A. na celebração do negócio, que nunca desistiu, nem perdeu vontade em realizá-lo.
K. E foi nesse sentido e espírito que a A. considerou estar numa daquelas situações ensinadas pelo Professor Galvão Telles in Direito das Obrigações, 6ª Edição Revista e Actualizada, pág. 65), onde é referido que “podem verificar-se fundamentalmente duas hipóteses. Ou não chega a concluir-se qualquer contrato porque um dos interessados rompe arbitrariamente as negociações. Ou conclui-se um contrato que todavia se mostra ferido de invalidade por culpa de uma das partes. Em qualquer dos casos o lesado tem direito à indemnização dos danos negativos, dos danos que não teria sofrido se não tivesse entrado em negociações ou não tivesse celebrado um contrato nulo ou anulável (em contraposição aos danos positivos, provenientes da violação de um contrato validamente formado).”
L. No âmbito das circunstâncias concretas, as negociações avançaram em termos tais que criaram nos intervenientes uma razoável base de confiança na celebração do contrato, M. A A. tinha assim, motivos válidos para intentar uma acção contra a R. por esta ter rompido as negociações que estavam em curso, as quais se prolongaram por mais de 4 meses, com várias reuniões, deslocações do estrangeiro, pagamentos a mediadores de negócios, e um sempre reiterado interesse no negócio manifestado por ambas as partes, mantendo (em ambas as partes e até terceiros), uma forte convicção de que o mesmo estava assegurado.
N. Ainda que se tenha considerado o pedido da A. improcedente, não se vislumbra onde estão os factos para a condenação da A. como litigante de má fé, na medida em que inexiste o dolo, ou sequer a negligência da A. em intentar a acção que considerou justa, atendendo à matéria de facto provada - cf. Ac. Relação do Porto de 20/10/2009 in www.dgsi.pt.
O. Ao considerar haver litigância de má fé, a douta decisão violou por erro de interpretação, os arts. 227º nº 1 e 253º do Código Civil e o 456º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser revogado o douto despacho proferido e substituído por decisão que absolva o aqui recorrente da condenação como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização.
Assim se fazendo a mais inteira JUSTIÇA.
Nas contra-alegações, a Ré rebateu longamente os fundamentos esgrimidos e defendeu a confirmação da decisão.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos autos e efeito suspensivo.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir uma vez que nada a tal obsta.
II. QUESTÕES A RESOLVER
As questões colocadas e que este Tribunal pode e deve decidir, nos termos dos artigos 663º, nº 2, 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do novo CPC, são as seguintes:
1. Consequências da alteração, no novo CPC aprovado pela Lei 41/2003, de 26 de Junho, e em vigor desde 1 de Setembro último, do regime da litigância de má fé.
2. Esgotamento do poder jurisdicional e caso julgado.
3. Pressupostos típicos da litigância de má fé.
III. FACTOS PROVADOS
A decisão recorrida não organizou propriamente um elenco com a selecção dos factos provados relevantes para boa decisão do incidente, extraindo-se, ainda assim, da sua fundamentação os que, para tal efeito, considerou:
“A A. é uma sociedade anónima, sendo que à data da propositura da presente acção era seu administrador D…, tendo sido ele quem emitiu a procuração forense de fls. 97. (cfr. fls. 97 e 257 e ss..).
Foi igualmente D… quem prestou depoimento de parte, em representação da A.; cfr. 467/468 e gravação do mesmo depoimento.
De igual forma foi aquele D… quem conduziu todo o processo negocial em apreço nos autos e que, em última análise, redundou na propositura da acção por parte da A..
Tal é o que resulta do conjunto dos factos provados, ex. vi p. ex. os nºs 5º, 7º, 8º e 10º.
Ao deduzir a presente acção com fundamento na existência por parte da Ré de culpa “in contrahendo” bem sabendo, pois não podia ignorar factos que são pessoais e consigo se passaram, que a recusa da Ré em contratar se ficou a dever, em suma, à rejeição/não aceitação da inclusão no contrato de uma clausula ou conjunto de clausulas para resolução/salvaguarda de uma questão que a Ré desde o inicio das negociações reputou de essencial, a A., por intermédio do seu representante legal D…, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
Ao exposto acresce que, para fundamentar a dedução da presente acção a A., por intermédio do seu representante legal D…, alegou factos que sabia não corresponderem à verdade (p. ex. artºs 19º e 49º da P.I.), omitiu factos relevantes para a decisão da causa (p. ex. a devolução da quantia de euros 100.000,00 a que alude o facto provado nº 28º) e impugnou factos que sabia serem verdade (p. ex. os constantes dos factos provados 33º, 34º e 35º).”
IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA
1.
No domínio do Código de Processo Civil que vigorou até 31-08-2013, dispunha o artº 458º que, na hipótese de a parte litigante de má fé ser uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização previstas no artº 456º, recai sobre a pessoa do seu representante que esteja de má fé na causa.
As consequências da conduta típica e censurável da pessoa colectiva manifestada no processo, violadora dos interesses públicos fundamentais que o inspiram (artºs 456º, nº 2, e 266º-A[1]) eram, portanto, imputadas a quem, agindo processualmente em nome da sociedade, corporizou e subjectivou (com dolo ou negligência grave) os inerentes actos, ou seja, a quem, na realidade, esteve de má fé na causa.
Era assim em face da especial natureza da parte litigante que, só se considerando pessoa enquanto como tal ficcionada pelo Direito, não tem vida, acção e vontade próprias, no sentido físico e psíquico, qualidades pressupostas da acção praticada e a cujo agente se dirige a reprovação ético-jurídica em que se traduz a punição.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 103/95[2], invocando Alberto dos Reis, “a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age, em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ao próprio incapaz ou à pessoa colectiva".
Não se trata, assim, de uma responsabilidade do representante ao lado da do representado, cumulativa com a deste, antes de uma responsabilidade daquele em vez da deste, uma responsabilidade substitutiva.
É que, nessa hipótese, a decisão de ir a juízo, a conduta e a estratégia processual adoptadas são da responsabilidade dos órgãos ou representantes da pessoa colectiva (no caso, dos gerentes da sociedade).
Por isso, se agirem dolosamente (de má fé), são eles quem deve ser responsável pelo pagamento da multa, da indemnização e das custas devidas pela litigância de má fé.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (única que aqui está em causa) é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.”
Este modelo remonta ao tempo, hoje ultrapassado, em que praticamente se rejeitava a responsabilidade penal das pessoas colectivas, na medida em que insusceptíveis de um juízo de culpa (segundo o princípio de que societas delinquere non potest) e apenas se admitia a punição de quem individualmente agisse em seu nome. A opção legislativa subjacente é, assim, claramente tributária da ideia de que a responsabilidade por litigância de má fé possuía natureza semelhante à penal e, por isso, só podia ser imputada às pessoas singulares, em consonância, aliás, com a solução que, nos artºs 11º e 12º, se consagrou no Código de 1982 e que perdurou até à Reforma operada pela Lei nº 59/2007, de 04/09, que, alterando o primeiro daqueles artigos, passou a admitir expressamente, em certos casos, a responsabilidade criminal directa de pessoas colectivas.
É claro que o tipo-de-ilícito da litigância de má fé inserto no ordenamento processual civil, de uma perspectiva sistemática, parece, pelo menos à primeira vista, não se coadunar nem inserir bem no conjunto das infracções penais nem merecer o tratamento jurídico-dogmático a estas dispensado, apesar de a respectiva punibilidade exigir um tipo-de-culpa que compreende o dolo e a negligência grave.
Todavia, destinando-se a proteger valores reconhecidamente fundamentais do processo, estruturantes da vida social e imprescindíveis para a realização dos direitos civis, e a reprimir a sua violação, o desvalor da acção e a correspondente censura pressupõem a referência a valores axiológicos (boa fé, verdade, lealdade, cooperação) em muito idênticos aos criminalmente acolhidos.
Como se salienta no já citado Acórdão do TC, e nós sublinhamos, “De facto, pressupondo a condenação, nele prevista, dos gerentes das sociedades, como se disse já, que a sua conduta processual seja dolosa (de má fé), é evidente que tal condenação tem uma óbvia base ética: respondem, porque violaram, consciente e voluntariamente, o dever de verdade e de probidade que, ao irem a juízo, sobre eles impendia.
A sua responsabilidade, sendo, embora, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem, assenta, assim, na ideia de culpa, num juízo de censura de um comportamento que o gerente adoptou em nome da sociedade, que é obra ou "realização da sua liberdade" - de um comportamento que ele adoptou como ser livre (e, assim, como "centro de imputação ético-social de responsabilidade").”
Presente, portanto, a culpa como fundamento da censura ético-jurídica implicada pela violação de certos valores básicos e da correspondente punição, parece estarmos para além das simples regras de disciplina e de organização dos actos do processo, e, assim, já num plano da conduta dos litigantes balizada por princípios e valores superiores.
“De qualquer modo, a litigância de má fé assume-se, hoje, como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que visa a supressão de danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de um comportamento processual. Corresponde, antes, a um subsistema sancionatório próprio.
Por outras palavras, tal como está hoje configurado, o instituto da litigância de má fé visa permitir ao juiz, quando necessário, proceder a uma “disciplina” imediata do processo, oferecendo resposta pronta, ainda que necessariamente limitada, para atitudes aberrantes, iniquidades óbvias, erros grosseiros ou entorpecimento evidente da justiça.“[4]
Vem isto a propósito da entrada em vigor, no pretérito dia 1 de Setembro, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
Cotejando o texto do artº 548º, agora revogado, com o do novo artº 544º vigente, constata-se que foi eliminada a responsabilidade individual da pessoa singular que aja de má fé em representação da parte pessoa colectiva.
No regime de agora, portanto, a eventual conduta litigante de má fé da aqui autora sociedade comercial ser-lhe-ia directamente imputável, respondendo o seu património, em termos gerais, pelas custas, multa e indemnização em que, a esse título, devesse ser condenada.
Tal responsabilidade, portanto, deixou de recair sobre o seu representante, ainda que este esteja de má fé na causa.
Ora, nos termos do artº 5º, nº 1, do diploma que aprovou o novo Código, este “é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes”.
Sendo assim, à face do novo artº 544º do Código, a conduta do aqui apelante, enquanto representante da parte pessoa colectiva no processo, deixou de estar tipificada e, portanto, de ser punível.
Tal consequência, está em linha de sintonia com o, na essência, similar regime penal: o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções (descriminalização); sendo diferentes as disposições penais vigentes ao tempo da prática do facto das posteriormente estabelecidas (alteração), é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (artº 2º, nºs 2 e 4, do CP). E corresponde ao princípio constitucional de que são aplicadas retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável (artº 29º, nº 4, da CRP).
Formalmente, não estamos, claro, ante lei penal, como já se disse. Todavia, comungando ela, como se viu, de princípios e valores fundamentalmente idênticos, ajusta-se a tal regime a legalmente preconizada aplicação imediata da lei processual nova – aplicação esta, afinal, correspondente ao princípio geral aceite na matéria e sobre que o legislador nenhuma excepção ou restrição, neste caso, estabeleceu.
Princípio que, aliás, concebido como de inspiração processual, reconhecidamente assenta no interesse público subjacente ao direito adjectivo e que se justifica no entendimento de que “a nova lei é, do ponto de vista público ou estadual, a tida como a melhor para a defesa dos interesses que estão na base do direito processual”[5] mas que, exactamente por isso, também se aproxima do da descriminalização ou do da retroactividade da lei penal mais favorável, uma vez que se o legislador resolveu deixar de considerar como ilícito punível certa conduta ou atenuar a respectiva punição é porque, “em mais adequada e actualizada visão dos valores legalmente protegidos”[6], entendeu que os factos não são merecedores de censura, ou não o são nos termos gravosos em que o eram.
De resto, no instituto em apreço, a norma em causa, não regula actos processuais, estabelece, sim, um meio de tutela, de cariz sancionatório, da boa fé processual. Por efeito do recurso, está-se, ainda, na fase de apreciação, valoração e eventual punição da conduta processual do representante da Autora, ou seja, perante uma situação jurídica em curso respeitante à efectivação daquele.
Como resume Anselmo de Castro[7], “não parece, pelo menos em via de princípio, que seja de afastar a aplicabilidade imediata da lei nova, sejam quais forem as repercussões dela na esfera dos actos já praticados e dos efeitos já produzidos. A face retrospectiva (negativa) do princípio da aplicação imediata da lei nova apenas cobre claramente as causas já encerradas. Quanto às pendentes, não se vê por que motivos se há-de afastar a lei nova. … se o legislador entende necessário, do singular ponto de vista dos interesses que representa, alterar …os meios de tutela …passa a haver urgência na aplicação do novo regime, abarcando inclusivamente os processos pendentes”.
Por isso, não querendo o soberano legislador, agora, punir a pessoa do representante da sociedade, por tal entender inadequado, desnecessário e injusto; devendo o tribunal obediência à lei; e não podendo àquele negar-se o benefício do regime novo mais favorável, justamente por, como se viu, estar em causa norma (destinada à tutela de valores fundamentais na ordem jurídico-social) de conteúdo (eminentemente sancionatório) e com efeitos (punitivos) pessoais e materiais que vão para além dos inscritos nas que regulam os simples actos de processo e atingiam quem, afinal, não é parte na causa – a decisão recorrida não pode manter-se e deverá ser revogada, como pretende o apelante, embora com fundamento diverso dos por ele alegados.
2.
Mas, caso assim se não entendesse, sempre o despacho recorrido, diga-se subsidiariamente, se nos afigura padecer do vício de inexistência jurídica e, por isso, não poder produzir qualquer efeito, como, aliás, defende o recorrente.
Vejamos.
A litigância de má fé constitui um incidente da instância, que pode ser promovido por iniciativa de qualquer parte ou oficiosamente desencadeado e conhecido pelo tribunal. O seu objecto e sujeitos definem-se, assim, também em função dos poderes oficiosos conferidos ao juiz.
Como indicava o disposto no nº 2, do artº 457º, do CPC anterior e se apresentava como mais lógico e natural em face do sentido e fins do instituto, é na sentença final[8] que, salvo casos excepcionais[9], tal questão deve ser decidida (artºs 659º, nº 1, 660º, nº 2, e 661º).
É, portanto, nesse momento que, pendam de resolução apenas questões suscitadas pelas partes ou também de conhecimento oficioso, se define o âmbito do poder jurisdicional do juiz e que ele deve aí exercer – poder esse que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado quanto à matéria da causa, o mesmo é dizer quanto a todas as referidas questões (artº 666º, nº 1).
No âmbito do regime jurídico estabelecido pelo artº 458º, do CPC anterior, era praticamente unânime o entendimento segundo o qual nunca uma sociedade que litigasse de má fé, apesar de ser ela a parte no processo, poderia por tal conduta ser condenada, uma vez que a consequente responsabilidade recaia sobre o seu representante que estivesse – que em nome dela actuasse – de má fé na causa.
Não sendo esse representante, normalmente, parte, por si, no processo, era também entendimento generalizado, na Doutrina e na Jurisprudência, que, numa tal situação em que se perspectivasse haver litigância de má fé, nunca poderia ele ser condenado sem, primeiro, ser chamado ao processo para nele, em concretização do fundamental princípio do contraditório, ter oportunidade de se defender.
Nos presentes autos, atingido o momento da juris dictio, com os factos disponíveis e em face do regime jurídico aplicável e das soluções por ele abertas, proferiu o tribunal recorrido a sentença na qual, em simultâneo, conheceu do mérito da causa e também da matéria respeitante ao incidente de litigância de má fé deduzido pela Ré contra a Sociedade Autora. Não lançou, então e aí, mão dos seus poderes oficiosos.
Conhecendo nesses limites, entendeu verificados os factos integrantes dos pressupostos da punição, e acolhendo a tese da Ré, mas contrária à predominante, segundo a qual a própria Sociedade Autora é responsável pelas devidas consequências (multa e indemnização), condenou esta.
Julgou, portanto, a questão, em conformidade com a pretensão da Ré e, ao fazê-lo, evidentemente, não só, de modo implícito, desconsiderou e afastou a interpretação que generalizadamente vinha sendo feita do artº 458º, adoptando solução jurídica diversa, como, em consequência, desperdiçou a oportunidade de, por via do conhecimento oficioso e garantido que fosse o respectivo contraditório, apreciar a responsabilidade, na referida questão, do representante da Autora, que saiu incólume, de tal juízo[10].
Foi esse o julgamento feito. Não pode, mais tarde, ser outro, a não ser por expressa determinação de tribunal superior.[11]
Ficou, assim, esgotado o poder jurisdicional, não sendo caso de qualquer rectificação de erros materiais, suprimento de nulidades, esclarecimento ou reforma da sentença. Só na sequência de recurso e em acatamento de qualquer ordem da Relação nesse sentido e com os poderes por esta conferidos, poderia retomá-lo e reapreciar a questão da litigância de má fé – questão do processo que é una, independentemente de suscitada pelas partes ou conhecida oficiosamente e da pessoa que, consoante o entendimento a cerca dos pressupostos legais, deva ser condenada como responsável.
Aconteceu que, no recurso antes pela Autora interposto neste processo e que teve expressa e exclusivamente como objecto a parte da sentença referente à dita questão da litigância de má fé, esta Relação, no já referido Acórdão de 23-10-2012 (fls. 634 a 637), enveredou exactamente pela tese, contrária à preconizada pelo tribunal a quo, segundo a qual uma sociedade não pode, a tal título, ser condenada, uma vez que a consequente responsabilidade recai sobre o representante dela que esteja de má fé na causa, e, em conclusão, decidiu julgar procedente a apelação e absolver a sociedade apelante do pedido.
E julgou assim, sem mais, não enveredando pelo caminho que, em situação similar, foi decidido percorrer pelo Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-11-2009[12] e que, de resto, sendo conhecido na Jurisprudência e já antes utilizado noutros arestos de Tribunais Superiores[13], se lhe deparava também como possível, ou seja, o de, revogando a condenação da sociedade, mas exercitando os seus poderes de conhecimento oficioso da questão, como tribunal que, no nosso sistema de recurso, se substitui ao de 1ª instância, ordenar a “baixa do processo” para notificação, ali, do representante da parte e subsequente prolação de nova decisão sobre a matéria.
Por esse julgamento e termos confinados em que o fez, o dito Acórdão de 23-10-2012, que, aliás, viria a transitar em julgado, pôs termo à instância incidental, extinguindo-a (artº 287º, a)), abdicando de, no âmbito dos poderes de substituição abertos pelo recurso e oficiosamente disponíveis na matéria, a mandar prosseguir e de, para o efeito, determinar a actuação jurisdicional da 1ª instância, renovando-a e balizando-a.
Nada, assim, salvo melhor entendimento, legitimava a posterior iniciativa oficiosa do tribunal a quo no sentido de, de surpresa, a despeito da sentença antes proferida, como que a emendar a mão, aplicar solução jurídica oposta àquela por que antes se guiara e que havia servido de fundamento à Relação para revogar o antes decidido, retomar o seu poder jurisdicional esgotado e redireccionar o incidente – já julgado, repete-se – contra outra pessoa.
De modo nenhum se pode interpretar a frase final do Acórdão – “Para que a eventual litigância de má fé possa ser objecto de punição será necessário identificar o representante legal da apelante responsável pela litigância de má fé, conceder-lhe a possibilidade de se defender e decidir em conformidade” – como determinante, ou sequer sugestiva, de tal procedimento. Diferentemente, aliás, do que aconteceu num outro Acórdão desta Relação, de 27-10-2009, em que, perante caso e decisão análogos, se escreveu, a final “…importa deixar assinalado que, na sequência do agora decidido, o tribunal recorrido não está impedido de, se assim o entender, condenar por litigância de má fé os representantes da sociedade…”.[14]
Não se nos afigura, pois, legítima e legalmente fundada, salvo o devido respeito, a invocação feita no despacho de fls. 662, segundo a qual “Na esteira do decidido pelo Douto Acórdão da Relação do Porto proferido nestes autos determino a notificação…”. Tal como não nos parece correcta a consideração, feita na decisão recorrida, de que “A possibilidade de o tribunal (1ª instância) se pronunciar sobre a litigância de má-fé não se esgota com a prolação da sentença da causa nem a mesma, neste caso, se vê limitada pelo Acórdão proferido antes se renovou o nosso poder jurisdicional face à revogação da condenação da A. e à possibilidade, expressamente mencionada/sugerida, de eventual condenação do respectivo representante legal, desde que devidamente identificado e cumprido o principio do contraditório, como foi o caso.”
A referida alusão – diversamente do que se fez no citado Acórdão da Relação de Coimbra de 10-11-2009 – não traçou ao tribunal de 1ª instância um caminho ou rumo que este devesse seguir, nem lhe conferiu credencial bastante (poder jurisdicional) para assim proceder. Ela refere ou observa a condição que devia verificar-se e de que entende depender a responsabilidade do representante mais para assinalar a sua não verificação e afastamento da da Sociedade e fundamentar a impossibilidade de qualquer condenação desta, do que para determinar o que quer que fosse.
O despacho de fls. 662 criou ex officio um novo incidente, dirigido contra o aqui apelante, quando a instância da causa já estava finda e o incidente de litigância de má fé (em cujo objecto já se compreendiam e deviam ter sido exercitados os poderes oficiosos) também, ambos pelo respectivo julgamento e trânsito em julgado.
Na interpretação das decisões judiciais observam-se as regras dos artºs 236º e sgs., do CC[15]. A sentença é um acto formal por excelência. Na respectiva decisão final devem, em termos precisos, vazar-se os respectivos efeitos, sejam os dirigidos às partes, sejam os dirigidos ao tribunal inferior. Nada se encontra no Acórdão, muito menos no seu epílogo dispositivo, capaz de minimamente sustentar a ideia de que a tramitação por que se enveredou na primeira instância foi a preconizada e determinada pela Relação. Esta referiu-se ao que podia e devia ter sido feito mas nada mandou fazer. Não emitiu, para o caso, um comando concreto, como é da essência de qualquer decisão. Limitou-se a expor o fundamento da sua decisão sobre o objecto do recurso e, em consonância com ele, o caminho que devia ter sido seguido para se chegar à punição do legal responsável.
Não pode, pois, dizer-se, ao contrário do que diz a apelada, que a 1ª instância agiu no estrito cumprimento do Acórdão, com apoio no seu espírito e texto (onde nenhuma determinação consta), nem que aquele se limitou a conhecer da legitimidade passiva da Autora no incidente (julgou-a irresponsável, isso sim, e, como tal, prejudicada a apreciação dos restantes pressupostos da responsabilidade, absolvendo-a expressamente do pedido).
Aliás, “A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo em tal multa e indemnização.”[16] Era essa a oportunidade processual soberana de que o tribunal dispunha para exercitar, em pleno, o seu poder jurisdicional quanto à questão, questão esta cujo objecto era – nos termos suscitados e facultados pela oficiosidade – apreciar a conduta processual das partes, saber se a de alguma delas integrava má fé e cominar as inerentes consequências a quem julgasse responsável. Tendo-se, nesse âmbito, entendido e decidido que era de condenar a própria Sociedade Autora – e não, apesar do disposto no artº 458º, o seu representante – entendimento e decisão não sufragados em recurso pelo tribunal superior, não dispõe a 1ª instância de segunda oportunidade, ainda que a pretexto se invoque a solução que aquela entendeu como a correcta mas de que nenhuma ilação extraiu nem mandou extrair.[17]
Como entendeu e decidiu o STJ em Acórdão de 06-05-2010[18], a nova decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional padece do vício de inexistência jurídica e como tal sempre deveria implicar a revogação da decisão recorrida, não podendo sequer, como aí se ensina, falar-se sequer de violação de caso julgado.[19]
3.
Por uma e outra razão, está manifestamente prejudicada a questão (de fundo) consistente em apurar se o apelante – tendo-se em atenção, nos precisos termos do artº 458º, a conduta dele próprio, embora como representante da A., e não apenas a desta por ele representada na acção (o que não é exactamente a mesma coisa) – não “esteve” de má fé e não deve ser condenado.
V. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação, embora com fundamento diverso, em julgar procedente a apelação e, por isso, em revogar a decisão recorrida, absolvendo o apelante D… da condenação proferida.
**
Custas pela apelada – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
Notifique.

Porto, 26-09-2013
José Fernando Cardoso Amaral
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
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[1] Quando se não referir o contrário, entender-se-á que as normas citadas pertencem ao Código velho.
[2] De 22-02-1995, relatado pelo Sr. Consº Messias Bento e acessível no site daquele Tribunal.
[3] Aqui se citando (nota 10) António Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, cit., p. 28.
[4] In “Regime Jurídico da Litigância de Má fé, Estudo de Avaliação de Impacto, Direcção Geral da Política de Justiça, Ministério da Justiça, Novem de 2010, acessível na Internet.
[5] Anselmo de Castro, DPCD, volume I, página 56, Almedina, 1981.
[6] Maia Gonçalves, CP Anotado, 10ª edição, página 81.
[7] Obra citada, páginas 59 e 60.
[8] Cfr., infra, nota 12.
[9] Trata-se de um no Acórdão da Relação de Lisboa, de 05-03-2009, relatado pelo Desemb. António Valente (prosseguimento do incidente apesar da desistência do pedido da acção).
[10] Caso acolhesse tal entendimento, logo poderia o tribunal de 1ª instância enveredar, oficiosamente, pelo caminho que, em situação congénere, mas já em via de recurso, a Relação de Coimbra perfilhou no Acórdão de 10-11-2009, a seguir referido.
[11] Artºs 156º, nº 1, do CPC anterior, ou 152º, nº1, do actual, e 4º, nº 2, in fine, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro.
[12] Relator: Desemb. Carlos Gil. Ao invocar, como fundamento da opção seguida, o objectivo de, perante a situação que se lhe deparou, semelhante à existente quando foi por esta Relação proferido o Acórdão dos autos, prevenir o risco de deixar impune uma situação de litigância de má fé por parte do representante e ao manifestar incompreensão pela hipótese de o tribunal se desinteressar pela efectivação da correspondente responsabilidade, teve-se, obviamente em vista, no Acórdão de Coimbra, além do de substituição propiciado pelo recurso, o poder oficioso do tribunal na matéria, pois de outro modo, os princípios do pedido e do dispositivo não permitiriam que, suscitada a questão por uma das partes e dirigido por ela o pedido contra a outra, se promovesse oficiosamente a condenação de um terceiro.
[13] Como se colhe do Acórdão da Relação do Porto de 27-02-2012, relatado pelo Desemb. Eusébio Almeida, o próprio Supremo Tribunal de Justiça entender ser de adoptar e seguiu tal procedimento.
[14] Relator: Desemb. Eduardo Rodrigues Pires.
[15] Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 14-01-2013, relatado pelo Desem. Luís Lameiras, segundo o qual “Devem ser aplicados à interpretação dos actos judiciais enunciativos, como é o caso das sentenças, os ditames gerais da interpretação estabelecidos no Código Civil para as declarações negociais (artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1), de maneira a que do respectivo conteúdo se consiga obter o sentido mais razoável e sensato, no quadro de uma ajustada impressão do destinatário.”
[16] Alberto dos Reis, CPC Anotado, 3ª edição, 1981, volume II, página 281.
[17] Relativamente a caso com alguma similitude – depois de decisão que rejeitara liminarmente uma oposição à execução, absolutamente omisso quanto à existência de litigância de má fé pelo opoente, proferiu-se novo e posterior despacho a apreciar tal questão e a condenar o opoente – a Relação de Coimbra, em Decisão Sumária de 21-12-2010, proferida pelo Desemb. Falcão de Magalhães, revogou a condenação precisamente com fundamento no esgotamento do poder jurisdicional do juiz, em termos próximos dos aqui seguidos.
[18] Relator: Consº Álvaro Rodrigues.
[19] Sobre o vício de inexistência jurídica de sentença, cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21-02-2013, relatado pelo Desemb. Aristides Almeida, também subscrito pelo Relator e 1º Adjunto deste.
_______________
Sumário (artº 663º, nº 7, do novo CPC):
I. O artº 544º, do novo CPC, que alterou o artº 458º do anterior, passou a admitir a possibilidade de condenação, como litigantes de má fé, das pessoas colectivas e sociedades e eliminou a responsabilização do representante que estivesse de má fé na causa.
II. Tal norma é de aplicação imediata, pelo que, apreciando-se em recurso uma tal condenação, esta não pode subsistir.
III. Tendo o tribunal de 1ª instância, na sentença, condenado a própria sociedade e tendo-a a Relação, em recurso, absolvido, com o fundamento de que a responsabilidade é do representante, não pode o tribunal a quo, por no Acórdão tal não ter sido determinado, proferir, ex officio, nova decisão baseada naquele entendimento, uma vez que estava esgotado o seu poder jurisdicional (artºs 666º, nº 1, do anterior, e 613º, nº1, do novo Código).

José Fernando Cardoso Amaral

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