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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

PRESTAÇÕES POR MORTE UNIÃO DE FACTO CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 24.10.2013


Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4413/09.4TBOER.L1-2
Relator: MAGDA GERALDES
Descritores: PRESTAÇÕES POR MORTE
UNIÃO DE FACTO
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 24-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA

Sumário: I - “A alteração que a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime.” – cfr. Ac. uniformização de jurisprudência do STJ de 15.03.2012, in Proc. 772/10.4TVPRT.P1.S1.
II - Da Lei 23/2010 de 30.08 resulta que o autor ficou dispensado da prova tanto da situação de necessidade de obter alimentos, como da impossibilidade de os obter de terceiros, considerando bastante a prova da existência de uma situação de união de facto que, na data do óbito, perdurasse há mais de dois anos – cfr. artºs 1.º, n.º 2, e 3.º, n.º 1, al. e), e 6.º, n.º 1), da Lei n.º 7/2001, de 11.05, na sua actual redacção.
III - Se a pensão de sobrevivência for reconhecida de acordo com o novo regime da Lei 23/2010 de 30.08, ela só será devida a partir do momento em que esta lei passou a produzir efeitos, o que sucedeu, de acordo com o disposto no seu artº 11º, com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa, 2ª Secção Cível

A CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, identificada nos autos, interpôs recurso de apelação da sentença que, julgando procedente a acção declarativa de condenação soba forma sumária proposta por “A”, identificado nos autos, reconheceu a este a qualidade de titular das prestações por morte de “B”, bem como o direito às mesmas, nomeadamente para efeitos de pensão de sobrevivência, por óbito daquela, condenando a CGA no respectivo pagamento.

Em sede de alegações formulou as seguintes conclusões:
(…)


Em contra-alegações o recorrido concluiu:

(…)

Questão a apreciar: o mérito da acção.

FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS

A factualidade dada como provada na sentença recorrida e aqui não impugnada é a seguinte:

“a) O A. foi casado desde 24.4.1976 até 14.9.2006 (data do divórcio), com “B”, portadora do BI N° ..., emitido em 03/12/1998, pelos SIC de Lisboa, contribuinte fiscal n° ..., beneficiária da Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE) n° ... e pensionista n": ... - docs, de fls 14, 16,17e18.
b) O Autor e “B” tiveram um filho, nascido em 18/10/1976, “C” - fls 19.
c) “B” veio a falecer em 30 de Maio de 2008, com sua última residência indicada na Rua ..., nº ..., ..., Cascais - fls 20.
d) O A. requereu junto da R. que lhe fossem atribuídas as prestações por morte em virtude da sua falecida ex-mulher e companheira ter sido abrangida por regime da Caixa Geral de Aposentações como beneficiária por mais de vinte e seis anos consecutivos e entretanto foi aposentada - doc. de fls 22 a 26.
e) Tendo-lhe sido negada a atribuição de prestações por morte em causa, por motivo de para tanto ser requisito essencial a prova judicial de que lhe é reconhecido e fixado o direito a alimentos da herança da pensionista falecida ou que tal não lhe é concedido por inexistência ou insuficiência de bens, daí o recurso ao presente pleito - fls 27.
f) Os progenitores do Autor - “D” e “E” - são ambos falecidos - fls 47 e 49.
g) “C” e “F” casaram um com o outro, em 19.7.2003 - fls 68.
h) Apesar de se terem divorciado, nunca o A. e a falecida chegaram a separar-se de facto.
i) Pois mesmo depois de ter sido intentado o divórcio, e proferida a sentença que declarou dissolvido o casamento, sempre viveram nas mesmas condições que antes, tal quando eram casados, em perfeita comunhão de vida, coabitando e cooperando entre si em total entreajuda e partilha de recursos e despesas, como marido e mulher continuassem a ser.
j) Até pela circunstância do rápido desenvolvimento da doença surgida que originou a aposentação da falecida e que motivou o A. a manter a proximidade e maior assistência à sua ex-mulher pela debilidade crescente conferida pelo cancro de que padecia desde 2006.
k) Sendo que à data da morte da falecida, o A. com ela vivia, em comunhão plena de vida e em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos consecutivos e ininterruptos.
1) Vivendo os dois do rendimento salarial que ambos auferiam e posteriormente pela pensão de reforma atribuída pela aposentação conferida à de cujus.
m) Sendo o agregado familiar inicialmente composto por ambos e pelo filho, “C” e, posteriormente, apenas pelos dois, por o filho ter casado e ter ido residir para o Algarve.
n) Onde ainda vive com o seu agregado familiar composto pela sua esposa, “F”, e a filha de ambos, “G”, e o filho de sua mulher, “H”.
o) O filho do Autor é professor do ensino público básico tal como sua esposa.
p) Sendo apenas com o salário de ambos que governam a sua família.
q) Da relação de bens da herança constam como activos duas fracções autónomas e dois veículos automóveis e como passivo quatro empréstimos ao Banco ....
r) O Autor e a falecida divorciaram-se prescindindo de alimentos um do outro.
s) Os bens relacionados como sendo da herança encontram-se registados a favor do Autor e de “C”.
t) À data da acção “C” auferia um salário de €1400,00 e “F” de cerca de €1500,00.
u) De empréstimo para aquisição de casa e respectivo seguro de vida e multiriscos pagam cerca de €800,00 mensais.
v) E as despesas correntes de consumo de luz, gás e água rondam os €150,00/mês.
w) Por outro lado, o A. tem dois irmãos: o “I” e “J” - a provar por documento.
x) O “I” é casado, tem um filho maior, vive da sua reforma e da reforma da sua mulher.
y) E a “J”, é casada, tem igualmente um filho e vive do seu salário de professora e da reforma do seu marido.
z) Referente ao ano de 2008, apresentou “I” e mulher, a declaração de rendimentos de fls 130 a 136.
aa) E “J” e marido, referente aos anos de 2007 e 2008, obteve as notas de liquidação de fls 145 e 146.
bb) Aufere o Autor a quantia de cerca de €1.800,00 mensais.
cc) O A. paga mensalmente empréstimos bancários.
dd) Com água, luz e gás o A. gasta mensalmente mais de €70,00;
ee) O A. tem ainda despesas mensais de condomínio, seguros, telefone, alimentação e vestuário.”

O DIREITO

Com base na factualidade descrita a sentença recorrida considerou estarem verificados os requisitos para que a acção, tal como foi configurada pelo autor, pudesse ser julgada procedente.
Relativamente à Lei a aplicar na situação concreta dos autos, atenta a data do óbito de “B”, considerou-se na sentença recorrida o seguinte: “(…) ainda não estava em vigor a Lei 23/2010, de 30/08. Embora, esta questão tenha divido a Jurisprudência, o certo é que com o acórdão uniformizador datado de 15/03/2012, tal questão ficou definitivamente resolvida, fixando-se a seguinte jurisprudência: "A alteração que a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei n° 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime". No caso, e atenta a prova produzida, acaba por ser irrelevante qual a lei a aplicar, pois do acervo fáctico provado temos que “B” faleceu a 30 de Maio de 2008, com a idade de 56 anos, no estado civil de divorciado e era a beneficiária da Adse n° .... O Autor viveu com a falecida desde 1976 até 2006, data em que se divorciaram, tendo desde aí até ao falecimento de “B” vivido em condições análogas às de cônjuges, como se marido e mulher fossem, em comunhão de mesa, cama e habitação, sendo considerados por todos como marido e mulher. O Autor tem de suportar diversas despesas mensais com empréstimos bancários, bem como tem de prover o seu sustento. No que concerne ao filho resultou provado que este apenas tem rendimentos suficientes para garantir as suas despesas diárias e de seus filhos. Mais se provou que os irmãos do Autor também apenas contam com a sua reformam, tendo ambos de sustentar as respectivas famílias.
Assim, dos factos provados, resulta que o Autor estaria nas condições exigidas pelo art. 2020°,1, do Código Civil, na redacção anterior à da lei 23/2010, de 30/08, para poder beneficiar da prestação de alimentos, pois para além de se ter provado que o Autor vivia com o beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, primeiro como marido e mulher e depois em condições análogas à dos cônjuges, há mais de dois anos, também se provou a sua carência económica e a impossibilidade de obter alimentos.
No entanto, caso estes dois últimos requisitos não se tivessem provado, o Autor sempre teria o direito a beneficiar de alimentos, pois que com a entrada em vigor da citada Lei 23/2010, e com a consequente alteração dos arts. 30 e 60 da Lei 7/2001, deixou de se exigir que o membro sobrevivo da união necessitasse de alimentos. Ou seja, com todas as alterações legislativas introduzidas pela Lei 23/2010, acabaram-se com dois obstáculos legais que se colocavam ao requerente das prestações por morte.
- Um de ordem substantiva, que consistia no facto de serem elementos constitutivos do direito a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter dos familiares referidos nas alíneas a) a d), do art. 2009° do Código Civil
- Outro de ordem processual, que residia na necessidade de instaurar uma acção judicial para ver reconhecido que se encontrava em condições de beneficiar dessas prestações, cfr. Ac. do STJ de 17/04/2012.
Refere ainda este acórdão:
“Relativamente ao primeiro obstáculo, a titularidade do direito às prestações por morte de um dos unidos de facto, passou a depender apenas da duração dessa convivência e,
no tocante à necessidade de acção judicial, substituiu-se o regime antecedente pela suficiência da produção de qualquer meio de prova perante a entidade responsável pelo pagamento das prestações. No novo regime é a entidade responsável pelo pagamento das prestações, que, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação, sendo certo que essa possibilidade já não se coloca nas situações em que a união de facto tiver durado pelo menos 4 anos - dois anos após o decurso do prazo estipulado no n" 2 do art. 1°.”
(…).
No caso dos autos a questão relacionada com a obrigação alimentícia tem de ser entendida e avaliada com razoabilidade, isto é, devem ser ponderadas as reais possibilidades da pessoa, pois não basta possuir rendimento, dado que esse rendimento tem de garantir a sobrevivência com dignidade da pessoa que pode prestá-los bem como aquele que deles carece (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Abril de 2004,
WWW.DGSLPT/JTRE).
Tem-se pois como real e certa, a necessidade do Autor, considerando o seu contexto envolvente. A situação vivida pelo Autor é - assim - suficientemente clara, no sentido do preenchimento de todos os requisitos exigidos pela Lei anterior à 23/2010, embora estes já não se tivesse de verificar. Nestes termos, mostrando-se preenchidos todos os requisitos e pressupostos necessários para ser deferida a pretensão do Autor, de forma a permitir-lhe o acesso às prestações sociais a que tinha direito o seu companheiro, com quem viveu em união de facto até à data da sua morte, a acção terá de proceder. (…)”.

A recorrente nas suas alegações de recurso fundamenta a sua discordância do decidido pelo tribunal a quo no facto de, em seu entender, o recorrido não carecer de alimentos, alegando que “por alimentos entende-se aquilo que é «indispensável ao sustento, habitação e vestuário» do alimentando, dito de outro modo, a prestação de alimentos mede-se pelas estritas necessidades vitais daquele, o que não inclui despesas com televisão por cabo, internet, telemóvel, telefone, viagens turísticas, automóvel e outras similares.”
Terá, assim, a sentença recorrida violado a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, o Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro e o artº 2004º do Código Civil.

Como resulta da factualidade apurada, o autor, ora recorrido, aufere a quantia de cerca de €1.800,00 mensais, paga mensalmente empréstimos bancários, gasta mensalmente mais de € 70,00 com água, luz e gás e tem ainda despesas mensais de condomínio, seguros, telefone, alimentação e vestuário.
Os montantes das despesas com empréstimos bancários, condomínio, seguros, telefone, alimentação e vestuário não se mostram apurados nos autos.
Assim, face ao montante apurado de cerca de € 1.800,00 mensais de rendimento por parte do recorrido, fica por demonstrar a sua real necessidade de alimentos, uma vez que, para além dos gastos mensais com água, luz e gás – mais de € 70,00 – apenas se apurou que tem outras despesas, desconhecendo-se o impacto das mesmas na sua economia doméstica, ficando por apurar as necessidades próprias do recorrido.
Daí não ser exacto o afirmado na decisão recorrida quando aí se conclui que se mostra verificada a carência de alimentos por parte do ora recorrido, e que seja indiferente o regime legal aplicável ao caso dos autos.
É que, se a pensão de sobrevivência for reconhecida de acordo com o novo regime da Lei n.º 23/2010, ela só será devida a partir do momento em que a Lei n.º 23/2010 passou a produzir efeitos, o que sucedeu, de acordo com o disposto no seu artº 11º, com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor visto que o direito do autor à pensão de sobrevivência, e que não lhe assistia com base na legislação anteriormente em vigor, por não estar demonstrada a necessidade de alimentos, implica despesa com repercussão orçamental.
Na verdade, o que ali apenas está em causa, e que se considerará nesta decisão, é a aplicação dos normativos com repercussão orçamental e não qualquer norma que defina o âmbito subjectivo da prestação social.
Ora, como decorre da fundamentação da sentença recorrida que parcialmente se transcreveu supra, o tribunal recorrido não refere, expressamente, qual o regime legal que decidiu ser aplicável ao caso dos autos, acabando por referir que: “(…) No entanto, caso estes dois últimos requisitos não se tivessem provado, o Autor sempre teria o direito a beneficiar de alimentos, pois que com a entrada em vigor da citada Lei 23/2010, e com a consequente alteração dos arts. 30 e 60 da Lei 7/2001, deixou de se exigir que o membro sobrevivo da união necessitasse de alimentos. Ou seja, com todas as alterações legislativas introduzidas pela Lei 23/2010, acabaram-se com dois obstáculos legais que se colocavam ao requerente das prestações por morte. (…)”.
Pensamos ser de aceitar e aplicar ao caso dos autos a doutrina constante do Ac. do STJ de 15.03.2012, in Proc. 772/10.4TVPRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt, que, uniformizando a jurisprudência, decidiu nos seguintes termos: “A alteração que a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime.”, pois não se descortinam razões para que tal jurisprudência assim uniformizada não seja aplicável ao caso dos autos.
Ora, no pressuposto de que a sentença acolheu este entendimento, a sentença recorrida não merece censura nesta parte.
Aceitando-se aplicar aqui o novo regime legal decorrente da Lei 23/2010 de 30.08, resulta que o autor ficou dispensado da prova tanto da situação de necessidade de obter alimentos, como da impossibilidade de os obter de terceiros, considerando bastante a prova da existência de uma situação de união de facto que, na data do óbito, perdurasse há mais de dois anos – cfr. artºs 1.º, n.º 2, e 3.º, n.º 1, al. e), e 6.º, n.º 1), da Lei n.º 7/2001, de 11.05, na sua actual redacção – cfr. Ac. do STJ de 15.03.2012, in Proc. 772/10.4TVPRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt e cujo sumário supra se transcreveu.
Com efeito, como se referiu, sendo aplicável ao caso dos autos o novo regime legal, não carecia o autor, ora recorrido, de provar a situação de necessidade de obter alimentos, nem a impossibilidade de os obter de terceiros, estando dispensado da prova de tais requisitos de ordem substantiva, face à nova lei nº 23/2010, e à consequente alteração dos artºs 30º e 60º da Lei 7/2001,
Bastando a prova da existência de uma situação de união de facto que, na data do óbito, perdurasse há mais de dois anos – cfr. artºs 1º, nº 2, e 3º, nº 1, al. e), e 6º, nº 1), da Lei nº 7/2001, de 11.05 de Maio, na sua actual redacção, verificando-se tal situação de união de facto à data do óbito da beneficiária, restava reconhecer ao autor o direito peticionado, independentemente da necessidade de alimentos.

Do exposto resulta a parcial procedência das alegações de recurso, com o parcial provimento do recurso, pois a decisão recorrida, no que diz respeito ao direito às prestações sociais, só produzirá efeitos a partir de 01.0.2011.

DECISÃO

Atentos os fundamentos invocados, acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do TRL, em:
a) – conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, reconhecer-se ao recorrido o direito à atribuição das prestações sociais por óbito da beneficiária identificada nos autos e com quem viveu em união de facto, com efeitos a partir de 01/01/2011.
b) – custas pela recorrente e recorrido na proporção de 5/6 por aquela e 1/6 por este.

Lisboa, 24 de Outubro de 2013

Magda Geraldes
Farinha Alves
Tibério Silva

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f9067f752d01230d80257c14005b9a41?OpenDocument

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ACIDENTE DE TRABALHO CADUCIDADE DIREITO DE ACÇÃO RETRIBUIÇÃO CONCEITO JURÍDICO - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 17.10.2013


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
670/08.1TTTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CADUCIDADE
DIREITO DE ACÇÃO
RETRIBUIÇÃO
CONCEITO JURÍDICO
ÂMBITO

Data do Acordão: 17-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE TOMAR
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO E AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 26º, Nº 3, E 32º, Nº 1 DA LEI Nº 100/97, DE 13/09 (LAT); ART.ºS 26º, Nº 3, E 99º, Nº 1 DO CPT; 249º DO CT/2003.

Sumário: I – Ocorrendo a morte do sinistrado, a caducidade a que alude o artº 32º/1 da LAT reporta-se ao exercício do direito de acção dos eventuais beneficiários do sinistrado, sendo que o evento que determina o início da contagem do prazo de caducidade é o da alta clínica ou a morte do sinistrado.
II – Como decorre dos artºs 26º, nº 3, e 99º, nº 1 do CPT, nas acções emergentes de acidentes de trabalho a instância inicia-se com o recebimento da participação.

III – O acto impeditivo da caducidade é a participação do acidente no tribunal de trabalho competente.

IV – A partir da participação inicial, o processo emergente de acidente de trabalho corre oficiosamente e jamais pode reiniciar-se o decurso do prazo de caducidade do direito de acção.

V – A retribuição do trabalho é o conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada, integrando a mesma não só a remuneração de base como ainda outras prestações regulares e periódicas.

VI – Não se consideram retribuição as gratificações nem as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador.


Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


A... apresentou, no Tribunal do Trabalho de Tomar e patrocinada pelo MºPº, petição inicial para impulsionar a fase contenciosa da presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra B..., Ldª., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a pensão anual e vitalícia de € 1.882,87, com início em 7 de Novembro de 2008, actualizada para € 1.937,47, a partir de 1/1/2009, € 1.961,69, a partir de 1/1/2010, e € 1.985,23, a partir de 1/1/2011, bem como os respectivos juros de mora.

Alegou, para tanto, e em síntese:

É o cônjuge do sinistrado C..., que faleceu em 6/11/2008, vítima de acidente de trabalho.

Na tentativa de conciliação efectuada, foi obtido acordo parcial em torno das questões inerentes ao acidente de trabalho que vitimou o malogrado C.... Tal acordo, oportunamente homologado, foi parcial, na medida em que a entidade patronal, a Ré, não aceitou o montante proposto em tal acordo, como sendo aquele correspondente à remuneração anual auferida pelo falecido, já que apenas reconheceu o montante transferido para a Ré seguradora- D....

Entendeu que os valores correspondentes a ajudas de custo, auferidos pelo falecido, se destinavam ao pagamento das despesas efectuadas com a sua deslocação no estrangeiro, não podendo jamais ser considerados parte da sua remuneração mensal base, posto que apenas eram auferidas quando o falecido se encontrava deslocado.

Contestou a Ré, excepcionando a caducidade do direito à pensão.

O acidente encontra-se descaracterizado.

Sustentou o entendimento, já expresso em sede de tentativa de conciliação, de que as ajudas de custo auferidas pelo sinistrado não podem integrar o conceito de retribuição .

Terminou formulado pedido de intervenção provocada da E... Seguros, S.A., responsável civil pelo acidente de viação, a que na sua tese se reconduz o versado nos autos.

Respondeu a Autora ao pedido de intervenção provocada da E... Seguros, S.A., concluindo não poder o mesmo ser deferido pela não verificação do legal condicionalismo para tanto.

Veio a ser admitido a requerida intervenção provocada da E... Seguros, S.A., tendo esta apresentado articulado próprio, onde discrimina as quantias por si já pagas à Autora com fundamento no acidente de viação em que o falecido esteve envolvido. No mais, adere à matéria atinente à caducidade do direito pretendido fazer valer pela Autora, matéria essa alegada pela Ré.

Foi proferido despacho saneador no qual se apreciou e decidiu, no sentido da sua improcedência, a matéria de excepção aduzida pela Ré,

Desta decisão veio a Ré interpor recurso de agravo, formulando as seguintes conclusões.

[…]

A Autora contra-alegou.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, cuja parte dispositiva transcrevemos:

“Julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência condeno a entidade patronal B..., Ld.ª a pagar à Autora A... a sua quota parte na pensão anual e vitalícia a esta devida desde 7 de Novembro de 2008, ou seja, € 1.882,27 a pagar adiantada e mensalmente até ao 3.º dia útil de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, devendo os subsídios de ferias e de natal naquele mesmo valor de 1/14 da pensão anual ser pagos nos meses de Maio e de Novembro, conforme ao disposto no art. 20.º, n.º1, al. a) da Lei 100/97, de 13.09 e arts. 49.º e 51.º do DL 143/99 de 30.04. acrescida tal quantia de juros de mora vencidos e vincendos sobre as prestações em atraso, nos termos do disposto no art. 135.º do Cód. Proc. Trab.

Julgo a presente acção improcedente por não provada no que à interveniente E... – Companhia de Seguros, S.A concerne, absolvendo-a do pedido.

Suportará a entidade responsável o pagamento das custas da acção.

x

Novamente inconformada, veio a Ré interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

[…]

A Autora contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso

Foram colhidos os vistos legais.

x

Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões, temos, como questões em discussão:

- no agravo:

- se se verifica a caducidade do direito de acção;

- na apelação:

- se no cálculo do montante da pensão se deve incluir o pagamento da quantia de € 30,00 diários, efectuada pela Ré a título de “ajudas de custo”.

x

A 1ª instância deu como provados os seguintes factos, não objecto de impugnação, e que este Tribunal de recurso aqui acolhe:

[…]

x

- o direito:

- o agravo:

Entende a recorrente, contrariamente ao decidido na sentença, que se verificou a caducidade do direito de acção, por se ter passado mais de um ano entre a dada do acidente que vitimou mortalmente o sinistrado (em 6/11/2008) e o início da fase contenciosa, com a apresentação da petição inicial (em 2/1/2012).

Não lhe assiste razão.

Ao acidente é aplicável a Lei nº 100/97, de 13/9 (LAT), que dispõe no seu artº 32º, nº 1:

"O direito de acção respeitante às prestações fixadas nesta lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta."

Ocorrendo a morte do sinistrado, a caducidade a que alude a norma em questão reporta-se ao exercício do direito de acção dos eventuais beneficiários do sinistrado, sendo que o evento que determina o início da contagem do prazo de caducidade é o da alta clínica ou a morte do sinistrado.

No caso dos autos, o sinistrado faleceu no dia 6/11/2008.

A ocorrência do sinistro foi oficiosamente comunicada ao Tribunal logo no dia seguinte - 7/11/2008, facto este que deu origem à instauração da presente acção emergente de acidente de trabalho.

Tal como decorre dos art°s 26°, nº 3, e 99°, nº 1 do CPT, nas acções emergentes de acidentes de trabalho a instância inicia-se com o recebimento da participação. O acto impeditivo da caducidade é assim a participação do acidente no tribunal de trabalho competente - cfr. , entre outros, os Ac. do STJ de 6/2/2008 e 18/5/2011, in www.dgsi.pt, citando-se no último abundante doutrina e jurisprudência sobre a matéria.

A partir da participação inicial, o processo emergente de acidente de trabalho corre oficiosamente e jamais pode reiniciar-se o decurso do prazo de caducidade do direito de acção. Na situação em apreço, a participação da ocorrência do acidente ao Tribunal do Trabalho ocorreu no dia imediato ao acidente, ou seja, muito antes de esgotado o prazo de um ano a que alude o referido artº 32, nº1, da LAT.

E não colhe o argumento da inconstitucionalidade invocado pela apelante, não só porque a mesma não especifica qual a norma que estaria abrangida pela mesma, como porque se não vislumbra que a circunstância de só em 2/1/2012 se ter dado início à fase contenciosa tenha, por si só, cerceado o direito de defesa da Ré- apelante, sendo que esta também não invoca em que termos concretos se verificou essa pretensa ofensa.

Termos em que improcedem as conclusões deste recurso.

- a apelação:

Reage a apelante contra o facto de, para o cálculo da pensão devida à beneficiária se ter tido em conta, como retribuição, o montante auferido pelo sinistrado a título de ajudas de custo.

Vejamos.

Dispõe o artº 26º , nº 3, da LAT:

“3 - Entende-se por retribuição mensal tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”.

Desta redacção legal é legítimo extrair o entendimento de que se adoptou um conceito de retribuição mais abrangente do que o previsto no artigo 249º do CT de 2003 (aqui aplicável), abarcando, para além do salário normalmente auferido pelo trabalhador, tanto as prestações pecuniárias de base, como as acessórias – designadamente as que correspondem ao trabalho suplementar habitual, subsídio de refeição ou de transporte ou gratificações usuais, mesmo que não pagas mensalmente – e pagamentos em espécie (habitação, automóvel, alimentação, etc.). Têm é de corresponder a uma vantagem económica do trabalhador. (Vide Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 2ª ed. p. 822 e ss.)- cfr, neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 30/1/2006, in www.dgsi.pt.

No regime jurídico estabelecido no art. 26.º da LAT o legislador conferiu especial atenção ao elemento periodicidade ou regularidade no pagamento. Esta característica da regularidade ou periodicidade que assinala a medida das expectativas de ganho do trabalhador não se verifica quando as prestações têm uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho.

Não deixa esse artº 26º de remeter, necessariamente e neste particular aspecto, para o critério geral constante do artº 249º do CT de 2003:

“1- Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.

2 - Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.

3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador”.
A retribuição do trabalho é "o conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida)" - cfr. Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, Vol. 1º, 10ª ed., pág. 395), integrando a mesma não só a remuneração de base como ainda outras prestações regulares e periódicas, feitas directa ou indirectamente, incluindo as remunerações por trabalho extraordinário, quando as mesmas, sendo de carácter regular e periódico, criem no trabalhador a convicção de que elas constituem um complemento do seu salário- neste sentido, Monteiro Fernandes, ob. cit., pág. 410; Bernardo Lobo Xavier in Curso de Direito do Trabalho, 2ª Ed., pag. 382).

Este último autor refere, ainda, que “a lei, com a expressão «regular», se referiu a uma remuneração não arbitrária mas que segue uma regra permanente, sendo, portanto, constante. Por outro lado, exigindo um carácter «periódico», a lei considera que ela deve ser relativa a períodos certos no tempo (ou aproximadamente certos), de modo a integrar-se na própria ideia de periodicidade e de repetência ínsita no contrato de trabalho e nas necessidades recíprocas dos dois contraentes que este contrato se destina a servir. (…) Excluem-se do conceito de retribuição certas atribuições anormais e problemáticas, que por isso mesmo não devem ser computadas num rendimento com que se pode seguramente contar. Mas essas exclusões são compensadas pela abrangência de prestações, que muito embora não sejam à partida retribuição, nela acabam por ser integradas dado o seu carácter regular e permanente, que faz com que o trabalhador as preveja como normais no seu orçamento, isto é, conte com elas”.

Ainda a propósito daquele elemento integrador do conceito de retribuição, refere, por seu lado, Motta Veiga (Lições de Direito do Trabalho, 6ª Edição, pag. 470) que o “carácter regular e periódico das prestações salariais decorre da própria natureza do contrato de trabalho, como contrato de execução duradoura ou continuada. Assim, situam-se fora do conceito de retribuição “stricto sensu” os pagamentos eventuais, a título de liberalidade ou recompensa, e os extraordinários ou meramente compensatórios de despesas realizadas pelo trabalhador», acrescenta, todavia noutro passo, este autor, que «as remunerações complementares somente podem fazer parte da retribuição, “stricto sensu”, ficando sujeitas à respectiva disciplina legal, se, nos termos do contrato de trabalho ou dos usos, assumirem carácter regular ou habitual, e devem portanto considerar-se como elemento integrante da remuneração do trabalhador, sobretudo se forem pagos por forma a criar no espírito deste a convicção de que constituem complemento normal do salário”.
E o nº 3 do artº 249º do CT de 2003 estabelece uma presunção legal de que constitui retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador. Do que resulta, tendo em conta os princípios de repartição do ónus de prova, e, especificamente, o disposto no nº 1 do artº 344º do Código Civil, que sobre o empregador impende o ónus de provar que certa prestação que o mesmo fez ao seu trabalhador não tem a natureza de retribuição- cfr. Ac. do STJ de 4/7/2002, disponível em www.dgsi.pt.

São, assim, características da retribuição a regularidade, a periodicidade e o ser devida como contrapartida do trabalho prestado.

Para que uma qualquer prestação paga pela entidade empregadora ao trabalhador possa ser qualificada como retribuição, e assim dever integrar a mesma, carece, então, de revestir certas e determinadas características.

Desde logo, tem de tratar-se de uma prestação regular e periódica. A retribuição está conexionada com a satisfação de necessidades do trabalhador, o qual cria uma legítima expectativa no sentido de poder contar com a retribuição para garantir o seu sustento e outras necessidades, suas e do seu agregado familiar. Estão, assim, excluídas do conceito de retribuição todas as prestações de carácter esporádico.

Aliás, com a expressão regular a lei refere-se a uma prestação constante, não arbitrária, permanente. É, assim, de excluir do conceito de retribuição toda e qualquer prestação esporádica ou atípica, anormal ou problemática que, por isso mesmo, não pode ser computada no rendimento com que, regularmente, se pode contar.

Não se consideram retribuição as gratificações nem as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte em que excedam os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador – arts. 260.º e 261.º do Código do Trabalho

Deste modo, se a importância recebida pelo trabalhador respeitar, v.g., a uma compensação ou reembolso pelas despesas a que foi obrigado por força das circunstâncias em que prestou a sua actividade (deslocações ao serviço do empregador, ‘inter alia’), não existirá qualquer correspectividade com a sua prestação funcional, ficando tal valor fora do cômputo da retribuição.

Além disso, valem também como retribuição, neste âmbito da LAT, todas as prestações que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios - cfr. Ac. desta Relação de Coimbra de 10/9/2009, in www.dgsi.pt.

E, indo de encontro a esta previsão legal, o S.T.J., por acórdão de 2 de Dezembro de 2004, in CJ/STJ, Tomo III, pg. 286, decidiu que as ‘ajudas de custo’ não podem ser consideradas no cálculo de uma pensão emergente de acidente de trabalho se não assumirem a natureza de prestações de carácter retributivo.

Será o caso na situação que nos ocupa?

Está provado que:

- a Ré pagava ao sinistrado um quantia a título de “ajudas de custo”, quando o sinistrado se encontrava fora de território nacional, no montante de €30,00 diários;

- o trabalho do sinistrado era predominantemente prestado em França, fazendo-o ainda em qualquer outro local de trabalho da Ré, em Portugal ou no estrangeiro;

- permanecia no estrangeiro por períodos que iam até três a quatro semanas seguidas, sendo que a Ré pagou ao sinistrado as “ajudas de custo” diárias considerando os fins-de-semana que se intercalaram, mesmo quando aquele não trabalhava nesses dia.

Perante tal factualidade, será possível considerar que essa quantia paga a título de ajudas de custo se destinava a compensar o sinistrado por custos aleatórios?

A resposta parece-nos que terá de ser negativa.

Estamos perante uma prestação de montante diário fixo, que era paga sempre e quando o sinistrado se encontrasse no estrangeiro, mesmo nos fins de semana, quando não trabalhava.

Aleatório é aquilo que está sujeito a contingências, dependente do acaso ou de circunstâncias imprevisíveis; …que é casual ou fortuito - cfr. citado Ac. desta Relação.

Embora formalmente apelidada de “ajuda de custo”, tal não significa que essa simples denominação confira, sem mais, tal característica a esse pagamento de 30 euros diários. Verifica-se a natureza periódica e regular do seu pagamento, e nada ficou provado acerca de se, com esse pagamento, a Ré procurava compensar as despesas concretas que o sinistrado suportava na sua estadia no estrangeiro (onde trabalhava predominantemente, mais frequentemente em França). A factualidade à nossa disposição não permite concluir que o seu pagamento se destinava a compensar o trabalhador/sinistrado por custos aleatórios, em sentido próprio. E o que é facto é que ele sabia que fossem quais fossem as suas despesas com alimentação ou alojamento – que poderiam ser de montante variável ou até inexistentes, receberia sempre aquele montante fixo diário, também não tendo ficado provado que tivesse que prestar contas desses seus gastos à entidade empregadora. E recebia mesmo nos dias em que não trabalhava, desde que se encontrasse no estrangeiro.

Assim sendo, não se pode considerar afastada a presunção de que tal pagamento constituía retribuição do sinistrado, constituindo ónus da Ré- apelante elidir a mesma, o que não fez. Teria de ser esta a alegar e provar que a quantia paga a título de ajudas de custo se destinava a compensar o trabalhador /sinistrado pelas despesas realizadas pelo trabalhador por ocasião da prestação do trabalho no estrangeiro ou por causa dele - cfr. Ac. do STJ de 6/2/2008, in www.dgsi.pt.

E, face a esse non liquet probatório, devendo considerar-se como uma componente de cariz retributivo, bem andou a sentença ao proceder ao cálculo da pensão da beneficiária tendo em conta esse montante auferido pelo sinistrado a título de “ajudas de custo”

Invoca a apelante que as declarações fiscais dos contribuintes gozam da presunção de veracidade – artº 75.º da Lei Geral Tributária, pelo que, tendo o sinistrado feito declaração fiscal, junta aos autos, em que reconheceu que a sua retribuição era de € 600,00 mensais, não considerando as ajudas de custo como retribuição, lhe cabia fazer prova do contrário, nestes autos.

Para além do que já se disse e sendo certo que não se encontra junta aos autos a declaração Mod. 3 de IRS do trabalhador, a presunção do artº 75º da Lei Geral Tributária invocada visa, como se refere nas contra-alegações, proteger o contribuinte relativamente ao fisco, fazendo recair sobre este (e não sobre o contribuinte) o ónus de provar que foi auferido maior rendimento sujeito a tributação, mas em sede de procedimento tributário.

Também não há que fazer apelo, como pretende a apelante, ao regime do DL 192/95, de 28/7, uma vez que o mesmo é unicamente aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, e por virtude do exercício das mesmas, o que não é manifestamente o caso.

Com a consequente improcedência do recurso.

x

Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, confirmando-se o despacho e sentença recorridos.

Custas pela Ré- apelante.


Coimbra, 17/10/2013


(Ramalho Pinto - Relator)

(Azevedo Mendes)

(Joaquim José Felizardo Paiva)

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/166c3bee7675961980257c13003cae79?OpenDocument

terça-feira, 29 de outubro de 2013

INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA RESIDÊNCIA - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 16.10.2013


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/09.8PAVNO-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
RESIDÊNCIA
ESTRANGEIRO

Data do Acordão: 16-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 318º CPP, 145º E 152.º, N.º 7 DA LEI Nº 144/99 DE 31 DE AGOSTO DE 1999

Sumário: 1.- Aceitando o Tribunal a quo, que se verificam os requisitos normativos que excecionalmente permitem a inquirição de testemunha fora do local onde territorialmente vai decorrer o julgamento, impunha-se afastar a regra geral e determinar a inquirição da testemunha nesse local;
2.- Existe violação das regras da interpretação da lei quando, verificando-se a situação excecional prevista na norma para a tomada de declarações fora do Tribunal da Comarca do julgamento, se indefere o requerimento invocando-se para o efeito a existência de uma norma que, como regra geral, impõe que as declarações sejam prestadas presencialmente na audiência de julgamento a realizar no Tribunal da Comarca onde este vai decorrer.


Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Por despacho de 20 de Dezembro de 2012, proferido pela Ex.ma Juíza do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, foi indeferido o requerimento da demandante A..., em que solicitava a inquirição, na Suíça, da testemunha B... , com recurso a meios de telecomunicação em tempo real ou, na indisponibilidade destes, mediante carta rogatória a expedir para as autoridades judiciárias helvéticas.

Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso a demandante A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1.º Ao indeferir o requerimento da demandante, ora recorrente, apresentado, via fax, em 03-12-2012 (carimbo de entrada de 05-12-2012), na parte relativa ao pedido de inquirição da testemunha B..., na Suíça, o Tribunal a quo violou os artigos 318.º, n.º1 e n.ºs 5 a 7.º, 124.º, n.º2 125.º, 340.º, n.º1 e 323.º-a) e b), todos do C.P.P.
2.º Violou, igualmente, por omissão de aplicação, o regime instituído pela Lei n.º 144/99, de 31-08, bem como os princípios da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo e Protocolos Adicionais.
3.º Essa violação decorreu da circunstância de ter interpretado tais normativos, em conjugação com o artigo 317.º, n.º1 do C.P.P., no sentido estrito de que – apesar de a recorrente ter fundamentado o aludido requerimento em realidade perfeitamente enquadrável no regime do citado artigo 318.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e suficientemente justificadora dos mecanismos processuais excecionais consagrados nos n.ºs 5 a 7 e nos diplomas referenciados na anterior conclusão 2.º - não seria possível inquirir a testemunha na Suíça, impondo a sua presença no Tribunal Judicial de Tomar.
4.º Deveria tê-los interpretado em sentido contrário. Precisamente no sentido de que, ante a verificação de todos os requisitos necessários à aplicação do regime consagrado no artigo 318.º, a regra da presencialidade poderá/deverá ser excecionada.
5.º Nesta conformidade, deverá o presente recurso obter provimento, determinando-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por um outro que defira o requerimento da recorrente e ordene a inquirição da testemunha B... na Suíça, nos termos do artigo 318.º, n.ºs 5 a 7 do C.P.P. em conjugação com o regime instituído pela Lei n.º 144/99, de 31-08, e com os princípios orientadores da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo e Protocolos Adicionais.

O Ministério Público na Comarca de Tomar respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.

A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação apôs o seu visto.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P..

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
« (…)
Quanto à testemunha B..., não obstante as razões aí aduzidas pelo Distinto Advogado da demandante, a verdade é que a regra é serem ouvidas presencialmente as testemunhas conforme o dispõe 317º/1 do CPP, no decurso da audiência de julgamento.
Pelo que o requerido vai indeferido, devendo a testemunha encontrar-se presente a fim de ser ouvida.
Notifique.».
*
O requerimento sobre o qual recaiu o despacho tem, por sua vez, na parte com interesse para a decisão da causa, o seguinte teor:
« A..., demandante nos autos de processo comum singular supra referenciados, tendo sido notificada da devolução das convocatórias dirigidas ás testemunhas que subsequentemente se identificam, vem expor e requerer o seguinte:
A) – Quanto à testemunha B...:
1 – Encontra-se a residir, a título permanente na Suíça, para onde se viu obrigada a emigrar, tendo fixado nesse país a sua vida familiar e profissional, não sendo previsível o seu regresso a Portugal nos tempos mais próximos.
2 – Embora a sua presença na audiência não seja essencial à descoberta da verdade, o seu depoimento já o é, em virtude de ter conhecimento directo e pessoal dos factos alegados nos arts. 8.º a 87.º e 95.º a 99.º do PIC.
3 – Como é óbvio, a sua eventual deslocação a Portugal exclusivamente com o propósito de ser inquirida, causar-lhe-ia graves prejuízos económicos, dificuldades e inconvenientes, quer sob o ponto de vista pessoal, profissional, decorrentes, fundamentalmente, não apenas das despesas implicadas na viagem, mas, igualmente, da ausência ao trabalho e inerente risco de despedimento, face à precariedade da sua condição de emigrante.
4 - Com fundamento no exposto, requer-se:
4.1 - Que, ao abrigo dos acordos de cooperação internacional e europeia em matéria penal, em conjugação com o disposto no artigo 318.º, n.ºs l e 5, com as necessárias adaptações, seja a mencionada testemunha inquirida, à matéria indicada no ponto 2, com recurso a meios de telecomunicação em tempo real, ou, na indisponibilidade destes, mediante carta rogatória a expedir para as autoridades judiciárias helvéticas.
4.2 – Que, para efeitos de concretização do requerido no ponto anterior, seja atendida a morada da testemunha na Suíça que ora se indica: Av. De la Granada n.º10, CH-1207 Geneve Suíça.».

*
*

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação da recorrente A... a questão a decidir é a seguinte:
- se o despacho recorrido, ao indeferir o requerimento para inquirição da testemunha na Suíça, com recurso a meios de telecomunicação em tempo real, ou, na indisponibilidade destes, mediante carta rogatória, violou os artigos 318.º, n.º1 e 5 a 7, 124.º, n.º2 , 125.º, 340.º, n.º1 e 323.º- a) e b), todos do C.P.P. e, por omissão de aplicação, o regime instituído pela Lei n.º 144/99, de 31-08, bem como os princípios da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo e Protocolos Adicionais, pelo que deve ser revogado e substituído por outro despacho que defira o requerimento da recorrente.
-
Passemos ao conhecimento da questão.
Resulta do art.317.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que designado dia para audiência de julgamento, as testemunhas, os peritos e os consultores técnicos indicados por quem se não tiver comprometido a apresentá-los na audiência, são notificados para comparência.
O art.318.º do Código de Processo Penal, estabelece, por sua vez, o seguinte:
« 1 - Excepcionalmente, a tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos pode, oficiosamente ou a requerimento, não ser prestada presencialmente, podendo ser solicitada pelo presidente ao juiz de outra comarca, por meio adequado de comunicação nos termos do artigo 111.º; se:
a) Aquelas pessoas residirem fora da comarca;
b) Não houver razões para crer que a sua presença na audiência é essencial à descoberta da verdade; e
c) Forem previsíveis graves dificuldades ou inconvenientes, funcionais ou pessoais, na sua deslocação.
2 - A solicitação é de imediato comunicada ao Ministério Público, bem como aos representantes do arguido, do assistente e das partes civis.
3 - Quem tiver requerido a tomada de declarações informa, no mesmo acto, quais os factos ou as circunstâncias sobre que aquelas devem versar.
4 - A tomada de declarações processa-se com observância das formalidades estabelecidas para a audiência.
5 - A tomada de declarações realiza-se em simultâneo com a audiência de julgamento, com recurso a meios de telecomunicação em tempo real.
6 - No caso previsto no número anterior, observam-se as disposições aplicáveis à tomada de declarações em audiência de julgamento. Compete, porém, ao juiz da comarca a quem a diligência foi solicitada praticar os actos referidos nos artigos 323.º, alíneas b, primeira parte,) d) e e), e 348.º, n.º3.
7 - Fora dos casos previstos no n.º 5, o conteúdo das declarações é reduzido a auto, sendo aquelas reproduzidas integralmente ou por súmula, conforme o juiz determinar, tendo em atenção os meios disponíveis de registo e transcrição, nos termos do artigo 101.º.».
Da conjugação destas disposições legais resulta que, como regra, designado dia para a audiência de julgamento, as testemunhas devem comparecer na audiência de julgamento, para aí ser inquiridas.
È na audiência de julgamento que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.
Só os princípios da oralidade e imediação «… permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.».[4]
Sendo esta a regra, o art.318.º do Código de Processo Penal, admite excepções à mesma.
Assim, o Tribunal pode prescindir da presença do assistente, das partes civis, das testemunhas, dos peritos e dos consultores técnicos, na audiência onde decorre o julgamento, se se verificarem três requisitos, cumulativos:
- Aquelas pessoas residirem fora da comarca;
- Não houver razões para crer que a sua presença na audiência é essencial à descoberta da verdade; e
- Forem previsíveis graves dificuldades ou inconvenientes, funcionais ou pessoais, na sua deslocação.
Caso se verifiquem este requisitos, o Tribunal onde se procede ao julgamento e onde não residem aquelas pessoas, solicita ao “juiz de comarca” a tomada de declarações, que se realizará, preferencialmente, em simultâneo com a audiência de julgamento, com recurso a meios de telecomunicação em tempo real, competindo a este praticar os actos referidos nos artigos 323.º, alíneas b, primeira parte, d) e e), e 348.º, n.º3. Só não sendo possível a tomada de declarações nestes termos é que o conteúdo das declarações é reduzido a auto.
Se a pessoa cujas declarações se pretende ouvir reside não só fora da comarca, mas ainda no estrangeiro, cremos que não basta atender apenas ao disposto no art.318.º, n.º1 do Código de Processo Penal, designadamente aos requisitos aí exigidos, para se deferir a tomada de declarações, exigindo-se ainda o respeito das normas vigentes no regime português em matéria de cooperação judiciária em matéria penal.
Decorre do art.8.º da Constituição da República Portuguesa que as normas constantes de convenções internacionais que vinculem o Estado Português, assim como as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte, têm recepção plena no direito português.
O princípio que enforma o regime da cooperação judiciária internacional no Direito Português é o da primazia das fontes normativas convencionais.
Os pedidos de auxílio judiciário em matéria penal, encontram-se previstos e regulamentados em normas convencionais e, subsidiariamente, na lei interna.
Em primeira linha, como norma de direito internacional que vincula o Estado Português, deve considerar-se a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo, nomeadamente nos seus arts. 3.º a 6.º e 14.º a 20.º, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 39/94 de 17 de Março de 1994 e ratificada por Decreto do Presidente da República, de 14 de Julho, publicada no Diário da República nº 161, I Série -A de 14 de Julho de 1994 e, ainda, o Protocolo adicional á mesma Convenção, aprovado para ratificação pela Resolução n.º 49/94 de 12.8. e ratificado por Decreto do Presidente da República, e de 12.8.1994, publicado no Diário da República n.º 186, I Série- A, de 12 de Agosto de 1994.
Em segunda linha, deve atender-se ao regime instituído pela Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto de 1999, que regulamenta a Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal.
Nos termos do seu art.3º, resulta que as formas de cooperação aí previstas regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições desse diploma, sendo subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.
Na Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto de 1999, importa aqui realçar a parte que versa sobre as questões do auxílio judiciário mútuo, constantes dos seus artigos 20.º a 30.º e 145.º a 152.º.
E, por fim, em tudo o que não está ali regulado, importa atender ao Livro V, do Código de Processo Penal, artigos 229.º a 240.º, em especial ao aqui estabelecido sobre a prevalência dos acordos e convenções internacionais e lei especial sobre as normas do Código de Processo Penal ( art.229.º) e à emissão de cartas rogatórias ( art.230.º).
Em matéria de auxílio judiciário em matéria penal, importa reter o art.145.º, da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto de 1999, que dispõe, designadamente, o seguinte:
« 1 - O auxílio compreende a comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos admitidos pelo direito português, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo, bem como os actos necessários à apreensão ou à recuperação de instrumentos, objectos ou produtos da infracção.
2 - O auxílio compreende, nomeadamente:
(…)
d) A notificação e audição de suspeitos, arguidos, testemunhas ou peritos;
(…)
3 - Quando as circunstâncias do caso o aconselharem, mediante acordo entre Portugal e o Estado estrangeiro ou entidade judiciária internacional, a audição prevista na alínea d) do n.º 2 pode efectuar-se com recurso a meios de telecomunicação em tempo real, nos termos da legislação processual penal portuguesa, sem prejuízo do disposto no n.º 10. »
O princípio geral de todas as modalidades de auxílio judiciário é, deste modo, o princípio da necessidade.
Especificamente, para a carta rogatória, o art.152.º, n.º 7 da Lei nº 144/99, estabelece como requisito, para a sua emissão, que ela seja necessária para a prova de algum facto essencial para a acusação e para a defesa.
Idêntica mesma redacção à deste art.152.º, n.º 7, da Lei nº 144/99, consta do art. 230.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Cremos que não viola o espírito da lei fazer-se uma interpretação extensiva dos artigos 152.º, n.º 7, da Lei nº 144/99, e 230.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, de modo a caber na letra da lei também a emissão de carta rogatória quando necessária para a prova de algum facto essencial para o pedido de indemnização civil.
A letra da lei é mais restrita que o seu espírito: o legislador minus dixit quam voluit.
Retomando o caso concreto, verificamos que a demandante A..., no seu requerimento para inquirição na Suíça da testemunha B..., alegou factos que considerou adequados ao preenchimento dos três requisitos a que alude o art.318.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a que acrescentou ainda a essencialidade deste depoimento para a descoberta da verdade, uma vez que a testemunha tem conhecimento directo e pessoal dos factos alegados nos arts. 8.º a 87.º e 95.º a 99.º do Pedido de Indemnização Civil.
O despacho recorrido ao decidir que « Apesar de a recorrente ter fundamentado o aludido requerimento em realidade perfeitamente enquadrável no regime do citado artigo 318.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e suficientemente justificadora dos mecanismos processuais excecionais consagrados nos n.ºs 5 a 7 e nos diplomas referenciados na anterior conclusão 2.º », deixou claro, por um lado, que a realidade factual alegada no requerimento pela demandante é perfeitamente enquadrável no regime do citado artigo 318.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e, por outro, que essa realidade é suficientemente justificadora dos mecanismos processuais excecionais consagrados nos n.ºs 5 a 7 e nos diplomas referenciados na anterior conclusão 2.º , ou seja, nos acordos de cooperação internacional e europeia em matéria penal, pelo que a solução que se impunha era considerar afastada a regra da presencialidade na audiência de julgamento.
As normas interpretam-se umas pelas outras e é das regras da interpretação da lei, que as normas excepcionais afastam as normas gerais.
Aceitando o Tribunal a quo , mesmo sem exigir a produção de qualquer prova, que se verificam os requisitos normativos que excepcionalmente permitem a inquirição de testemunha fora do local onde territorialmente vai decorrer o julgamento e que até se justificam os mecanismos indicados pela demandante, impunha-se afastar a regra geral e determinar a inquirição da testemunha na Suíça.
Existe violação das regras da interpretação da lei quando, verificando-se a situação excepcional prevista na norma para a tomada de declarações fora do Tribunal da Comarca do julgamento, se indefere o requerimento porque existe uma norma que, como regra geral, impõe que as declarações sejam prestadas presencialmente na audiência de julgamento a realizar no Tribunal da Comarca onde este vai decorrer.
A testemunha B... reside na Suíça; dos elementos juntos aos autos de recurso não se mostra haver razões para crer da essencialidade do seu depoimento ser prestado na audiência de julgamento; residindo a testemunhas a largas centenas de quilómetros de Portugal, onde se encontra a trabalhar, são previsíveis graves dificuldades e inconvenientes para a testemunha vir da Suíça a Portugal, quer a nível laboral, pessoal e mesmo de despesas, ainda que o Tribunal o possa de algum modo o vir compensar. Por outro lado, em face da alegação da requerente, temos como verificada a necessidade e essencialidade deste depoimento para a descoberta da verdade.
Perante o exposto, mais não resta que conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que defira o requerido.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pela demandante A... e, revogando o despacho recorrido determina-se que seja substituído por outro que ordene a inquirição, na Suíça, da testemunha B..., com recurso a meios de telecomunicação em tempo real ou, na indisponibilidade destes, mediante carta rogatória a expedir para as autoridades judiciárias helvéticas.
Sem custas.

*
Orlando Gonçalves (Relator)
Alice Santos

[1] Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2] Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Obra citada, páginas 233 a 234

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/cb8c372e1192628d80257c08003913f6?OpenDocument

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS MEIOS DE PROVA FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO AUTORIA- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães - 07.10.2013


Acórdãos TRG
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
293/06.0GBVLN.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
MEIOS DE PROVA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
AUTORIA

Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO

Sumário: I – Feita a comunicação de factos que apenas importam uma «alteração não substancial» não se reinicia todo o percurso da produção de prova, fazendo-se tábua rasa quer dos prazos que já decorreram para a defesa, quer da prova já produzida. No essencial, a acusação continua a ser a mesma, porque a identidade do processo mantem-se inalterada.
II – Por isso, deve ser indeferida a produção de prova que nada tem a ver com os factos que foram comunicados, mas apenas com factos que já constavam da acusação.
III – O crime do art. 256 nº 1 al. a) do Cod. Penal (fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso) não é um crime de mão própria. A lei não exige, para que se verifique a previsão desta alínea, que o agente tenha falsificado o documento com o seu próprio punho. Valem aqui todas as modalidades de autoria, imediata ou mediata, previstas no art. 26 do Cod. Penal.


Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No Tribunal Judicial de Valença, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 293/06.0GBVLN), foi proferida sentença que:
- Condenou o arguido MANUEL L... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa;
-Condenou o arguido MANUEL L... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alínea e) e 3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa;
-Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condenou o arguido MANUEL L... na pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), o que perfaz o montante global de 2.000,00 € (dois mil euros);
-Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante MARIA C... e condenando o demandado MANUEL L... a pagar àquela a quantia de 6.600,00 € (seis mil e seiscentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da notificação do demandado para deduzir o respetivo pedido cível até efetivo e integral pagamento.
*
*

O arguido e demandado cível MANUEL L... interpôs interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- alega que o âmbito da queixa feita pela ofendida não abrange os factos que foram objeto da acusação;
- impugna a decisão sobre a matéria de facto;
- argui a nulidade da sentença por condenar por factos diversos dos referidos na acusação – art. 379 nº 1 al. b) do CPP;
- a violação do princípio do contraditório;
- a nulidade da sentença por falta de exame crítico dos meios de prova;
- a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. 410 nº 2 al. a) do CPP;
- a qualificação jurídico-criminal dos factos;
- a existência de mero concurso aparente entre os crimes de falsificação de documento e de burla;
- a pena aplicada;
- a existência de omissão de pronúncia quanto a uma ilegitimidade ativa da demandante cível, invocada na contestação.
*
*
A fls. 528 o arguido interpôs recurso intercalar do despacho proferido a fls. 464 que indeferiu o seu requerimento para que fossem efetuadas diversas diligências de prova, na sequência de ter sido notificado de uma alteração não substancial de factos
A questão suscitada neste recurso é a de saber se tais diligências devem ser admitidas.
*
Respondendo a ambos os recursos, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência dos mesmos.
Nesta instância, a sr. procuradora-geral adjunto emitiu parecer no sentido do recurso da sentença ser rejeitado por extemporâneo
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
*

I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido, em data indeterminada mas anterior a 22 de Junho de 2006, apoderou-se de pelo menos um cheque da CCAM, pertencente a Ana B..., que apresentou queixa por tais factos na PSP de Viseu.
2. 0 cheque referido, quando foi subtraído a Ana B..., estava em branco, ou seja, não se encontrava preenchido ou assinado pelo respectivo titular.
3. No dia 22 de Junho de 2006, em hora que não foi possível apurar, o arguido, conforme combinado uns dias antes com a ofendida MARIA C..., dirigiu-se a residência desta, sita no lugar da V..., concelho de Valença, e, mostrando-se interessado comunicou-lhe a intenção de adquirir o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matricula 74-07-..., marca Toyota, modelo Hiace, propriedade daquela, pelo valor de 6.000,00 € (seis mil euros), que se encontrava a venda.
4. Na altura, o arguido referiu que o veiculo era para a sua mulher, de nome Ana B..., a qual já tinha assinado uma declaração a assumir toda a responsabilidade por danos morais e materiais, bem como transgressões, causados pela viatura em causa, que o arguido mostrou e entregou a Maria C....
5. A ofendida, perante tal encenação, acreditou que o arguido pretendia adquirir aquele veiculo para a esposa, no valor de 6.000,00 €.
6. 0 arguido, para pagamento daquela quantia, entregou o cheque referido em 1., já preenchido e assinado, sacado sobre a conta bancária n.° 40172667..., da Caixa X, logrando dessa forma convencer a ofendida de que o titulo de crédito em causa Ihe tinha sido entregue, preenchido e assinado por Ana B... e que o mesmo obteria bom pagamento, dado que a conta dispunha de fundos suficientes para tal.
7. Acreditando no arguido, a ofendida aceitou o cheque e entregou-lhe o veiculo automóvel bem como todos os documentos respeitantes ao mesmo.
8. Apresentado em instituição bancária, foi o cheque dos autos devolvido sem provi
são, com a menção de “extravio”.
9. O arguido tinha plena consciência que não podia apoderar-se do aludido cheque nem utilizá-lo como o fez nos termos descritos, obtendo assim um locupletarnento ilegítimo, a custa do empobrecimento da ofendida MARIA C..., e bem sabia que a assinatura e as inscrições nele constantes não tinham sido apostas pelo punho da respectiva titular.
10. Ao faze-b, sabia também que estava a violar a fé pública inerente aos cheques como meio de circulação fiduciária, assim prejudicando igualmente o Estado.
11. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
12. Por factos praticados no dia 2.09. 1999 e por sentença proferida no dia 18.06.200 1, transitada em julgado no dia 3.07.2002,0 arguido foi condenado na pena de única de 240 dias de multa pela prática de um crime de desobediência e de injúria, pena essa declarada extinta pelo cumprimento.
13. Por factos praticados em 2001 e por sentença proferida no dia 27.09.2004, transitada em julgado no dia 18.10.2004, o arguido foi condenado na pena de 160 dias de multa pela prática de um crime de falsificação de documento, pena essa já declarada extinta pelo cumprimento.
14. 0 arguido é empresário em nome individual, dedicando-se a compra e venda de equipamentos industriais, auferindo no exercício da sua atividade profissional o ordenado mínimo nacional.
15. A esposa é doméstica.
16. Tem três filhos com 13, 9 e 5 anos de idade, todos a seu cargo, que são estudantes e frequentam a escola pública.
17. Vive em casa própria, tendo contraído para aquisição da mesma um empréstimo bancário cuja prestação mensal vem sendo paga pela sua mãe, que vive com o casal e com os netos.
18. Ate a presente data o arguido não devolveu a ofendida a viatura referida em 2. e não demonstrou arrependimento pela prática dos factos acima descritos.
19. A demandante fez várias deslocações pelo norte do país tentando localizar a sua viatura.
20. A demandante é pessoa séria e honesta e sentiu-se muito triste e amargurada com o comportamento do arguido.
21. A demandante teve de suportar despesas e tempo gasto com a apresentação da queixa e com deslocações a Tribunal para ser inquirida.
*
Considerou-se não provado que:
- o arguido, para pagamento da quantia referida em 3., preencheu o cheque referido em 5. e com o seu próprio punho realizou uma assinatura com o nome do titular da conta, como se fosse a própria;
- o arguido utilizou o dito cheque como se fosse seu;
- a demandante, com o passar do tempo, aliado ao facto de não encontrar a sua viatura e de não recuperar o seu valor, entrou em depressão, tendo tido necessidade de recorrer a apoio medico, pois passou a não dormir de noite a pensar no que lhe sucedeu.
*
Transcreve-se igualmente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:
Na formação da sua convicção o Tribunal fundou-se no depoimento claro e credível da ofendida Maria C..., que explicou que em Junho de 2006 pôs a viatura em causa – cujos elementos identificativos e características resultaram provados em face da informação da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 24 – à venda junto à Estrada Nacional em V... (colocou no veículo um papel com a inscrição “vende-se” e o seu número de telefone) e que, após um contacto telefónico, combinou um encontro com uma pessoa a quem viria a vender o veículo, e que identificou como sendo o arguido.
Explicou ainda que o cheque em causa – que está junto aos autos a fls. 7 –, no montante de 6.000,00 €, já vinha totalmente preenchido e assinado, e que o arguido, uma vez que o titular do mesmo era Ana B... e o seu nome estava inscrito no local destinado à assinatura do titular, lhe disse que o veículo seria para a sua mulher (razão da alteração dos factos descritos na acusação, nesta parte) e apresentou a declaração junta a fls. 8, também alegadamente subscrita pela dita Ana B..., que nos termos da mesma declarava assumir “...toda a responsabilidade por danos morais e materiais, bem como de transgressões, causados pela viatura 74-07-..., de marca TOYOTA modelo HIACE, pertença de Maria L..., residente no lugar E... – V... – 4930 Valença”, estando tal documento datado de 22 de Junho de 2006 e constando como local de emissão a cidade de “Barcelos”, circunstância que corrobora aliás o que a ofendida declarou no seu depoimento, ou seja, que o arguido de deslocou à sua morada em duas ocasiões distintas, pois só assim se compreende que trouxesse consigo a declaração em causa (que não é manuscrita) contendo dados identificativos da própria ofendida, declaração essa que, obviamente, foi redigida entre um momento e outro.
É patente outrossim que a encenação referida criou na ofendida um clima de confiança na pessoa do arguido, tendo aquela acreditado, no contexto descrito, que o cheque que lhe foi entregue por aquele último obteria bom pagamento.
Note-se ainda que a ofendida foi firme e peremptória ao identificar o arguido como o autor dos factos em questão, como aliás já o tinha feito em sede de diligência de reconhecimento, conforme consta do competente auto a fls. 98 e 99. É certo que o reconhecimento em causa foi realizado cerca de dois anos após os factos (circunstância que poderia ter feito com que a ofendida já não tivesse presente com a frescura necessária as características físicas da pessoa com quem tinha feito o negócio aludido em Junho de 2006, que só conheceu nessa altura), mas a verdade é que, em face da forma firme como a ofendida apontou o arguido como sendo o autor dos factos, tanto em sede de inquérito como em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal não teve qualquer dúvida em concluir ter sido aquele, efectivamente, o autor dos eventos descritos, que obviamente marcaram indelevelmente a ofendida, sendo por isso perfeitamente natural que, naquela data, ainda se recordasse bem da pessoa que a havia “burlado” algum tempo antes, tanto mais que esteve com o mesmo em duas ocasiões distintas e durante algum tempo (o que justifica que, ao contrário da ofendida, o marido da mesma não tenha conseguido identificar na diligência de reconhecimento o arguido como o autor dos factos, pois o negócio foi todo preparado e finalizado com a esposa).
Ademais, há que dizer que não se apuraram quaisquer motivos que pudessem levar a ofendida – e os restantes depoentes que se recordaram de ver o arguido no dia em causa
na residência daquela – a identificar, falsamente, alguém que nada tivesse que ver com os factos em causa, sendo certo aliás que nem conheciam o arguido antes dos eventos em apreço, como esclareceram.
A ofendida realçou ainda que foi várias vezes a Ponte de Lima em busca do veículo referido – afirmou que alguém cuja identificação já não recorda lhe disse que a carrinha estaria por essas bandas – e que toda esta situação lhe causou danos emocionais assinaláveis – o que foi confirmado de forma credível por Dalila I..., vizinha daquela –, sendo certo que a alegação no pedido de indemnização civil de que entrou em depressão por força dos factos não se deu como provada atendendo a que, tratando-se de uma condição médica, apenas podia ser sustentada por documento – que não foi junto – subscrito por especialista em tal área do conhecimento, não bastando nesse ensejo a mera prova testemunhal.
O marido da ofendida confirmou, no essencial, as declarações da ofendida quanto ao negócio realizado com o arguido, explicando que apenas esteve com este último uma vez – a ofendida afirmou que o marido esteve presente nas duas ocasiões que descreveu no seu depoimento, imprecisão que naturalmente se compreende à luz dos vários anos já
passados sobre a data dos factos e que não retira, bem pelo contrário, qualquer credibilidade ao seu depoimento –, ou seja, no dia em que aquele levou o veículo consigo.
Os depoentes José Miguel Santos – que declarou trabalhar para a ofendida – e José Emílio Martins – que declarou que na data dos factos estava a executar uma obra para o filho do ofendido, junto à casa da ofendida –, disseram recordar-se que no dia em causa o arguido surgiu na residência daquela, acompanhado dum senhor mais velho, e que este último levou a carrinha e o primeiro seguiu num Audi – isto dito pelo depoente Santos –, e que não têm dúvidas de que se tratava do arguido.
A testemunha Ana B... confirmou ser a titular do cheque em causa nos autos e esclareceu que durante o ano de 2006 – note-se que participou tais factos à PSP de Viseu no dia 8.05.2006, segundo informação prestada a fls. 40 – lhe foram furtados cheques da CCAM e, com interesse para os autos, disse também de forma peremptória que os títulos em questão não estavam preenchidos ou assinados, ou seja, estavam em branco, pelo que se concluiu com toda a segurança que foram posteriormente preenchidos e assinados por terceiros. Aliás, a mera comparação entre a assinatura da depoente constante da fotocópia do seu bilhete de identidade a fls. 36 e a que foi inscrita no cheque entregue à ofendida pelo arguido permite desde logo perceber que esta não foi aposta pelo punho da testemunha, tratando-se duma falsificação ostensivamente grosseira.
A este propósito diga-se que não se provou que tenha sido o arguido a apor, pelo seu punho, a assinatura e demais inscrições manuscritas que constam do cheque que entregou à ofendida. Esta foi clara no sentido de que o arguido lhe entregou o cheque em causa já devidamente preenchido e não é possível, mesmo por recurso a regras de experiência comum, concluir que foi aquele que o preencheu só porque estava na sua posse. O que não deixa de ser evidente também é que o arguido utilizou um cheque falsificado (se por si ou por terceiros, permaneceu a dúvida, que como veremos não tem relevância para efeitos criminais), do que estava naturalmente ciente, sendo certo que o cheque não estava endossado (poderia pôr-se a hipótese de o arguido ter chegado à posse do cheque por endosso, o que faria com que o quadro e o contexto em que os factos ocorreram tivesse uma “roupagem” distinta) e que a titular do cheque não conhece sequer o arguido.
A testemunha José Pedreira, identificado pela ofendida como “Zeca dos tractores”, confirmou que a mesma o contactou para saber se conhecia um tal de “Lopinhos”, que a testemunha confirmou corresponder à forma como o arguido é conhecido (a testemunha referiu que o conhece das feiras, já que se dedica à compra e venda de tractores, actividade a que, segundo referiu, o arguido se dedica), e que a ofendida lhe contou a história da venda da carrinha e do logro de que tinha sido vítima. Com interesse apenas referiu que contactou telefonicamente o arguido na sequência dessa conversa mas que este, em momento algum, assumiu perante si ser o autor dos factos, o que de resto sempre se estranharia.
Por fim, o arguido negou ter praticado os factos, não conhecer nem a ofendida nem as testemunhas inquiridas, dando a entender que na sua opinião haverá uma confusão de identidades, sendo que nas declarações finais acabou mesmo por dizer que todas elas estavam a mentir, apesar de não ter dado qualquer razão plausível para o efeito. Como é evidente, perante o que já foi exposto, tal tese não colheu, pelo que nos dispensamos de tecer mais comentários a esse propósito.
Que o cheque, apresentado a pagamento, veio devolvido na compensação por extravio, resulta do carimbo aposto no seu verso – fls. 7.
No mais, relevou-se quanto o teor da informação prestada pelo Caixa X..., relativamente à titular da conta a que se reporta o cheque referido, donde consta o extracto da conta corrente e a cópia da ficha de assinatura e identificação do titular da conta bancária.
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, relevou-se o teor do respectivo CRC, a fls. 198 a 200.
Quanto à demais factualidade, e que respeita também ao pedido de indemnização civil deduzido, não se fez prova alguma acerca da mesma.
As testemunhas apresentadas pelo arguido na sequência de alteração não substancial de factos oportunamente comunicada nada adiantaram sobre a matéria que foi objecto da mesma, pelo que os seus depoimentos não mereceram qualquer relevância no que respeita à fixação dos factos.

*
FUNDAMENTAÇÃO
I – A questão prévia da tempestividade do recurso interposto da sentença
O magistrado do Ministério Público junto desta relação suscitou a questão da extemporaneidade do recurso interposto da sentença.
Sendo o prazo para a interposição do recurso de 30 dias (art. 411 nº 4 do CPP, na redação anterior à Lei 20/2013 de 21-2), a questão está em saber desde quando se conta tal prazo.
Defende aquele magistrado que se conta a partir da data em que a sentença foi proferida e depositada (30-10-2012), porque, embora o arguido não tenha estado presente na leitura, estava regularmente notificado através de via postal simples com prova de depósito – v. fls. 491 e 593
Vejamos:
A audiência de julgamento prolongou-se por várias sessões.
A penúltima realizou-se em 25-10-2012, não tendo o arguido estado presente (fls. 488).
Nessa data foi designado o dia 30-10-2012 para a leitura da sentença, tendo o arguido sido notificado através de via postal simples com prova de depósito (fls.491), tendo o depósito sido feito em 30-10-2012, isto é, no dia da leitura da sentença (fls. 523).
Ora, a notificação por via postal simples com prova de depósito apenas se considera efetuada no quinto dia posterior ao depósito (art. 113 nº 3 do CPP). Percebe-se que seja assim, pois pretendeu-se prevenir a hipótese do notificado, como é normal, não ir todos os dias à caixa do correio recolher a correspondência que lhe foi dirigida.
Ou seja, o arguido não estava regularmente notificado da data em que foi lida a sentença, sendo que toda a argumentação da questão prévia suscitada, com a qual genericamente se concorda, assenta no pressuposto, da sua regular notificação.
Sendo assim, o prazo para a interposição do recurso conta-se a partir da notificação da sentença por contacto pessoal feita em 27 de dezembro de 2012 (fls. 584).
O recurso foi tempestivo porque interposto quatro dias depois, em 31 de dezembro de 2012 (fls. 547).
Improcede, assim, a questão prévia suscitada.
*
II – O recurso intercalar do despacho que indeferiu a produção de prova requerida após a comunicação de alteração não substancial de factos
O arguido foi acusado da autoria de um crime de burla e outro de falsificação de documento.
Em resumo, na acusação, referia-se que, em data anterior a 22-6-2006, apoderou-se de um impresso de cheque, pertencente a Ana B.... Com o seu próprio punho tê-lo-ia preenchido e assinado, como se tivesse sido preenchido e assinado pela Ana B.... Após, utilizou-o como pagamento do preço de um veículo automóvel que comprou à ofendida Maria C....
Durante a audiência foi comunicada uma «alteração não substancial de factos», limitada à circunstância de não se demonstrar que o arguido foi o autor da falsificação do cheque, mas, apenas, que «usou» um cheque que sabia ser falso.
No período que lhe foi concedido para a preparação da defesa, o arguido, além de arrolar testemunhas, requereu:
- que fosse efetuada perícia à letra do cheque objeto da falsificação; e
- que fosse oficiado às operadoras de serviços de telemóveis “para informarem se o arguido era cliente dos serviços por elas prestados na data dos factos que lhe são imputados (…) e em que local se encontravam os seus aparelhos, nessas datas”.
Sobre estes dois pontos foi proferida decisão a indeferir a produção de prova.
É contra esta decisão que se insurge o arguido.
Diga-se, desde já, que o recurso improcede.
Vejamos:
O arguido não questiona que a «mexida» nos factos apenas configura uma «alteração não substancial de factos».
Uma “alteração substancial de factos” implicaria a alteração do objeto do processo, isto é, da sua identidade que foi fixada na acusação. Fixado o objeto do processo penal, deve ele manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença. Este princípio é essencial à existência de um efetivo e eficaz direito de defesa do arguido, já que se ao tribunal fosse permitido modificar o objeto do processo, poderia este deparar-se com novos factos e novas incriminações que não tinha considerado quando da preparação da defesa – cfr. Silva Tenreiro, Considerações sobre o Objeto do Processo Penal, Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, pag. 1.000.
Por isso é que, havendo alteração substancial de factos, o julgamento só pode prosseguir com a concordância dos diversos sujeitos processuais, nomeadamente do arguido – cfr. art. 359 nº 3 do CPP.
Diferente é o caso da alteração não substancial.
Para além dos factos constantes da acusação (que constituem o objeto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjetivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.”. Esses factos novos fazem parte do chamado «objeto do processo em sentido amplo». Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objeto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358 nº 1 do CPP – cfr. Marques Ferreira, Da Alteração dos Factos Objeto do Processo Penal, RPCC, ano I, tomo 2, pag. 226.
Pois bem, feita a comunicação de factos que apenas importam uma «alteração não substancial» não se reinicia todo o percurso da produção de prova, fazendo-se tábua rasa quer dos prazos que já decorreram para a defesa, quer da prova já produzida. No essencial, a acusação continua a ser a mesma, porque a identidade do processo mantem-se inalterada. A «preparação da defesa» referida na última parte da norma do art. 358 nº 1 do CPP tem, necessariamente, que estar relacionada e de ser relevante para os novos factos com os quais o arguido foi surpreendido. Ele já teve o prazo do art. 315 do CPP para, com a maior amplitude, arrolar testemunhas e oferecer outra prova.
Por isso, deve ser indeferida a produção de prova que nada tem a ver com os factos que foram comunicados.
No caso concreto, o arguido pretende que seja feito um exame à letra do cheque. É uma pretensão a que só pode ser atribuído um intuito dilatório, face à comunicação de que no julgamento não tinha sido feita prova de que eram do seu punho a assinatura e demais dizeres apostos no cheque.
Quanto às informações que pretende que sejam solicitadas às operadoras de telemóveis, alega que “é necessário apurar se “usou” o cheque naquele local que a acusação tinha fixado e naquela data, mesmo depois de apurar que não foi o arguido que o falsificou. Apurar se o arguido usou o cheque implica apurar o momento e o local onde o usou”. Se bem se percebe, se as operadoras informassem que, nas datas indicadas, os telemóveis do arguido não tinham estado na zona de Valença, então não teria sido ele quem fez a entrega do cheque.
Ao contrário do alegado, o tribunal não apurou que foi outrem, que não o arguido, quem falsificou o cheque. Não considerou provado que tivesse sido ele, o que é diferente.
Como quer que seja, as circunstâncias concretas da entrega do cheque pelo arguido à Maria C... e as conversas mantidas entre os dois na freguesia de V..., concelho de Valença, já constavam da matéria de facto vertida na acusação. Nesta parte nenhuma alteração houve nos factos. É matéria que se prende com a identificação do autor dos factos, não com a forma como ele os executou. Desde o início, ao arguido interessava produzir prova no sentido de que não foi ele quem chegou a acordo com a ofendida e lhe fez a entrega do cheque. Nessa parte, que é aquela em que relevaria a prova agora pretendida, nenhuma alteração houve. Assente essa matéria, a prova, ou não prova, de que foi o arguido quem preencheu e assinou o cheque apenas relevava para o enquadramento jurídico do crime de falsificação.
Neste sentido, o acórdão desta Relação de Guimarães de 26-10-2009, relatora Nazaré Saraiva, rec. 154/06.2IDBRG.G1 em http://www.dgsi.pt/jtrg:
I – O pedido de produção de meios de prova, na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tem de ser acompanhado da respectiva justificação, para os efeitos do art. 340 nº 4 do CPP. De outro modo o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade, à luz dos critérios fixados nos nºs 3 e 4 daquele art. 340 do CPP.
II – Devem ser indeferida a produção de prova suplementar dilatória, entendendo-se esta como aquela que prejudica o regular andamento dos autos, sem que possa contribuir para o esclarecimento da verdade.
Improcede, pois, este recurso.
III – O recurso da sentença
1 – O alcance da queixa
Alega o recorrente que a ofendida, na queixa que apresentou, indicou factos distintos daqueles pelos quais depois foi exercida a ação penal. “Do inquérito resultaram outros factos diferentes daqueles comunicados à GNR, mas sobre esses factos diferentes não foi apresentada qualquer queixa”.
Invoca ainda a norma do art. 217 nº 3 do Cod. Penal, nos termos da qual o procedimento criminal pelo crime de burla depende de queixa.
É questão sem objeto, porque ambos os crimes por que o arguido foi, primeiro, acusado e depois condenado na sentença recorrida têm natureza pública, não dependendo o procedimento criminal de queixa. A invocada norma do art. 217 nº 3 do Cod. Penal diz apenas respeito ao crime de burla “simples” do art. 217 do Cod. Penal, sendo que nestes autos está em causa um crime de burla qualificada pelo art. 218 nº 1 do mesmo código. O crime de falsificação de documento do art. 256 tem sempre natureza pública.
2 – O vicio do erro notório na apreciação da prova – art. 410 nº 2 al. c) do CPP
Conforme jurisprudência fixada pelo STJ “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410 nº 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” – ac. 7/95 de 19-10-95, DR – Iª Série de 28-12-95
É o que se decide neste acórdão relativamente ao vício em referência, pelas razões que a seguir se indicam.
*
Na narração dos factos da acusação o MP alegou que o arguido “com o seu próprio punho ter realizado uma assinatura num cheque com o nome do titular da conta, Ana B..., como se fosse a própria”, cheque esse com que efetuou o pagamento do preço de um veículo automóvel.
Em consequência imputou ao arguido a autoria do crime p. e p. pelos art. 256 nºs 1 al. a) e 3 do Cod. Penal – fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso.
Não se trata de um crime de mão própria. A lei não exige, para que se verifique a previsão desta alínea, que o agente tenha falsificado o documento com o seu próprio punho. Valem aqui todas as modalidades de autoria, imediata ou mediata, previstas no art. 26 do Cod. Penal.
Na sentença, na sequência de comunicação de alteração não substancial de factos, foram considerados provados factos tendentes a imputar ao arguido o mero uso de documento falso, tendo em consequência ele sido condenado como autor do crime p. e p. pelo art. art. 256 nºs 1 al. e) e 3 do Cod. Penal, na redação atualmente em vigor, após a Lei 59/07 de 4-9.
Tendo os factos sido praticados antes da entrada em vigor das alterações ao Cod. Penal introduzidas por esta lei, o arguido questiona o enquadramento penal dos mesmos face à lei vigente à data em que os praticou.
Porém, põe-se a questão prévia da existência de erro notório na apreciação da prova ao não se considerar demonstrada a participação do arguido no processo da falsificação do cheque. É um erro que, como impõe o corpo da norma do art. 410 nº 2 do CPP, decorre unicamente texto da decisão recorrida.
Vejamos então:
Resulta dos factos provados e da motivação da decisão sobe a matéria de facto que:
- no dia 8 de Maio de 2006, a testemunha Ana B... participou à PSP de Viseu o furto de cheques duma conta de que era titular.
- posteriormente, em data em data indeterminada, mas anterior a 22 de Junho de 2006, o arguido apoderou-se de pelo menos um desses cheques (facto provado nº 1).
- em data anterior a 22 de Junho de 2006, o arguido combinou com a queixosa Maria L... comprar-lhe um veículo automóvel pelo preço de € 6.000,00 – facto provado nº 3 (segmento “conforme combinado dias antes”) e motivação (segmento “..circunstância que corrobora aliás o que a ofendida declarou no seu depoimento, ou seja, que o arguido de deslocou à sua morada em duas ocasiões distintas, pois só assim se compreende que trouxesse consigo a declaração em causa (que não é manuscrita) contendo dados identificativos da própria ofendida, declaração essa que, obviamente, foi redigida entre um momento e outro”).
- no segundo encontro, ocorrido em 22 de Junho de 2006, o arguido entregou à queixosa “já preenchido e assinado” (facto nº 6), o cheque falsificado, no qual tinha sido aposto o valor de € 6.000,00 acordado para o negócio.
Pois bem, o juízo que foi formulado quanto à “declaração” (que foi redigida entre um momento e outro) impunha-se igualmente não só relativamente ao facto da falsificação do cheque ter ocorrido no período que mediou entre os dois encontros, mas também ao facto da falsificação ter sido feita tendo em vista o concreto uso do cheque pelo arguido no pagamento do preço do veículo. De outro modo aparece como incompreensível e irremediavelmente contraditório o facto do cheque ter sido preenchido com um valor igual, até ao cêntimo, ao que tinha sido acordado para a compra e venda. Na falta de outros elementos, que a sentença não fornece, a falsificação do cheque não pode ser dissociada da elaboração da “declaração” (supostamente assinada pela mulher do arguido, para quem seria o veículo) .
É uma conclusão que se impõe de forma inelutável, face às regras da experiência e ao normal acontecer das coisas da vida. Outra hipótese aparece como fruto da fantasia. Não é de ponderar a possibilidade de, entre os dois encontros com a queixosa, o arguido ter “achado” ou “adquirido” o cheque falso, que “por acaso” já vinha preenchido com o exato valor da compra.
Por outras palavras, a ter sido desencadeada a alteração não substancial de factos, ela deveria ter-se limitado à comunicação de que a assinatura e os demais dizeres do cheque tinham sido apostos pelo arguido, com o seu próprio punho, ou por alguém a seu mando e segundo as suas indicações. Tal alteração não modificaria a incriminação, pois, como já acima se referiu, neste crime aplicam-se as regras gerais sobre a autoria – cfr. Conimbricense, tomo II, pag. 689.
*
O vício em causa importa o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 nº 1 do CPP), o qual que se ordena relativamente à totalidade do objeto do processo, dada a dependência entre todos os factos imputados.
O reenvio prejudica as demais questões suscitadas no recurso.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – Negam provimento ao recurso intercalar; e
2 - Ordenam o reenvio do processo para novo julgamento nos termos indicados.
O recorrente pagará a taxa de justiça de 3 UCs, pela improcedência do recurso intercalar.

http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d9b1212f614e851c80257c0f00495225?OpenDocument

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO PLANO DE RECUPERAÇÃO - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 10.10.2013


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4183/12.9TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO

Nº do Documento: RP20134183/12.9TBPRD.P1
Data do Acordão: 10-10-2013
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - Com a alteração introduzida pela Lei nº 55-A/2010, de 31/12 ao artigo 30º da LGT, designadamente com o aditamento do seu nº3, deixou de ser legalmente admissível a homologação de plano de revitalização, que não haja sido votado favoravelmente pelo Estado, quando tal plano contemple redução, extinção ou moratória de créditos fiscais.
II - Um plano com esse conteúdo comporta violação de normas legais de natureza imperativa, que se sobrepõem ao complexo normativo do CIRE, devendo por isso a sua homologação ser recusada oficiosamente nos termos do artigo 215º deste último diploma, por força do disposto nos artigos 17º-F, nº5 e 17º-I, nº4.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Processo nº 4183/12.9TBPRD.P1
Tribunal Judicial de Paredes
1º Juízo Cível

Relatora: Judite Pires
1ª Adjunta: Des. Teresa Santos
2º Adjunto: Des. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. No âmbito do processo especial de revitalização instaurado em 18 de Dezembro de 2012, em que são requerentes B… e C…, residentes na Rua …, nº …, ….-… …, concelho de Paredes, entre outros credores, reclamou a Fazenda Nacional os seus créditos (fiscais), os quais, reconhecidos, constam da lista definitiva de créditos.
Remeteu o Sr. Administrador Judicial Provisório aos autos plano de recuperação que, no que respeita à Fazenda Nacional, propõe o pagamento dos créditos desta em 60 prestações mensais e iguais, com juros vincendos à taxa de 4% ao ano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença que venha a homologá-lo, oferecendo-se como “garantia hipotecária (2ª) o prédio constante da verba 1”.
Apesar da Fazenda Nacional ter votado desfavoravelmente esse plano de revitalização, o mesmo foi homologado por decisão judicial datada de 14.05.2013.
2. Discordando dessa decisão que homologou o plano de recuperação apresentado pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, o Ministério veio interpor recurso de apelação para esta Relação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1.º Foi declarado aberto o presente processo de revitalização de B… e C….
2º Os créditos da Fazenda Nacional foram reclamados e reconhecidos, constando da lista definitiva de créditos.
3º Pelo Senhor Administrador Judicial Provisório foi remetido ao Tribunal o plano de recuperação que prevê no que à Fazenda Nacional diz respeito o pagamento dos seus créditos em 60 prestações mensais e iguais com juros vincendos à taxa de 4% ao ano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença homologatória, oferecendo-se como garantia hipotecária (2ª) o prédio constante da verba 1.
4º A Fazenda Nacional tinha votado desfavoravelmente esse plano de recuperação que veio a ser homologado pelo Tribunal a “quo”.
5º Quanto aos créditos do Estado vigora o princípio da indisponibilidade, não podendo o Estado aderir a medidas e planos que impliquem uma redução dos créditos fiscais, apenas lhe sendo possível aceitar moratórias no pagamento nos termos da lei, de acordo com esta e dentro dos seus limites.
6º É a lei que define as formas de pagamento, eventuais alterações, reduções ou mesmo extinção parcial da obrigação contributiva.
7º Não é permitido que uma maioria, em sede de acordo de recuperação, consiga moratórias e benefícios não previstos na lei.
8º Tal a acontecer, constitui violação dos princípios da igualdade e da legalidade.
9º O plano de recuperação homologado não está de acordo com as normas que regem as dívidas fiscais, nomeadamente, os artigos 196º do C.P.P.T (pagamento em prestações) que não permite o pagamento para além de 36 prestações.
10º O plano aprovado (no que ao caso importa com os votos contra da Fazenda Nacional) comporta não só a redução dos juros da Fazenda Nacional, como o pagamento de tais créditos em prestações em termos que a administração (em obediência à lei) não pode conceder, nos termos do disposto nos art.s 61º e 196º n.s 1 e 5 do C.P.P.T., além de não precaver a constituição de garantia idónea, em contrário do disposto no art.º 199º do C.P.P.T.
11º Tal plano deveria ter sido oficiosamente recusado, nos termos do disposto no art.º 215º (por remissão do artigo 17.º-I nº4) do CIRE.
12. A homologação do plano produz resultados não permitidos por lei (como sejam a moratória, perdão de juros, falta de constituição de garantia idónea) dado que essas alterações teriam de ser feitas nos precisos termos em que a lei o permite e, com a anuência do órgão de execução fiscal competente, pelo que foi violado o disposto no art.º 192, nº2 do C.I.R.E. (por remissão do art.º 17º-F, nº5).
13º A decisão que o homologou violou o disposto nos art.s 215º, 192º, nº2 (por remissão do artigo 17º-I nº4 do C.I.R.E., artigo 30º nº2 e 3º da L.G.T., artigos 60º, nº 1, 196º, 198º, nº2 e 199º do C.P.P.T., Aviso 17289 de 2012, publicado no Diário da República de 28/12/2012 e art.º 125º da Lei 55-A/2010, de 31/12.
(…)
Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências não deixarão de, proficientemente, suprir, deve o presente recurso de apelação ser provido, e, em consequência, ser revogada a decisão proferida, por outra que recuse a homologação do plano de recuperação conducente à revitalização dos devedores”.
Não foram apresentadas as contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
2. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se o plano de recuperação podia legalmente ser homologado.

III. FUNDAMENTOS DE FACTO
A factualidade e incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são, além dos descritos no antecedente relatório, os seguintes:
1.O Ministério Público reclamou os seguintes créditos que, reconhecidos pelo Administrador Judicial Provisório, integram a lista por este elaborada nos termos do artigo 17º-D, nº 4 do CIRE, com a redacção introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril:
a) Crédito (privilegiado) no valor global de € 13.930,61 (capital: € 13.278,15; juros: € 652,46), de IVA (€ 12.419,82) e IMI (€858,33);
b) Crédito (comum) no valor total de € 7.598,14 (capital: € 7.302,30; juros: € 295,849), de coimas e custas.
2. Consta do plano de revitalização apresentado pelo Administrador Judicial Provisório, entre o mais e no que se refere aos créditos das finanças, o seguinte:
- “Os créditos das Finanças serão pagos em 60 prestações mensais e iguais com juros vincendos à taxa de 4% ao ano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença homologatória” – ponto 1.
- “Às Finanças e ISS oferece-se como garantia hipotecária (2ª) o prédio constante da verba nº1” – ponto 4.
3. Votaram o plano 83,5% dos credores constantes da lista definitiva, tendo votado a favor do mesmo 80,2% e contra 3,3%.
4. Em 11.03.2013, data anterior à votação do plano de revitalização, o Ministério formulou o requerimento de fls. 199, nele constando que “…em representação da Fazenda Nacional, vem por este meio juntar aos autos a posição da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários no eventual acordo, que é aquela assumida por escrito no ofício que junta, e para o qual se remete”.
5. A acompanhar tal requerimento juntou um ofício Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários, remetido por fax em 11.03.2003 ao Magistrado do Ministério Público junto do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, e referente ao presente processo de revitalização, do qual consta designadamente:
“Assim e em observância daqueles normativos legais [nºs 2 e 3 do artigo 30º e nº3 do artigo 36ºda LGT e artigos 196º e 199º do CPPT], especificam-se as condições, cumulativas, de participação do credor Fazenda Nacional em eventual acordo a celebrar, ou sejam:
● Pagamento em regime prestacional, nos termos do art.º 196 do CPPT, designadamente, o disposto na parte final do seu nº 5, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao términus do prazo previsto no nº5 do artigo 17º-D do CIRE;
● A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99, de 16/03, face à renúncia dos demais credores;
● Não haverá lugar a redução de coimas e custas;
● Constituição de garantias idóneas – hipoteca voluntária e/ou garantia bancária – e suficiente nos termos do disposto no art.º 199º do CPPT, a prestar pela devedora ou por terceiro, junto do órgão de execução fiscal, as quais são aferidas nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 197º e nº 9 do artigo 199º do CPPT, dentro do mês seguinte ao términus do prazo previsto no nº5 do artigo 17º-D do Cire (…)”.
6. O plano de recuperação foi judicialmente homologado por decisão de 14.05.2013.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A Lei nº 16/2012, de 20/4 veio aditar um Capítulo II ao Título I do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03 e alterado pelo Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, no qual, aglutinados nos artigos 17º-A a 17º-I, prevê e disciplina o designado “Processo Especial de Revitalização”.
A sua origem emana do programa “Revitalizar”, criado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 11/2012, de 3 de Fevereiro, propondo-se constituir solução no âmbito da reestruturação empresarial, permitindo a revitalização de empresas que se achem em situação económica difícil, mas ainda com viabilidade.
De acordo com o nº1 do primeiro daqueles apontados preceitos, “o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.
Pode a ele recorrer qualquer devedor que “…por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação” – nº2 do mencionado normativo.
Como a própria designação aponta, o processo especial de revitalização consiste num instrumento processual, de índole marcadamente extrajudicial e negocial, criado num contexto económico reconhecidamente problemático, para ser colocado à disposição de todos aqueles que se confrontem com uma situação económica difícil ou na iminência de situação de insolvência, mas ainda passível de recuperação, visando, com a interacção dos seus credores, uma solução negocial que, evitando a concretização da situação efectiva de insolvência do devedor, consiga promover a sua reabilitação.
Após reclamação dos créditos pelos credores, na falta de impugnação e reconhecidos os mesmos, é elaborada pelo Administrador Judicial Provisório lista definitiva dos créditos reclamados, fazendo dela constar o valor de cada crédito (capital e juros) e respectiva natureza, identificando, naturalmente, os titulares dos mesmos.
Findo o prazo para impugnações, haverão de prosseguir as negociações já encetadas, que devem estar concluídas no prazo de dois meses, apenas se admitindo prorrogação por uma vez e por um mês, estando essa prorrogação, todavia, condicionada a prévio acordo escrito entre o administrador judicial provisório e o devedor.
No termo das negociações é elaborado pelo administrador judicial provisório plano de revitalização, o qual é submetido à votação dos credores.
Em caso de aprovação unânime em acto em que intervenham todos os credores, “…este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa da mesma pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal plano de recuperação, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos”.
Não se verificando essa unanimidade, mas tendo o plano sido aprovado[1], o devedor remete o mesmo a tribunal, sendo o mesmo submetido à apreciação do juiz, que o homologará ou recusará essa homologação.
Após esta breve incursão ao ritualismo do processo especial de revitalização, importa, tendo, no caso aqui em discussão, sido alcançado acordo quanto ao plano de recuperação, que foi aprovado, mas sem unanimidade, deter-nos no momento em que ele é sujeito a sindicância judicial.
A decisão sobre a homologação ou a recusa da mesma constitui neste especial procedimento a principal manifestação da actuação jurisdicional.
Segundo o nº5 do artigo 17º-F do CIRE, “O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação (…) aplicando, com as necessárias, adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º.”
Determina, por sua vez, o artigo 215º, nº 1 do mesmo diploma legal, em conformidade com o citado dispositivo, que “o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano [de recuperação] aprovado [pelos credores] no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou de normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.
No caso em discussão, o plano de recuperação, aprovado pela maioria dos credores, mas sem voto favorável do representante da Fazenda Nacional, foi submetido à apreciação do juiz do processo, que se decidiu pela sua homologação.
É contra essa decisão que se insurge, através da via recursiva que acciona, o Ministério Público, defendendo que ao invés da sua homologação, deveria a senhora juiz ter oficiosamente recusado tal homologação, por, no seu entender, o plano aprovado, comportando redução dos juros, permitindo o pagamento do crédito da Fazenda Nacional em prestações, e não acautelando a constituição de uma garantia idónea, contrariar normas imperativas consignadas na Lei Geral Tributária (L.G.T.), nomeadamente, o seu artigo 30º, nº2 e 3, Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), designadamente, os seus artigos 60º, nº1, 196º, 198º, nº2 e 199º.
Vejamos, pois, se o plano aprovado pela maioria dos credores e judicialmente homologado ofende alguma norma de direito tributário que, de forma imperativa, imponha solução contrária a algum do seu conteúdo.
Recorde-se que antes da aprovação da Lei nº 55-A/2010, de 31/12 alinhava a jurisprudência[2], de forma concordante, no entendimento de que não constituía obstáculo à homologação do plano de insolvência o facto dele prever uma redução, ou mesmo perdão, de dívidas ao Estado, de natureza fiscal, ou o seu pagamento fraccionado, ainda que sem assentimento da administração fiscal.
Tal orientação sustentava-se no entendimento, quase pacífico, de que o âmbito de aplicação dos artigos 30º, nº2 e 36º, nº3 da LGT, e artigo 85º do CPPT se restringia às relações tributárias, em sentido próprio, ficando o processo (especial) de insolvência fora do alcance das referidas normas. E tendo em conta o regime específico previsto nos artigos 192º, 194º e 196º do CIRE para o plano de insolvência, e o princípio da especialidade das normas do CIRE em relação aos regimes normativos reguladores das dívidas fiscais e parafiscais, sustentava-se não haver fundamento para recusar a homologação do plano de insolvência aprovado ainda que com voto desfavorável do Estado enquanto credor.
Entretanto, a Lei nº 55-A/2010, de 31/12, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2011, aditou, no seu artigo 123º, um nº3 ao artigo 30º da LGT (Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17/12, e subsequentes alterações), com entrada em vigor em 01/01/2011[3], com a seguinte redacção: “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
Especificou expressamente o artigo 125º da referida Lei que: “o disposto no nº 3 do artº 30º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontram pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstas no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”.
Enquanto isso, o nº2 do artigo 30º da LGT estabelece: “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.
Com o aditamento do nº3 ao artigo 30º da LGT, pretendeu o legislador, de forma expressa, arredar, quanto aos créditos tributários, qualquer possibilidade de acordo quanto à sua redução, ou moratória, ainda que as mesmas possam estar previstas ou serem consentidas por outros diplomas, incluindo o CIRE.
Ou seja, o novel nº3 do artigo 30º da LGT, consagrando o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, constitui afirmação clara do primado do complexo normativo tributário sobre a demais legislação, ainda que natureza especial, sobrepondo-se a esta em situação de colisão de interesses.
Da sua natureza imperativa decorre a vinculação dos tribunais ao comando nele contido, como se faz notar no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2012[4], ao afirmar que “…é por demais evidente que não podem os Tribunais deixar de cumprir este comando legal, posto que nos termos do artº 3º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) incumbe-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, sendo certo que, nos termos do artº 8º/2 do Código Civil o tribunal está vinculado ao dever de obediência à lei, não podendo tal dever ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”[5]. Como salienta o mesmo acórdão, “a opção legislativa assim tomada pelo legislador - o poder legislativo do Estado é indivisível e só assume as preferências valorativas que expressa, formal e legalmente consigna - tem em vista o plano financeiro estratégico que no orçamento prevê para o ano de 2011; e neste político circunstancialismo não tem o Julgador que se imiscuir”.
Assente a natureza imperativa que deriva do referido nº3 do artigo 30º da LGT para procedimentos de natureza especial como os regulados pelo CIRE, designadamente, plano de insolvência e plano de revitalização, importa, revertendo ao caso concreto, indagar se o plano de recuperação aprovado pela maioria dos credores, mas sem o voto favorável da Fazenda Nacional, contraria por alguma forma preceitos de natureza tributária cuja primazia, no contexto do restante ordenamento jurídico, seja assegurada pelo nº3 do artigo 30º da LGT.
Para tanto haverá que atentar no regime fixado no artigo 36º do mesmo diploma legal, que procede à regulamentação da constituição e alteração da relação tributária, especificando o seu nº 1 que “a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário”, decorrendo dos nºs 2 e 3 do mesmo normativo que “os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes”, sendo vedado à administração tributária “…conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”.
Por sua vez, o artigo 85º do CPPT estabelece, nos seus nºs 1 e 3, que os prazos de pagamento dos tributos são os regulados nas leis tributárias, constituindo a concessão de moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, fundamento de responsabilidade tributária.
O pagamento da dívida fiscal ou parafiscal em prestações, traduzindo-se em concessão de moratória, constitui regime de excepção, só permitido nos casos autorizados por lei[6].
O artigo 196º do mesmo diploma, na redacção conferida pela Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, define os termos e as condições a que o pagamento fraccionado das dívidas tributárias se acha sujeito, dispondo o seu nº6 que, quando no âmbito de plano de recuperação económica legalmente previsto, se demonstre a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, acrescentando, todavia, o nº7 do mesmo normativo que “a importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, os quais serão incluídos na guia passada pelo funcionário para pagamento conjuntamente com a prestação”.
Finalmente, também com relevo para a situação em debate, importa ter em conta o regime fixado pelo nº1 do artigo 199º do referido CPPT: “Caso não se encontre já constituída garantia, com o pedido deverá o executado oferecer garantia idónea, a qual consistirá em garantia bancária, caução, seguro caução ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente“, podendo ainda a garantia idónea consistir, de acordo com o nº2 do mesmo dispositivo, “(…) em penhor ou hipoteca voluntária, aplicando-se o disposto no artigo 195.º, com as necessárias adaptações (Redacção da Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro), a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária”.
Do que fica dito, pode desde já concluir-se:
- O crédito tributário tem natureza indisponível, só podendo extinguir-se ou mesmo reduzir-se num quadro de respeito pelos princípios de igualdade e legalidade tributária, o que equivale a dizer que qualquer operação que redunde em extinção ou redução desse crédito só será admissível quando expressamente consentida por norma específica expressa, exigindo-se que o seu processamento obedeça igualmente às regras específicas fixadas para esse fim;
- As disposições legais tributárias, designadamente as atrás convocadas, têm natureza pública e imperativa, não podendo ser afastadas pelo recurso a ouros mecanismos legais, nem pela vontade das partes, não sendo suficiente um resultado consensual alargado (obtido por meio de votação que alcance uma maioria qualificada) para as derrogar;
- O juiz, enquanto aplicador da lei, deve decidir em conformidade com a mesma, zelando ainda para que seja cumprida.
Quer isto dizer, e indo directamente à questão colocada no presente recurso, que o julgador ao emitir decisão sobre a homologação ou não do plano de revitalização sujeito à sua apreciação deve ajuizar se ele se conforma ou não com as normas tributárias de cariz imperativo, designadamente aquelas a que vem fazendo referência.
No caso em apreço, o plano de recuperação aprovado prevê o pagamento em prestações do crédito tributário sem que essa modalidade de pagamento tivesse sido accionada e autorizada nos termos que antes se deixaram assinalados, sendo que o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, não concedeu voto favorável a esse plano.
Ademais, o plano em causa implica uma redução do crédito tributário, no que concerne aos juros moratórios/indemnizatórios.
Como prevêem as alíneas d) e e) do nº1 do artigo 30º da LGT, a relação tributária integra o direito a juros compensatórios e o direito a juros indemnizatórios.
Ora, aos juros vincendos fixados no plano de recuperação para o crédito tributário da Fazenda Nacional, sem o voto favorável desta, repete-se, não pode ser imputada natureza de juros compensatórios e, a enquadrá-los como moratórios, – pelo alargamento do prazo para cumprimento integral do crédito tributário consentido com o pagamento em prestações – a taxa de 4% ao ano[7] fixada para os mesmos é indiscutivelmente de valor inferior à taxa legalmente fixada para os juros moratórios para aquele crédito da Fazenda Nacional[8].
Tem, deste modo, razão o recorrente quando nas suas conclusões recursivas sustenta que o plano aprovado, e que foi objecto da impugnada homologação judicial, comporta redução de juros relativamente ao crédito da Fazenda Nacional, como admite o pagamento do crédito tributário em prestações em termos não autorizados pela administração fiscal e também não consentidos pelas normas tributárias.
Igual razão lhe assiste ao afirmar que o plano não acautela, em relação aos créditos da Fazenda Nacional, a constituição de uma garantia idónea, não respeitando a imposição para o efeito fixada nos nºs 1 e 2 do artigo 199º do CPPT.
Contendo o plano de recuperação medidas cuja aplicabilidade implique violação de normas tributárias de natureza imperativa, que devem sobrepor-se a quaisquer outras normas, ainda que de direito especial, e ao próprio acordo das partes, deve esse plano ser rejeitado na sua totalidade, pela recusa de homologação, independentemente do facto de tal violação apenas incidir sobre créditos fiscais ou parafiscais[9].
No caso aqui em debate, violando o plano de recuperação as nomas fiscais assinaladas, não tendo tido a aprovação do Ministério Público enquanto representante da Fazenda Nacional, deveria ter sido recusada a sua homologação, nos termos do disposto no artigo 215º do CIRE, aplicável ex vi do artigo 17º- I, nº4 do mesmo diploma.
Procedem as conclusões de recurso, com a consequência da revogação da decisão recorrida e sua substituição por decisão que recusa a homologação do plano de recuperação.
*
Síntese conclusiva:
- Com a alteração introduzida pela Lei nº 55-A/2010, de 31/12 ao artigo 30º da LGT, designadamente com o aditamento do seu nº3, deixou de ser legalmente admissível a homologação de plano de revitalização, que não haja sido votado favoravelmente pelo Estado, quando tal plano contemple redução, extinção ou moratória de créditos fiscais.
- Um plano com esse conteúdo comporta violação de normas legais de natureza imperativa, que se sobrepõem ao complexo normativo do CIRE, devendo por isso a sua homologação ser recusada oficiosamente nos termos do artigo 215º deste último diploma, por força do disposto nos artigos 17º-F, nº5 e 17º-I, nº4.
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão que homologou o plano de recuperação, recusando-se a sua homologação.
Custas pelos apelados.

Porto, 10 de Outubro de 2013
Judite Lima de Oliveira Pires
Teresa Santos
Aristides Manuel da silva Rodrigues de Almeida (voto a decisão)
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[1] “Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º -D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida” – artigo 17º-F, nº3 do CIRE.
[2] Entre muitos outros, cfr. acórdãos do STJ de 04.06.2009 (processo nº 464/07.1TBSJM-L.S1) e de 02.03.2010 (processo nº 4554/08.5TBLRA-F.C1.S1), ambos em www.dgsi.pt.
[3] Artigo 187º da mencionada Lei nº 55-A/2010.
[4] Processo nº 368/10.0TBPVL-D.G1.S1, www.dgsi.pt.
[5] Cfr., em sentido idêntico, os acórdãos do STJ de 15.12.2011 (processo nº 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1) e de 14.06.2012 (processo nº 506/10.3TBPNF-E.P1.S1), ambos em www.dgsi.pt.
[6] O artigo 42º, nº1 da LGT admite que o contribuinte possa requerer o pagamento em prestações da dívida tributária quando não tenha possibilidades de efectuar o pagamento integral, e de uma só vez, dessa dívida, e o artigo 86º do CPPT prevê a possibilidade do pagamento da mesma ser requerido antes de instauração da execução fiscal.
[7] Correspondente à taxa dos juros civis.
[8] 6,112% ao ano, de acordo com os nºs 1 e 2 do artigo 44º da LGT e Aviso nº 17.289/2012, publicado no D.R., 2ª série, de 28 de Dezembro de 2012.
[9] No sentido de não dever ser homologado o plano de recuperação, ou o plano de insolvência, quando estejam em causa créditos da Fazenda Nacional, esta não lhe dê o seu acordo e o mesmo comporte violação de normas tributárias de aplicação imperativa, além dos antes citados acórdãos do STJ, cfr. ainda acórdãos da Relação do Porto de 10.07.2013, processo nº 257/12.4TBMCD.P1, de 13.06.2013, processo nº 349/12.0TBVCD-D.P1, de 17.06.2013, processo nº 2836/12.0TJVNF.P1, de 28.06.2013, processo nº 4944/12.9TBSTS-A.P1; da Relação de Lisboa de 15.11.2012, processo nº 86/11.1TYLSB-G-L1-6; da Relação de Coimbra de 25.06.2013, processo nº 1802/11.8TBPBL-D.C1, de 28.05.2013, processo nº 249/12.3TBGRD-J.C1, de 11.12.2012, processo nº 58/12.0TBMGD.C1, de 17.11.2012, subscrito, enquanto adjunta, pela ora relatora, processo nº 1577/10.8TBPBL-F.C1; da Relação de Guimarães, de 13.06.2012, processo nº 5590/12.TBBRG-C.G1, de 02.05.2013, processo nº 3732/12.7TBBRG-H.G1, entre outros, todos em www.dgsi.pt.
______________
Voto a decisão.
No tocante às condições em que, no âmbito de um processo de insolvência ou de revitalização, os créditos tributários podem ser objecto de modificação, redução ou fixação de um novo regime de pagamento, continuo a defender os argumentos que enquanto relator expus no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 12 de Setembro de 2013, publicado in htp://www.dgsi.pt/jtrp.nsf, motivo pelo qual, com todo o devido respeito pela opinião contrária e pelos argumentos pertinentes que a sustentam, divirjo essencialmente da fundamentação da presente decisão.
Todavia, mesmo observando a fundamentação que ali expusemos, no caso sempre teríamos de concluir que o plano de pagamento dos créditos fiscais concretamente aprovado viola o disposto no artigo 196.º do CPPT, no que concerne ao número e valor das prestações, pelo que se impunha recusar a respectiva homologação por violação do princípio da legalidade tributária.

Aristides Manuel da silva Rodrigues de Almeida
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/b48a674a863689fe80257c0d00471e7e?OpenDocument

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