Acerca de mim

A minha foto
Porto, Porto, Portugal
Rua de Santos Pousada, 441, DE Telefone: 225191703; Fax: 225191701; E-mail: cabecaisdecarvalho@gmail.com

terça-feira, 23 de julho de 2013

PRINCÍPIO DE TRABALHO IGUAL SALÁRIO IGUAL - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 11.07.2013


Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
697/12.9TTLSB.L1-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: PRINCÍPIO DE TRABALHO IGUAL SALÁRIO IGUAL

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11-07-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE

Sumário: I.A aplicação do princípio para trabalho igual salário igual, consagrado nos artigos 59.º n.º 1, al. a), da CRP, 263.º do CT/03 e 270.º do CT/09, pressupõe que sejam tidas em conta “a quantidade, natureza e qualidade do trabalho”, significando tal que é admitida a atribuição de salários diferentes a trabalhadores da mesma categoria, desde que exista diferença da prestação em razão de um ou mais daqueles factores.
II.O facto de um trabalhador estar mal qualificado, extravasando as funções que exerce as previstas para a categoria de chefe de serviço, não constitui fundamento para que os demais trabalhadores que têm atribuída essa mesma categoria, como é o caso do A., passem a auferir a retribuição atribuída àquele.

III.Haverá uma errada qualificação profissional de um trabalhador, mas tal não significa que haja qualquer violação do princípio “trabalho igual salário igual” em relação aos outros trabalhadores que tenham atribuída a mesma categoria, tanto mais que, pelo menos no caso do A., nem este põe em causa a correcção da sua qualificação profissional como chefe de serviços.

(Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial: ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.RELATÓRIO

I.1 No Tribunal do Trabalho de Lisboa, AA demandou a ORDEM dos MÉDICOS, em acção declarativa de condenação com processo comum, que veio a ser distribuída ao 1.º Juízo – 1.ª Secção, pedindo a condenação da Ré a atribuir-lhe “(..) a retribuição idêntica àquela que é paga ao trabalhador, com a categoria profissional de Chefe de Serviços, BB e a pagar ao A. a quantia já vencida a título de diferenças de retribuição no montante de € 100 985,98, sem prejuízo da que se vencer a partir de Fevereiro de 2012 e até decisão final, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4% ao ano e contados desde a citação da R. e até integral pagamento”.

(…)

Foi realizada audiência de partes, mas mostrando-se inviável a conciliação foi a Ré notificada para, no prazo e sob a cominação legal contestar, o que fez, em tempo.

Contrapõe a R., no essencial, que não é correcto que o A. tenha passado a ter a seu cargo o “Departamento de Recursos Humanos”, nomenclatura que não é sequer utilizada na sua estrutura. Quando foi promovido, em 1 de Abril de 1991, o A. passou a ser o responsável pelo Serviço de Pessoal da Secção, para em Março de 2008 passar a ser responsável pela Cultura e Biblioteca Histórica da Ré e a partir de Fevereiro de 2012 assumir as funções de responsável pela gestão dos recursos humanos do Conselho Nacional Executivo da R.

Quanto ao trabalhador BB, admite que foi contratado com a categoria de chefe de serviços e com retribuição superior, mas alega que tem habilitações académicas superiores e que desempenha funções com natureza bem distinta, as quais menciona.

Alega, ainda, que os demais funcionários que estão colocados na mesma categoria que o A., excepto o aludido BB, auferem precisamente a mesma retribuição base.

Conclui, sustentando que a diferença remuneratória resulta da diferente complexidade de funções e da diversa qualificação que as mesmas exigem, não havendo por isso violação das disposições legais invocadas pelo A., para assim pugnar pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador e, nos termos do art.º 49º, nº 2, do C.P.T., dispensada a elaboração do despacho que fixa a matéria assente e controvertida, na consideração da causa ser simples.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido observadas as formalidades legais, no âmbito da qual foi fixada a matéria de facto e proferido despacho fundamentando essa decisão.

I.2 Subsequentemente foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente, absolvendo a R. Ordem dos Médicos de todos os pedidos formulados pelo Autor.

I.3 Inconformado com essa decisão, o A. apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito próprios.

As alegações de recurso foram concluídas nos termos seguintes:

(…)

I.4 Pela recorrida foram apresentadas contra-alegações, finalizadas com conclusões seguintes:

(…)

I.5 O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.

O A. recorrente respondeu, no essencial reafirmando a argumentação expendida no recurso.

I.6 Foram colhidos os vistos legais.

I.7 Delimitação do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso (artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A e 684.º n.º 3 e artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil), as questões colocadas para a apreciação são as de saber se há erro de julgamento:
i) Da matéria de facto, relativamente ao facto provado sob o nº 18º e ao facto mencionado como não provado sob o n.º 2;
ii) Na aplicação do direito aos factos, se a decisão proferida viola o disposto no art.º 59º, nº 1, a), da CRP, 23º, nº 2, e 28º, nº 2, do Código do Trabalho de 2003 e 23º a 25º, do Código do Trabalho de 2009.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO

(…)

II.2 Reapreciação da matéria de facto

(…)

II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO

A questão que se coloca é a de saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, violando o disposto 59º, nº 1, a), da Constituição, 23º, nº 2, e 28º, nº 2, do Código do Trabalho de 2003 e 23º a 25º, do Código do Trabalho de 2009.

Vejamos as linhas essenciais da argumentação do A.

Embora reconheça que “Em abstracto nada impede que estabelecida uma retribuição mínima para determinada categoria profissional existam diferenças de retribuição numa mesma categoria profissional tratando de forma diferente o que é desigual em razão da natureza, qualidade e quantidade do trabalho prestado, como bem salienta a douta sentença recorrida” [conclusão 13], argumenta o A. que a “questão coloca-se já a nível diferente quando as retribuições são definidas em razão da categoria profissional, não em termos mínimos mas antes em termos fixos, isto é, desde que um trabalhador tenha atribuída uma categoria profissional tem direito a uma determinada retribuição de base, que é a mesma para todos os trabalhadores com a mesma categoria profissional” [conclusão 14].

Partindo desta premissa, argumenta o A. que “estando na R. a retribuição definida por referência à categoria profissional, não pode haver na mesma categoria retribuições de base distintas” [conclusão 19]. Se a R. admite um trabalhador para a mesma categoria do A. mas com retribuição superior a regra da igualdade de retribuição estabelecida na R. no mesmo valor para todos quantos integrem aquela categoria obriga à redefinição do valor da retribuição [conclusão 20].

Deste modo, na contratação do BB, se as suas funções eram de tal modo complexo e amplo, como a douta sentença recorrida veio a considerar impunha-se, ou a colocação em categoria superior à de Chefe de Serviços ou teria o Conselho Nacional Executivo que criar uma categoria – estatuto nova [conclusão 22].

E os pressupostos da igualdade a que se referem os arts. 59º, nº 1, a), da Constituição, 23º, nº 2, e 28º, nº 2, do Código do Trabalho de 2003 e 23º a 25º, do Código do Trabalho de 2009, foram apreciados pelo Conselho Nacional Executivo na definição das retribuições que cabem a cada categoria profissional e pela R. quando, ao contratar o BB, o incluiu na categoria de Chefe de Serviços criando por esse modo, uma nova retribuição desproporcionada que impõe, à luz daqueles normativos legais, que todos os outros Chefes de Serviço na R. passem a ter retribuição de base idêntica à auferida pelo BB.

II.2.1 Comecemos por determinar a lei aplicável, tendo em conta que a questão suscitada emerge da contratação do trabalhador BB, o que ocorreu em 1 de Junho de 2006 [cfr. facto 10.º].

No entender do A., desde então deveria ter passado a auferir a retribuição que aquele outro trabalhador passou a auferir.

Por conseguinte, a situação em apreço iniciou-se na vigência do Código do Trabalho de 2003 [Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto], e perdurou para além da mesma, já que entretanto ocorreu a revogação daquele diploma, com a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2009, em 17 de Fevereiro de 2009, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, [cfr. artigos 12.º n.º 1, al. a), e 14.º].

Assim, atento o disposto na parte final do n.º1 do art.º 7.º, da Lei n.º 7/2009, estando em causa “efeitos de factos ou situações”, passadas anteriormente ao início de vigência do novo Código do Trabalho e que não se encontram abrangidas pelas situações referidas no n.º5, do mesmo artigo, no primeiro período, isto é, o que mediou entre a celebração do contrato de trabalho com aquele trabalhador e a Ré e a entrada em vigor deste diploma, aplicar-se-á o anterior Código do Trabalho (03). Subsequentemente, ao período que ocorreu entre a entrada em vigor do novo código do trabalho, a 17 de Fevereiro de 2009, e Dezembro de 2010, cabe aplicar o novo código.

Assim, do Código de Trabalho de 2003, alega o A. terem sido violados o n.º 2, do art.º 23.º e o n.º2.º do art.º 28.º, artigos que passamos a transcrever na íntegra, realçando (a negrito) as normas concretamente invocadas:

Artigo 23º

Proibição de discriminação

1 - O empregador não pode praticar qualquer discriminação, directa ou indirecta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.

2 - Não constitui discriminação o comportamento baseado num dos factores indicados no número anterior, sempre que, em virtude da natureza das actividades profissionais em causa ou do contexto da sua execução, esse factor constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da actividade profissional, devendo o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.

3 - Cabe a quem alegar a discriminação fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos factores indicados no nº 1.

Artigo 28º

Condições de trabalho

1 - É assegurada a igualdade de condições de trabalho, em particular quanto à retribuição, entre trabalhadores de ambos os sexos.

2 - As diferenciações retributivas não constituem discriminação se assentes em critérios objectivos, comuns a homens e mulheres, sendo admissíveis, nomeadamente, distinções em função do mérito, produtividade, assiduidade ou antiguidade dos trabalhadores.

3 - Os sistemas de descrição de tarefas e de avaliação de funções devem assentar em critérios objectivos comuns a homens e mulheres, de forma a excluir qualquer discriminação baseada no sexo.

No que tange ao actual Código, o A. refere-se em bloco aos artigos 23.º a 25.º, sem precisar concretamente quais as normas desses artigos que alegadamente terão sido violadas.

Esse conjunto de normas respeita às “Disposições Gerais sobre igualdade e não discriminação”, conforme expressa o título da divisão I, subsecção III (igualdade e não discriminação), da secção II (sujeitos).

Em suma, pode dizer-se que o CT/09 disciplina essa matéria em termos substancialmente idênticos ao CT/03, designadamente no que diz respeito aos conceitos de discriminação, de trabalho igual, trabalho de valor igual (artigo 23.º), ao elenco dos factores de discriminação (artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1) e ao ónus da prova em caso de invocação de práticas discriminatórias (artigo 25.º, n.ºs5 e 6).

II.2.2 A posição do trabalhador na organização em que se integra define-se a partir daquilo que lhe cabe fazer, isto é, pelo conjunto de tarefas serviços e tarefas que formam o objecto da prestação de trabalho, determinando-se este a partir da actividade contratada com o empregador [art.º 111.º n.º1 /CT 2003; e, art.º 115.º 1, do CT/2009].

É neste contexto que surgem as referências à categoria do trabalhador e ao seu “direito à categoria”. Contudo, como aponta a doutrina, há que destrinçar entre os vários significados da designação categoria com efeitos juridicamente relevantes [Cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier Iniciação ao Direito do Trabalho, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 1999, pp. 171].

A definição da actividade contratada, isto é daquele conjunto de tarefas e serviços que formam o objecto do contrato de trabalho, pode ser feita por remissão para a categoria constante de regulamentação colectiva aplicável ou de regulamento interno da empresa [art.º 111.º n.º 2, CT/2003; e art.º 115.º n.º2, do CT/2009].

Neste caso, a categoria representa o objecto da prestação de trabalho. O género de tarefas e serviços a prestar pelo trabalhador são identificados com referência à qualificação de funções de um profissional-tipo.

Pelas palavras de António Monteiro Fernandes, “A categoria exprime, assim, um «género» de actividades contratadas- Há-de caber nesse género, pelo menos na sua parte essencial ou característica, a função principal que ao trabalhador está atribuída na organização (art.º 118.º), e que é já uma aplicação ou concretização da «actividade contratada». [Direito do Trabalho, 14.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 200].

Mas como elucida Maria do Rosário Palma Ramalho, “A situação jurídica do trabalhador no contrato de trabalho envolve também uma componente vertical, que tem a ver com a posição que ele ocupa no seio da organização do empregador. (..) Por força da componente organizacional do contrato de trabalho, o trabalhador integra-se necessariamente na organização do trabalhador e esse integração tem efeitos na sua situação juslaboral” [Direito do trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, pp. 459].

Aqui saímos do plano relativo à delimitação das funções que ao trabalhador cabe desempenhar, que dependem do objecto fixado no contrato, isto é da categoria objectiva, para se entender a referência a categoria já como reportada a um certo estatuto, nomeadamente retributivo. [cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, op. cit., pp. 174].

Em suma, consideradas essas diferentes vertentes, pode dizer-se, pelas palavras de Monteiro Fernandes, que “A categoria constitui um fundamental meio de delimitação de direitos e garantias do trabalhador – ou, noutros termos, de caracterização do seu estatuto profissional na empresa. É ela que define o posicionamento do trabalhador na hierarquia salarial, é ela que o situa no sistema de carreiras profissionais, é também ela que funciona como referencia para se saber o que pode e o que não pode a entidade empregadora exigir ao trabalhador” [Op. cit., pp. 200].

Justamente por isso, isto é, na medida em que reflecte a posição contratual do trabalhador e sinaliza o seu estatuto sócio profissional, a categoria é objecto de protecção legal e convencional que se evidencia, sobretudo, a três níveis: (i) na actividade a desenvolver; (ii) na remuneração devida; (iii) na hierarquização do trabalhador no seio da empresa [Ac. STJ de 12-03-2008, Proc.º n.º 07S4219, Sousa Grandão, disponível em www.dgsi.pt/jstj].

Expressão legal dessa protecção resulta dos disposto nos art.º 129.º n.º1, al. e), CT/2009 e, 122.º n.º 1 al. e), do CT/2003, ai estabelecendo a lei que o empregador não pode baixar a categoria ao trabalhador, consagrando, assim, o princípio da irreversibilidade da carreira.

Não se esgota aqui o sentido da expressão categoria, importando ainda atentar no conceito de “categoria normativa”.

Nos termos do art.º 1º do CT 03, e também do CT 09, “O contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (..)”, sendo que a Convenção Colectiva é um dos instrumentos de regulamentação colectiva negocial previstos no art.º 2.º n.ºs 1, 2 e 3, igualmente de ambos os diplomas.

Como escreve Bernardo da Gama Lobo Xavier, “A convenção colectiva pode ser definida como um acordo celebrado entre instituições patronais (empresários e associações), por um lado, e, por outro, associações representativas de trabalhadores, com o objectivo principal de fixar as condições de trabalho (salários, carreira profissional, férias, duração de trabalho, etc.) que hão-de vigorar para as categorias abrangidas” [Op. Cit, pp. 125].

No que respeita ao conteúdo das convenções colectivas de trabalho, há a considerar a distinção entre cláusulas obrigacionais e as cláusulas normativas [cfr. art.º 541.º do CT 03 e art.º 348.º do CT 09]. As primeiras definem regras de concertação e de relacionamento as relações entre as partes outorgantes, isto é, as instituições patronais e sindicais, que celebram a convenção colectiva. As segundas, destinam-se a fixar normativamente as condições de trabalho, fixando regras a que têm de obedecer os contratos de trabalho celebrados entre os empregadores e os trabalhadores abrangidos pela convenção. [Cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, op. cit. pp. 127/127].

Estas últimas, projectam a sua eficácia nos contratos individuais de trabalho celebrados entre as entidades empregadoras e os trabalhadores a quem se aplica a convenção, em termos análogos aos das leis.

Como se sabe, a lei não define categorias profissionais. Esse papel está remetido para a contratação colectiva, no âmbito da qual se estabelecem os quadros de categorias, classes, níveis ou graus profissionais, acompanhados da descrição das funções correspondentes, que se correlacionam com um certo estatuto ou tratamento contratual, desde logo, ao nível remuneratório. A categoria “(..) assume, assim, a natureza de conceito normativo – no sentido de que converte a realidade empírica, a da execução consensual de certos trabalhos, num título de acesso a certos direitos, benefícios e garantias pré-definidas, integradores de um estatuto profissional reivindicável pelo trabalhador” [António Monteiro Fernandes, op. cit, pp. 204]

Como também elucida Maria do Rosário Palma Ramalho, “O conceito-chave para apreciar os elementos de inserção organizacional no contrato de trabalho na situação jurídica do trabalhador é ainda o conceito de categoria. (..) são relevantes para o recorte da posição do trabalhador na organização empresarial a categoria normativa (ou categoria-estatuto), denominação formal correspondente á função desempenhada pelo trabalhador, dada pelo instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável ou pelo regulamento de empresa em vigor; é a categoria interna à empresa, que define a posição concretamente ocupada pelo trabalhador na hierarquia empresarial” [Op. cit., pp. 459].

Reportando-se igualmente à categoria do trabalhador, no sentido de categoria normativa, Bernardo da Gama Lobo Xavier escreve que “Tratar-se-á da posição em que o prestador de trabalho se encontra por determinação da regulamentação colectiva aplicável, pela correspondência das suas funções ou posto de trabalho a uma dada «categoria» ou «classe», relevante para efeitos de hierarquia salarial e outros. (..) Categoria, nesta acepção, significa, pois, uma designação à qual se reporta um estatuto próprio de acordo com o prescrito por referência aos quadros, descritivos e tabelas dos instrumentos de regulamentação colectiva. Neste sentido se poderá falar de um verdadeiro direito à categoria ou qualificação (..).Estaremos assim em presença de categoria normativa ou estatutária” [op. cit. pp. 172].

A classificação profissional atribuída pelo empregador ao trabalhador, porque “(..) redunda na fixação de direitos e expectativas, está sujeita a controlo externo, nomeadamente judicial, que obedece a um critério único – o de privilegiar a função efectiva sobre a designação categorial com vista à polarização do estatuto do trabalhador em causa” [António Monteiro Fernandes, Op. cit., p. 205].

De tudo isto retira-se, desde logo, uma ideia base consensual, isto é, ao admitir o trabalhador, a entidade empregadora está obrigada a atribuir-lhe uma das categorias convencionalmente fixadas, atendendo ao elenco das funções para as quais o contrata e fazendo-lhe corresponder a categoria em cujo descritivo funcional efectivamente se enquadrem.

A qualificação correcta na categoria assume-se como um direito do trabalhador, na medida em que lhe fixa direitos, nomeadamente, integrando-o numa determinada carreira e sendo o factor de referência para a determinação da retribuição devida em contrapartida da prestação da sua actividade.

Contudo, poderá acontecer não ser viável o enquadramento pleno em determinado descritivo.

Mas se assim for, então “(..) deve ser reconhecida a categoria cujo «descritivo» mais se aproxime do tipo de actividade concretamente prestado; se duas categorias parecem igualmente ajustadas, tem de atribuir-se a mais elevada (isto é, a correspondente a funções mais valorizadas, de entre as quês estão cometidas ao trabalhador. Estas directrizes reflectem (..) o primado de um critério normativo de classificação profissional – critério ao qual não pode substituir-se o da entidade empregadora. Convém ter presente, neste ponto, que a categoria significa, para o trabalhador, não só a garantia de um certo estatuto remuneratório, mas também um referencial indispensável à salvaguarda da sua profissionalidade” [António Monteiro Fernandes, Op. cit., p. 211].

Por outras palavras, escreve-se no Acórdão de 12-03-2008, do Supremo Tribunal de Justiça, “(..) a categoria profissional deve corresponder ao núcleo essencial das funções a que o trabalhador se vinculou legal ou contratualmente, não sendo necessário que exerça todas as funções que a essa categoria correspondem. O apelo ao “núcleo essencial” ou à “actividade predominante” constitui o parâmetro atendível quando o trabalhador exerça diversas actividades enquadráveis em diferentes categorias profissionais. Ademais, em caso de dúvida, deve o trabalhador ser classificado na categoria mais elevada que se aproxima das funções efectivamente exercidas. [Proc.º n.º 07S4219, Sousa Grandão, disponível em www.dgsi.pt].

Este é, desde há muito, o entendimento pacífico e uniforme da jurisprudência dos Tribunais superiores, como o ilustram, entre outros, os Acórdãos seguintes: do STJ, de 23-05-2001, processo n.º 01S266, ALMEIDA DEVEZA; e, de 23-02-2012, processo n.º 4535/06.3TTLSB.L1.S1, SAMPAIO GOMES; desta Relação e secção, de 27-07-2001, processo n.º 0036604, FERREIRA MARQUES; de 26-04-2001, processo n.º 0013434, SEARA PAIXÃO: de 22-06-2005, processo n.º 4085/2005-4, FERREIRA MARQUES; de18 de Abril de 2012, processo n.º 26451/09.7T2SNT.L1, ISABEL TAPADINHAS; e, de 10-2012, processo n.º 3473/10.0TTLSB.L1, JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO.

II.2.3 Revertendo ao caso, como facilmente se compreende o fulcro da questão não consiste na discordância do A. quanto à sua qualificação na categoria profissional de Chefe de Serviços.

O que ele põe em causa é o valor da retribuição base fixado para esta categoria, a partir de Janeiro de 2006, pelo facto de um outro trabalhador – BB – ter sido então admitido com a mesma categoria profissional de chefe de serviço, mas sendo-lhe atribuída retribuição superior.

Na sua perspectiva, atenta essa diferença de retribuições base, ele deveria também ter passado a auferir aquele valor mais elevado.

A alegada violação dos normativos invocados, tendo à cabeça o art.º 59.º n.º1 do CRP, resultará do facto de a R. não ter passado a pagar-lhe a retribuição que passou a pagar àquele trabalhador.

Vejamos então.

O art.º 59.º n.º1, al. a), da CRP, estabelece que “todos os trabalhadores”, sem discriminação, têm direito “à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”.

Afirmam-se, assim, dois princípios respeitantes ao salário: o da equidade e o da suficiência.

Quanto ao primeiro, que é o que aqui releva, o mesmo tem consagração expressa quer no CT de 2003 quer no de 2009, respectivamente nos artigos 263.º e 270.º, com uma ligeira alteração de redacção neste último, ao ter-lhe sido acrescentado na parte final a expressão “ou de valor igual”, para assim estabelecer a norma o seguinte:

- «Na determinação do valor da retribuição deve ter-se em conta a quantidade, natureza e qualidade do trabalho, observando-se o princípio de que, para trabalho igual ou de valor igual, salário igual».

Convém notar, pela sua relevância para a interpretação e aplicação do princípio, que o legislador veio reforçar a ideia de que devem “deve ter-se em conta a quantidade, natureza e qualidade do trabalho”.

A propósito deste princípio, Monteiro Fernandes escreve o seguinte:

- “Ele significa, imediatamente, que não pode, por nenhuma das vias possíveis (contrato individual, convenção colectiva, regulamentação administrativa, legislação ordinária) atingir-se o resultado de, numa concreta relação de trabalho, ser prestada retribuição desigual da que seja paga, no âmbito da mesma organização, como contrapartida de «trabalho igual».(..) As raízes deste princípio desenvolvem-se em várias direcções: mergulham, em primeiro lugar, no princípio geral da igualdade, consagrado no art.º 13.º da CRP; depois, e já no plano específico das situações laborais, prendem-se no princípio da igualdade de tratamento, que, por seu turno, deriva do reconhecimento da posição de supremacia e do poder («autoridade», diz o art.º 11.º CT), e, enfim, entrelaçam-se com as do princípio da não-discriminação, afirmado, em geral, pelo art.º 13.º/2 da CRP, e retomado, justamente a propósito da retribuição do trabalho, pelo mesmo preceito constitucional em que tem assento a equidade salarial [art.º 159.º /1 a)].

O sentido geral do princípio é este: uma idêntica remuneração deve ser correspondida a dois trabalhadores que, na mesma organização (ou seja, sob as ordens de uma mesma entidade empregadora) ocupem postos de trabalho «iguais», isto é, desempenhem tarefas qualitativamente coincidentes, em idêntica quantidade (duração). Por outras palavras, salário igual em paridade de funções, o que implica, simultaneamente, identidade de natureza da actividade e igualdade de tempo de trabalho. Assim, a retribuição aparece directamente conexionada à posição funcional do trabalhador na organização; o modo como ele se insere na concreta articulação de meios através da qual a empresa funcione confere-lhe um certo posicionamento relativo na escala se salários. A uma dada organização de trabalho corresponde uma definida «organização» de salários” [Op. cit., pp.469/470].

Pois bem, tal como o A. alega, ele e o trabalhador BB estão ambos qualificados com a categoria profissional de chefe de serviços e prestam a respectiva actividade durante o mesmo número de horas, mas auferem retribuição base com valores diferentes, sendo a deste trabalhador superior [factos 3, 9, 10, 12, 13 e 20].

Acontece que, pelo menos no ano de 2010, essa situação não se verificava apenas em relação ao A. Na secção regional sul e no conselho nacional executivo, a R. tem um total de seis trabalhadores qualificados com a categoria de chefe de serviço (incluindo o A. e aquele o trabalhador BB); e, em 2010, o A e os outros 4 auferiam a retribuição base de € 1 255,00, enquanto o trabalhador BB auferia valor superior (factos 20 e 21).

Contudo, o certo é que apesar de estarem ambos qualificados com a mesma categoria profissional de chefe de serviços, dos factos provados não resulta que em algum período, desde 2006 a 2012, as funções desempenhadas pelo A. e pelo trabalhador BB tenham sido coincidentes. De resto, nem tão pouco o A. alega seja o que for com esse propósito.

Justamente por isso, não se vê como neste quadro possa ter sido violado o princípio constitucional consagrado no art.º 59.º n.º 1 al. a) da CRP, e consequentemente, pelas razões que indicámos, dos aludidos artigos 263.º do CT 03 e 270.º do CT 09.

E, salvo o devido respeito, muito menos se vislumbra como possam ter sido violados o n.ºs 2, do art.º 23.º e o n.º2, do art.º 28.º do CT 03.

O n.º2, do art.º 23.º do CT de 2003, ao dizer “Não constitui discriminação o comportamento baseado num dos factores indicados no número anterior”, reporta-se expressamente aos casos em que possa haver discriminação “directa ou indirecta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical».

Este artigo é regulamentado pelo art.º 32.º do Regulamento do Código do Trabalho [Lei n.º35/2004, de 29 de Julho], definindo conceitos ali empregues, nos termos seguintes:

[1] Constituem factores de discriminação, além dos previstos no n.º1 do art. 23.º do Código do Trabalho, nomeadamente, o território de origem, língua, raça, instrução, situação económica, origem ou condição social.

[2] Considera-se:

a) Discriminação directa, sempre que, em razão de um dos factores indicados no referido preceito legal, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

b) Discriminação indirecta, sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar pessoas que se incluam num dos factores característicos indicados no referido preceito legal numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificada por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários;

c) Trabalho igual, aquele em que as funções desempenhadas ao mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade;

d) Trabalho de valor igual, aquele que corresponde a um conjunto de funções, prestadas ao mesmo empregador, consideradas equivalentes atendendo, nomeadamente, às qualificações ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado’.

Ora, da posição assumida pelo A. não resulta minimamente que funde o seu pedido em comportamento da R. baseado em qualquer um daqueles factores, sendo certo que se assim fosse, sobre ele recaia o ónus de alegar e provar factos para a fundamentar (n.º3, do mesmo artigo).

Como melhor se explica no sumário do Acórdão do STJ, de 22-04-2009:

(..)

(IV) Nos casos em que a acção tem por fundamento algum dos factores característicos da discriminação consignados no n.º 1, do artigo 23.º do Código do Trabalho de 2003 e no artigo 35.º do Regulamento do Código do Trabalho (Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho), ou outros equiparáveis, segundo o critério da igual dignidade sócio-laboral, o trabalhador que se sente discriminado não tem de alegar e demonstrar factos relativos à natureza, qualidade e quantidade das prestações laborais em comparação, pois que, provados os factos que integram o invocado fundamento, actua a presunção de que a diferença salarial a ele se deve, invertendo-se, apenas, quanto ao nexo causal presumido, o ónus da prova.

(V) Mas tem, em tais casos, de alegar e provar, além dos factos que revelam a diferenciação de tratamento, também, os factos que integram um daqueles factores característicos da discriminação.

(VI) Isto significa que a presunção de discriminação não resulta da mera prova dos factos que revelam uma diferença de remuneração entre trabalhadores da mesma categoria profissional, ou seja, da mera diferença de tratamento, pois, exigindo a lei que a pretensa discriminação seja fundamentada com a indicação do trabalhador ou trabalhadores favorecidos (artigo 23.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003), naturalmente, tal fundamentação há-de traduzir-se na narração dos factos que, reportados a características, situações e opções dos sujeitos em confronto, de todo alheias ao normal desenvolvimento da relação laboral, atentem, directa ou indirectamente, contra o princípio da igual dignidade sócio-laboral, que inspira o elenco de factores característicos da discriminação exemplificativamente consignados na lei».

[Processo n.º 08P3040, Vasques Dinis, disponível em www.dgsi.jstj]

No que tange ao art.º 28.º, nem tão pouco se concebe que possa aqui ter aplicação.

Com efeito, embora o n.º 1 enuncie que é assegurada a igualdade nas condições de trabalho “em particular quanto à retribuição”, da parte final resulta claramente que a igualdade a que se reporta é em função do sexo, ao dizer “entre trabalhadores de ambos os sexos”. E, o n.º2, ou seja, a norma alegadamente violada, refere-se a diferenciações retributivas que “não constituem discriminação se assentes em critérios objectivos”, mas reportando-se àquele n.º1, isto é, “entre trabalhadores de ambos os sexos”.

No que respeita às disposições do CT 2009, como se disse o A. nem sequer cuidou de indicar quais as normas em concreto que alegadamente foram violadas.

Não obstante, com particular relevo para a questão em apreço, importa atentar no art.º 23.º, com a epígrafe “Conceitos em matéria de igualdade e não discriminação”, nomeadamente no disposto nas alíneas c) e d), do n.º1, de onde resulta, que para efeitos do Código considera-se [al c)] Trabalho igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade” e [al.d)] “Trabalho de valor igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são equivalentes, atendendo nomeadamente à qualificação ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado”.

Como cremos que já se percebeu, estas noções correspondem às antes enunciadas no art.º 32.º do RCT (03), relevando para feitos da interpretação dos art.º 263.º CT/03 e do correspondente art.º 270.º CT/09.

Por conseguinte, sendo certo que a aplicação do princípio para trabalho igual salário igual pressupõe que sejam tidas em conta “a quantidade, natureza e qualidade do trabalho”, tal significa que é admitida a atribuição de salários diferentes a trabalhadores da mesma categoria, desde que exista diferença da prestação em razão de um ou mais daqueles factores.

Dito através das palavras de Monteiro Fernandes “os critérios fixados no art.º 59.º CRP (quantidade, natureza, qualidade do trabalho) podem conduzir a uma diferenciação de tratamento remuneratório, assim objectivamente justificada; essa diferenciação tanto pode resultar da qualidade, com da natureza do trabalho, ainda que dentro da mesma categoria” [Op. cit, p. 474/475].

Esse é, também, o entendimento pacífico da jurisprudência, como o elucida o Acórdão do STJ de 12-10-2011, em cujo sumário se pode ler:

I – O princípio da igualdade (art. 13.º da C.R.P.), desenvolvido no art. 59.º/1 da mesma C.R.P., reporta-se a uma igualdade material, que não meramente formal, e concretiza-se na proscrição do arbítrio e da discriminação, devendo tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual.

II – O princípio do ‘trabalho igual, salário igual’, corolário daquele, pressupõe a mesma retribuição para trabalho prestado em condições de igual natureza, qualidade e quantidade, com proibição da diferenciação arbitrária, materialmente infundada, só existindo violação do princípio quando a diferenciação salarial assente em critérios apenas subjectivos.

[Proc.º n.º 343/04.4TTBCL.P1.S1, Fernandes da Silva, disponível em ww.dgsi.jstj]

Finalmente, importa deixar claro que estes mesmos princípios são afirmados na jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos arestos a que o A. faz apelo, como se pode constar neste extracto do Acórdão n.º 584/98, de 16 Nov 2005 [disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos], onde se escreve o seguinte:

- “Como o Tribunal disse no acórdão n.º 584/98:

«O artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa – ao preceituar que ‘todos os trabalhadores [ ...] têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna’ – impõe que a remuneração do trabalho obedeça a princípios de justiça.

Ora a justiça exige que quando o trabalho prestado for igual em quantidade, natureza e qualidade seja igual a remuneração. E reclama (nalguns casos apenas consentirá) que a remuneração seja diferente, pagando-se mais a quem tiver melhores habilitações ou mais tempo de serviço. Deste modo se realiza a igualdade pois que, como se sublinhou no Acórdão n.º 313/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol. T. II, pp. 917 e segs.), do que no preceito constitucional citado se trata é um direito de igualdade. Escreveu-se neste aresto:

‘O direito de que aqui se trata é um direito de igualdade – mas de uma igualdade material que exige que se tome sempre em consideração a realidade social em que as pessoas vivem e se movimentam – e não de uma igualdade meramente formal e uniformizadora (cf. Francisco Lucas Pires, Uma Constituição para Portugal, Coimbra, 1975, pp. 62 e segs.).

Uma justa retribuição do trabalho é, no fundo, o que os princípios enunciados no preceito visam assegurar: a retribuição deve ser conforme à quantidade, natureza e qualidade do trabalho; deve garantir uma existência condigna e a trabalho igual – igual em quantidade, natureza e qualidade – deve corresponder salário igual.

O princípio ‘para trabalho igual salário igual’ não proíbe, naturalmente, que o mesmo tipo de trabalho seja remunerado em termos quantitativamente diferentes, conforme seja feito por pessoas com mais ou menos habilitações e com mais ou menos tempo de serviço, pagando-se mais, naturalmente, aos que maiores habilitações possuem e mais tempo de serviço têm. O que o princípio proíbe é que se pague de maneira diferente a trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho, têm iguais habilitações e o mesmo tempo de serviço.

O que, pois, se proíbe são as discriminações, as distinções sem fundamento material, designadamente porque assentes em meras categorias subjectivas.

Se as diferenças de remuneração assentarem em critérios objectivos, então elas são materialmente fundadas e não discriminatórias [...]».

Concluindo, em face dos princípios enunciados não vimos que exista fundamento para o recorrente pretender que estando na R. a retribuição definida por referência à categoria profissional, não possa haver na mesma categoria retribuições de base distintas.

Acresce, ainda, que tão pouco se provou, desde logo porque nem foi fundamento invocado pelo A., que as funções exercidas por ele e pelo trabalhador BB ao serviço da R. são equivalentes, atendendo à quantidade, natureza e qualidade de cada uma delas.

Na verdade, o que aparentemente se pode concluir face à matéria de facto provada, é que o trabalhador BB estará mal qualificado, extravasando as funções que exerce as previstas para a categoria de chefe de serviço, isto é, deveria ter-lhe sido atribuída categoria superior à do A. e dos demais chefes de serviço.

De resto, como o próprio A. até o reconhece (conclusão 22).

Mas se assim for, o facto de esse trabalhador estar mal qualificado, não constitui fundamento para que os demais trabalhadores que têm atribuída a categoria de chefes de serviço, como é o caso do A., passem a auferir a retribuição atribuída àquele.

Haverá uma errada qualificação profissional de um trabalhador, mas tal não significa que haja qualquer violação do princípio “trabalho igual salário igual” em relação aos outros trabalhadores que tenham atribuída a mesma categoria, tanto mais que, pelo menos no caso do A., nem este põe em causa a correcção da sua qualificação profissional como chefe de serviços.

Acompanha-se, assim, a sentença que, após trilhar o mesmo caminho interpretativo sobre o princípio “para trabalho igual salário igual”, na aplicação do direito aos factos, bem concluiu o seguinte:

- «(…) os factos provados são claramente insuficientes para se poder dar como assente que o trabalho prestado pelo autor é igual ou objectivamente semelhante, no seu todo, ao do trabalhador BB relativamente ao qual se considera discriminado, só isto afastando a reclamada paridade retributiva.

Ao invés, apurou-se que em Junho de 2006 o autor era responsável pelo serviço de pessoal da secção regional do sul e do conselho nacional executivo da ré e BB desempenhava funções de coordenador nacional do parque e sistema informático e de responsável pelo sector informático da secção regional sul da ré (pontos 2º, 3º, 4º, 10º e 11º dos factos provados), pelo que a matéria de facto apurada até indicia que o trabalho produzido por estes dois trabalhadores se diferencia em termos de qualidade (responsabilização, exigência, complexidade, técnica e conhecimentos).

Donde se conclui que os factos provados são manifestamente insuficientes para se concluir que o trabalho prestado pelo autor é igual ou objectivamente semelhante em natureza, qualidade e quantidade ao trabalho prestado por BB.

E são também insuficientes para se poder afirmar que o trabalho de um e de outro é de valor igual, no sentido de corresponder a um conjunto de funções, consideradas equivalentes, atendendo, nomeadamente, às qualificações ou experiências exigidas, às responsabilidades atribuídas e ao esforço físico e psíquico.

Em suma, a matéria de facto disponível não contém factos concretos que permitam estabelecer comparação entre a actividade desenvolvida pelo autor e BB, ao serviço da ré, por forma a suportar um juízo sobre a igualdade do trabalho prestado e do respectivo valor, não bastando para tal a prova de que ambos detinham a categoria de chefe de serviços.

E porque o ónus da alegação e prova destes factos competia ao autor, improcede o pedido de retribuição igual formulado na acção».

Concluindo, não se reconhece razão ao recorrente, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura.

***

Considerando o disposto no art.º 446.º n.º1 e 2, do CPC, a responsabilidade pelas custas recai sobre a recorrente que, atento o decaimento, a elas deu causa.


III.DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão recorrida.



Custas pela recorrente.



Lisboa, 11 de Julho de 2013



Jerónimo Freitas



Francisca Mendes


Maria Celina de J. Nóbrega



http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f9f8a7d82f3c6ad680257ba9003d1101?OpenDocument


quinta-feira, 18 de julho de 2013

PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 10.07.2013


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
130/10.0GAMTR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Nº do Documento: RP20130710130/10.0GAMTR.P1
Data do Acordão: 10-07-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .

Sumário: I – O ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo.
II – O que se proíbe é que um comportamento espácio-temporalmente caracterizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.
III – O crime de Violência doméstica [art. 152.º do CP] consuma-se com a prática do último ato de execução e assim, qualquer facto que integrasse o pedaço de vida do agente e da vítima e que não fora conhecido no processo já definitivamente julgado não pode mais ser conhecido em novo processo, pois que isso comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem.
Reclamações:

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 130/10.0GAMTR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Montalegre

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
B recorreu da sentença proferida no processo em epígrafe que o condenou, como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e a pagar a C a quantia de € 3.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos e o absolveu da prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.os 152.º-A, n.º 1, alínea a), 14.º, n.º 1 e 26.º, todos do Código Penal, pedindo que a mesma seja revogada e substituída por acórdão que o absolva o arguido dos factos que lhe foram imputados e do pedido de indemnização civil deduzido, de acordo com o princípio ne bis in idem, em conformidade com o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa ou, caso assim se não entenda, que seja alterada a matéria de facto provada que descriminou e se considere a mesma como não provada, absolvendo-se o mesmo do crime em que foi condenado e do pedido de indemnização civil, concluindo a motivação com as seguintes conclusões:
………………………
………………………
………………………
………………………

Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido da resposta ao recurso apresentada pelo Exm.º Sr. Procurador Adjunto na Instância recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do recorrente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:
Da acusação pública.
1. O arguido e a assistente C contraíram matrimónio, entre si, em 31 de Julho de 2004, o qual foi dissolvido por divórcio em 2 de Junho de 2009.
2. Do casamento entre ambos nasceu, em 25 de Janeiro de 2005, o filho D......
3. Após o casamento o arguido ficou a residir na Rua …, n.º …, em …., Montalegre, enquanto a assistente, por razões profissionais, fixou residência em Mirandela, reunindo-se apenas ao fim-de-semana, quer na casa de Montalegre, quer na de Mirandela.
4. Em 1 de Março de 2008, o casal fixou definitivamente residência na Rua do …, n.º …, em …, Montalegre, até à data da separação ocorrida em 20 de Abril de 2009.
5. Em dia não determinado da última semana de Dezembro de 2005, a assistente abordou o arguido sugerindo-lhe que ambos fossem com uns amigos festejar a passagem de ano numa discoteca, ao que este logo respondeu que não, justificando que “mulher casada não vai para a discoteca”.
6. Já no interior da residência de ambos em …., a assistente insistiu e perguntou-lhe “porquê?”, tendo o arguido reagido de imediato, arremessando com o comando da televisão que tinha na sua mão na direcção daquela, atingindo-a com o mesmo na face junto ao olho direito, provocando-lhe um hematoma e hemorragia ocular.
7. Em data não concretizada de Novembro de 2007, pelas 01h00m, quando a assistente se aprestava para entrar na sua residência em Mirandela (referida em 3), vinda de uma formação que havia leccionado em Mogadouro, das 20h00m às 00h00m, foi surpreendida pelo arguido que ali se encontrava e logo lhe desferiu uma bofetada na face, ao mesmo tempo que lhe perguntava “isto são horas de chegar a casa?”.
8. Na sequência de rumores de que o arguido teria uma relação extraconjugal, em 1 de Março de 2008 a assistente decidiu deixar o seu emprego e casa em Mirandela e, juntamente com o seu filho D....., mudar-se para Montalegre, passando todo o agregado a residir na Rua do …, n.º …, Freguesia de …..
9. No dia 7 ou 8 de Abril de 2008, no interior da casa de morada de família, mais concretamente no quarto do menor D…., em hora não determinada mas seguramente após o jantar, o arguido agarrou a assistente pelos braços e dirigiu-se-lhe dizendo “o meu pai gosta mais de ti do que de mim”, ao que esta respondeu que não.
10. Acto contínuo, o arguido sacudiu a assistente violentamente e depois empurrou-a levando a que caísse desamparada em cima da cama onde o seu filho dormia.
11. Em data não concretamente de Março de 2009, o denunciado decidiu ir a uma feira em França, facto de que não deu conhecimento à assistente, tendo esta ficado a saber de tal viagem através de uma entrevista, que aquele concedeu, a que a assistente assistiu na internet.
12. Poucos dias depois, tendo o arguido regressado a Portugal, em data e hora que não foi possível precisar, no interior da casa de morada de família, a assistente questiono-o pelo motivo pelo qual tinha viajado sem lhe perguntar a si e ao filho se queriam ir com ele.
13. Desagradado por ter sido assim confrontado, de imediato o arguido agarrou a assistente pelos braços e sacudiu-a violentamente e por fim empurrou-a contra a parede da sala junto à lareira.
14. Em dia não concretamente apurado, compreendido entre 1 de Março de 2008 e 20 de Abril de 2009, à noite, no interior da casa de morada de família, a assistente, convencida de que o arguido já se encontrava a dormir, decidiu ligar o seu computador na sala e aceder à internet, procurando que aquele não se apercebesse pois já antes a havia proibido de tal actividade.
15. Logo o arguido surgiu na sala e, em tom exaltado, confrontou a assistente perguntando-lhe “o que estás a fazer?” e de imediato ordenou-lhe “vai já para a cama”, ao que esta obedeceu receando o que o mesmo lhe pudesse fazer.
16. Pelo menos no período compreendido entre 01 de Março de 2008 e 20 de Abril de 2009 o arguido não permitia que a assistente utilizasse o seu computador com a justificação de que esta pretendia aceder à internet para falar com o amante.
17. De igual forma, nesse período, o arguido verificava quase diariamente o telemóvel da assistente a fim de se inteirar das pessoas com quem a mesma comunicava.
18. Também nesse período era frequente o arguido trazer consigo ou esconder as chaves de ambos os veículos do casal a fim de se assegurar que a assistente não saia para longe, motivando a que esta, por diversas vezes, tivesse que se deslocar a pé a casa dos seus pais, que dista cerca de três quilómetros da sua.
19. Ainda nesse período o arguido tinha por hábito rebaixar e humilhar a assistente, na frente do filho de ambos, chamando-a não pelo seu nome mas apelidando-a de “cabrita”, “galinha” ou “peixeira”.
20. Sendo que, quando se encontravam sozinhos, era frequente apodá-la de “vaca”, “puta” e “porca”.
21. Do mesmo modo, no período compreendido entre 1 de Março de 2008 e 20 de Abril de 2009 nunca o arguido acompanhou ou passeou com a assistente, apesar da mesma, por diversas vezes, lhe ter pedido para a levar a passear ao Domingo, ao que o mesmo respondia “para quê? Tu és feia, pareces um bicho dos buracos”, ou então “tu és tão esquisita”.
22. Quando a assistente se mudou para Montalegre em 1 de Março de 2008 em situação de desemprego, era frequente o arguido dirigir-se a si dizendo “não serves para nada, estás aqui por casa sem fazer nada, vai trabalhar”.
23. Saturada com o rumo que a relação tomava, a assistente decidiu sair de casa no dia 20 de Abril de 2009, levando consigo o seu filho, passando ambos a residir na casa dos seus pais, sita na Rua …, n.º …, …., Montalegre.
24. Em data não concretamente apurada de Janeiro ou Fevereiro de 2010, o arguido dirigiu-se à casa da assistente, então a residir com o seu filho na Rua …., em Montalegre, e aí bateu à porta exigindo entrar para visitar o menor.
25. A assistente abriu a porta e informou o arguido de que não poderia entrar, ao que este logo reagiu agarrando-lhe o nariz com a mão, apertando-o e depois empurrando-a para trás, desta forma lhe causando uma hemorragia nasal.
26. Entre Dezembro de 2009 e Maio de 2010, a assistente manteve um relacionamento amoroso com E…., indivíduo de nacionalidade brasileira e raça negra.
27. Relacionamento, esse, que o arguido nunca aceitou, fazendo questão de o afirmar perante a assistente durante o período em que o mesmo decorreu e até já depois de ter terminado, quer pessoal, quer telefonicamente, ou mesmo através de mensagens de texto enviadas para o seu telemóvel, dirigindo-lhe expressões como “não tens vergonha de andar com esse preto” e “és uma suja, uma vaca, és uma vergonhosa”.
28. No dia 13 de Junho de 2010, após as 20 horas, no parque junto ao Rio Cávado, em Montalegre, o arguido, na presença do filho, apodou a assistente de “vaca”, “porca”, e dirigiu-lhe a expressão “não há nenhum cão que te queira”, afirmando também que esta queria o menor para “o entregar aos avós para depois meter quem quiser em casa”.
29. Em datas não concretamente apuradas do Verão de 2010, o arguido dirigiu-se, pelo menos duas vezes, ao local de trabalho da assistente, sito nas instalações do “…..”, em Montalegre, e dirigiu-lhe as expressões “és mesmo feia, só um preto é que podia querer”, “és uma puta” e “és uma vaca”, declarando ainda que a mesma era uma “engenheira de merda”, numa alusão à sua formação académica em engenharia florestal e agro-industrial.
30. Em data e hora não concretamente apuradas do Verão de 2010, a assistente decidiu passear até ao parque de campismo de Penedomes, Montalegre, e quando aí se encontrava sozinha a desfrutar do local, foi interpelada pelo arguido que lhe perguntou o que estava ali a fazer, ao que aquela respondeu que não era nada consigo.
31. Perante isto, e num tom exaltado, logo o arguido tratou de a apodar de “és uma puta, és uma vaca”, questionando-a ainda sobre “quem é que vem aqui ter contigo? Agora já não vem porque estou aqui eu”.
32. Em data não concretamente apurada posterior a 20 de Abril de 2009, cerca das 10h30, a assistente circulava no seu veículo automóvel na Estrada Nacional n.º 103, no sentido Aldeia Nova - S. Vicente.
33. A cerca de 30 metros do cruzamento de S. Vicente encontrava-se o arguido no interior do veículo automóvel de marca “Seat”, modelo “Ibiza”, de cor bordeaux, propriedade do seu pai, imobilizado junto à berma no sentido S. Vicente - Aldeia Nova.
34. Assim que avistou a assistente a aproximar-se, logo o arguido iniciou a sua marcha, saindo da sua via de trânsito e indo ocupar a hemi-faixa onde seguia a assistente, obrigando a que esta, para evitar a colisão, tivesse que desviar o seu veículo para a berma, enquanto o arguido se ria e apontava-lhe de seguida o dedo indicador de forma ameaçadora.
35. Os factos descritos em 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, foram praticados pelo arguido com o propósito concretizado de deixar C em estado de constrangimento e de, pelo terror permanente, a levar a ser-lhe absolutamente submissa e a comportar-se do modo que ele, arguido, entendia conveniente.
36. Temia C, considerando as atitudes do arguido, que este pudesse alguma vez atingir-lhe de forma grave a integridade física ou tirar-lhe a vida.
37. Vivia também C vexada pelos nomes com que o arguido a apodava, com as imputações que lhe dirigia e com as condutas que tinha em relação a si.
38. Não se coibiu o arguido de levar a cabo os factos descritos em 19 e 28, na presença do seu filho D....., praticados quando este tinha entre os 3 e os 5 anos de idade.
39. Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de vexar, amedrontar e manter num permanente estado de constrangimento C, indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que dessa relação para si advinham quanto à mesma, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente.
40. O arguido tinha perfeito conhecimento que os seus comportamentos eram legalmente proibidos.

Do pedido de indemnização civil.
41. Em virtude da actuação do arguido, supra descrita, a assistente sentiu medo, ansiedade, vergonha, inquietação, desgosto, humilhação e tristeza, sentindo-se angustiada e magoada na sua honra, reputação e consideração social e profissional.
42. E passou a sofrer de baixa auto-estima e depressão, o que conduziu a diversas tentativas de suicídio.
43. A última tentativa de suicídio por parte da assistente teve lugar em 5 de Junho de 2011 e levou ao seu internamento, na Unidade de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Vila Real, onde permaneceu desde 5 de Junho de 2011 até 13 de Junho de 2011.
44. Em virtude da actuação do arguido supra descrita, a assistente teve necessidade de recorrer a ajuda psicológica e psiquiátrica, sendo actualmente acompanhada por um psicólogo e tem, com frequência, consultas de psiquiatria.
45. E toma medicação há cerca de três anos.
46. A assistente era uma pessoa alegre, bem-disposta, divertida, tendo-se transformado numa pessoa triste, inquieta, nervosa e depressiva.
47. Em virtude da actuação do arguido supra descrita, a assistente, ainda hoje, dorme mal, acorda muitas vezes durante a noite em sobressalto, porque tem pesadelos com as situações que vivenciou.

Mais se apurou que,
48. O arguido é casado e vive com a sua esposa em casa dos seus pais.
49. O arguido é técnico de construção civil e aufere a quantia mensal de € 650,00.
50. A esposa do arguido trabalha e aufere a quantia mensal de cerca de € 485,00.
51. O arguido suporta o pagamento da quantia mensal de € 140,00, relativa à pensão de alimentos do filho D…...
52. E suporta também o pagamento de duas prestações de empréstimos que contraiu, nos montantes mensais de € 240,00 e € 300,00.
53. O arguido tem, como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade.
54. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

1.2. Factos julgados não provados:
A. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 12 e 13 o arguido deitou as mãos aos cabelos da assistente, puxando-os.
B. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 28, o arguido apodou a assistente de “miserável”, e disse-lhe que devia estar presa por tentar matá-lo.
C. Desde a data da separação do casal, ocorrida em 20 de Abril de 2009, é comum, durante os convívios com o seu filho, o arguido denegrir a imagem e reputação da assistente referindo-lhe que “a tua mãe é uma maluca” e “a tua mãe anda sempre com a cabeça no ar”.
D. Quando o arguido se exalta com o filho por algum motivo, é comum dizer-lhe “és reles como a tua mãe” ou “tens sangue da Aldeia Nova”, numa alusão pejorativa à aldeia de onde a assistente é natural.
E. O filho do arguido e da assistente, D....., ao presenciar os factos descritos em 19 e 28, ficava aterrorizado e transtornado, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar, desde logo, temendo que aquele pudesse atingir de forma grave a integridade física ou a vida da sua mãe C.
F. O arguido agiu do modo descrito em 39, sabendo, sem com isso se importar, que assim o fazia também relativamente ao filho D....., indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que dessa relação para si advinham quanto ao mesmo, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente.
………………………
………………………
………………………
………………………
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. Conforme vem sendo pacificamente entendido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades da sentença a que se reporta o art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[2] Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio, diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª Os crimes julgados neste processo já o haviam sido, definitivamente, no processo n.º 677/11.1TACH.P1 e, nesse caso, revogada sentença por violação do princípio ne bis in idem acolhido no art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República?
2.ª Não sendo esse o caso, as declarações da assistente C..... e os depoimentos das testemunhas F….., G….., H….., I….. e J…… e a motivação dos seus depoimentos feita na sentença proferida no processo n.º 677/11.1TACH.P1 pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Chaves impunham que tivessem sido julgados não provados os factos julgados provados enumerados de 5 a 47 e o recorrente absolvido da prática do crime de violência doméstica e do pedido de indemnização civil por que foi condenado?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas.
A lei tipifica como crime de violência doméstica o comportamento de quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ex-cônjuge, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.[3]
Por outro lado, o art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa dispõe «que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.»

Muito sinteticamente diremos que o ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica[4] e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado.[5]
Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal,[6] a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez.[7] Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal,[8] mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal[9] e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.[10] Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Na verdade, como refere Henrique Salinas, «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.»[11] O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.[12] Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica.

Olhando agora ao crime de violência doméstica, vimos que a lei o tipifica como o comportamento de quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ex-cônjuge, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.[13]
Resultando agora evidente que um só comportamento bastará para integrar o crime de violência doméstica, certo é que a jurisprudência também vem salientando que só assim é quando assuma uma muito intensa crueldade, insensibilidade ou desprezo pela consideração pessoal do outro que só por si é ostensivamente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge.[14]
Sendo regra da violência doméstica consubstanciar-se num conjunto reiterado de comportamentos, naturalmente que então todos e cada um dos actos singulares perpetrados pelo agressor na vítima integram esse crime, nele se exaurindo[15] ou esgotando e não evidenciando relevância própria para o preenchimento da tipicidade, tal-qualmente como cada um dos actos levados a cabo pelo traficante no crime de tráfico de estupefacientes. Daí decorre, por um lado, que sendo doutrinalmente tido como um crime habitual ou reiterado,[16] o crime de violência doméstica consuma-se com a prática do último acto de execução[17] e, por outro, na senda do que atrás dissemos,[18] que qualquer facto que integrasse esse pedaço de vida do agente e da vítima e que não fora conhecido no processo já definitivamente julgado não pode mais ser conhecido em novo processo, pois que isso comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem.[19]

Aqui chegados, podemos agora baixar a nossa atenção ao caso sub iudicio.
Assim, no processo n.º 677/11,[20] no que ora interessa considerar, esta Relação do Porto confirmou, em 23-01-2013, o julgamento da sentença proferida pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Chaves que julgou:
• provado que:
No dia 11-09-2011 a ora assistente assistida nas urgências da CHTMAD/Unidade de Chaves e de novo internada no serviço de Psiquiatria do Hospital de Vila Real, que sofre de depressão profunda, além de medo e irritabilidade constante, choro, fadiga mental mas também física e baixa e auto estima, para o que já se tentou suicidar várias vezes, a última das quais em 5 de Junho de 2011, tendo estado internada durante nove dias no Serviço de psiquiatria do CHTMAD, encontra-se a ser acompanhada por psicólogo, além de consultas psiquiátricas regulares no Centro Hospitalar de Vila Real, onde á esteve internada várias vezes, sempre foi uma pessoa agradável, amável, simpática, com gosto pela vida, tendo-se transformado numa pessoa extremamente agitada, inquieta, nervosa, depressiva e triste;

• e não provado que:
Durante o matrimónio e mesmo depois do divórcio, o arguido ofendeu, insultou e intimidou a ofendida, o que aconteceu designadamente no dia 11 de Setembro de 2011, entre as 10h30 e as 11h, quando esta se encontrava na sua residência, sita na Rua …., Edif. …., …, ….. 5400 Chaves, em que através do seu telemóvel com o cartão SIM n2 936500574, em conversa com o filho menor de ambos para o telemóvel com o cartão SIM nº 9382……, dirigindo-se ao menor mas referindo-se à ofendida disse: “avisa a tua mãe que quero a bicicleta de Mirandela ou ela e o namorado vão ter graves problemas”, “a tua mãe devia estar mesmo à rasca para se casar com um velho’ “a mãe está maluca”, “a mãe anda com todos, vou tirar-lhe tudo vai ficar na miséria”, ‘diz à mãe que vais viver para minha casa.”
O arguido tem vindo a aproveitar-se do facto de ter comprado um telemóvel ao filho para, depois da separação e divórcio, continuar a importunar e pressionar a ofendida, ligando para o menor, várias vezes ao dia a perguntar onde está a mãe e o que está a fazer.
A ofendida sofre de depressão profunda em consequência da conduta do arguido.
O arguido aproveita-se da fragilidade emocional da ofendida para a provocar com insultos gratuitos e expressões do tipo das referidas, muitas vezes através do menor D….., sabendo que com essa atitude agrava o estado depressivo daquela, o que também se repercute no menor e no seu bem-estar, que sofre, diariamente, pelo vivenciar destas situações e por sentir de perto os problemas de saúde, principalmente psicológicos, de que padece a mãe, provocados e agravados pelo comportamento do arguido.
Devido a estas atitudes do arguido, a ofendida tem medo de andar sozinha na rua, tem graves crises de choro e ansiedade, sente-se cada vez mais deprimida e receosa sofrendo ao longo destes anos uma grande alteração psicológica e de personalidade, talvez irrecuperável.
Dorme mal, acorda muitas vezes durante a noite porque pensa e vive aterrorizada esta situação despoletada pelo arguido para a prejudicar.
O acompanhamento psicológico referido em F. é consequência da conduta do arguido.
A ofendida, por causa deste comportamento do arguido vive em crescendo estado de sofrimento e angústia, motivado pelo carácter violento do mesmo, assim como o menor D..... que devido ao teor dos telefonemas e palavras do pai, bem como devido às atitudes deste para com a mãe, que foi presenciando, ficou muitas vezes aterrorizado, com medo do que pudesse acontecer à sua mãe.
O arguido agiu com o propósito de maltratar física e psicologicamente a ofendida, sua ex-mulher, querendo atingi-la psicologicamente, como atingiu, com gravidade, por forma a deixá-la desgostosa, abalada, deprimida, desesperada e ansiosa, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei e ainda assim, demonstrou sempre indiferença pelo estado em que esta ficava, bem como o seu filho menor, ao ver o sofrimento da mãe, sem se preocupar com os laços de sangue que os une.
O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei.
O internamento referido em H. ocorreu como consequência da conduta do arguido.
Em consequência da conduta do arguido a demandante dorme mal, acorda diversas vezes durante a noite em sobressalto porque tem pesadelos com a situação que vivenciou.

Assim sendo, parece evidente que entre os factos apreciados por esse aresto se contava o último dos que integravam o comportamento reiterado imputado ao recorrente[21] ou, se quisermos, que compunham o pedaço de história de vida que lhe era imputado, ainda que, como vimos atrás, tivesse sido julgado como não provado. Aliás, isso mesmo serviu de argumento para que o referido aresto desta Relação do Porto tivesse julgado o Tribunal a quo como o competente para conhecer da causa, para tal convocando o disposto no art.º 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. E porque sabia da pendência deste processo no Tribunal Judicial de Montalegre,[22] consignou que era este último[23] quem se deveria declarar incompetente para conhecer da causa e não o Tribunal Judicial de Chaves.[24]
Destarte, todo o comportamento anterior a esse facto que não foi especificamente apreciado no primeiro processo terá que se considerar exaurido por ter sido já objecto de julgamento (do Tribunal Judicial de Chaves) e não podia ser conhecido neste novo processo que ora nos ocupa (do Tribunal Judicial de Montalegre), pois que integrando o crime único de violência doméstica imputado ao recorrente, comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem, como de resto aquele fundadamente sustenta. É que, como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa a que já nos referimos, «a apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para uma anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente susceptível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado.»[25]
Destarte, integrando-se o comportamento imputado ao recorrente no crime único de violência doméstica anteriormente apreciado pelo Tribunal Judicial de Chaves, naturalmente que não poderia ter sido novamente apreciado neste outro processo. E tendo-o sido, restará julgar verificada a excepção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem e, em consequência, revogar a sentença recorrida. Pelo que fica com isso precludido o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
***
III - Decisão.
Termos em que, julgando-se verificada a excepção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem, se concede provimento ao recurso e revoga a sentença recorrida.
Sem custas (art.os 513.º, n.º 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
*
Porto, 10-07-2013
António José Alves Duarte
José Manuel da Silva Castela Rio
_________________________
[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[2] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[3] Art.º 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. Note-se que não curaremos aqui do crime de maus tratos pois que, pese embora o recorrente ter dele sido absolvido no primeiro processo (cfr. acórdão da Relação do Porto proferido no processo n.º 677/11.1TACH.P1, de 23-01-2013, junto a folhas 803 e seguintes), o certo é que também o foi neste e tanto o Ministério Público como a assistente não recorreram da sentença aqui proferida.
[4] Henrique Salinas, em Os Limites Objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento - Fevereiro de 2012), página 686, em http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10124/1/OS%20Limites%20Objectivos%20do%20ne%20bis%20in%20idem.pdf.
[5] Henrique Salinas, ob. cit. páginas 687 e seguinte. Neste sentido, também seguiu o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13-04-2011, no processo n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[6] Art.º 32.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
[7] Acórdão da Relação de Lisboa, de 08-03-2006, no processo n.º 96/2006-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[8] Quer tenha conduzido à condenação, quer à absolvição do acusado, naturalmente,
[9] Henrique Salinas, ob. cit. página 688.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403, publicado em http://www.dgsi.pt.
[11] Ob. cit. página 694. Como se alcança de folhas 689 da ob. cit., o A. refere-se à acusação em sentido material querendo incluir tanto a acusação em sentido formal como o requerimento de abertura da instrução (isto porque, como sabemos, este delimita o despacho de pronúncia ou de não pronúncia do arguido. em conformidade com o disposto no art.º 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
[12] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403 e da Relação de Lisboa, de 13-04-2011, no processo n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, publicados em http://www.dgsi.pt.
[13] Cit. art.º 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
[14] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-03-2009, no processo n.º 236/09 - 3.ª Secção, publicado nos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Janeiro de 2009, publicado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2009.pdf, da Relação de Évora, de 25-03-2010, no processo n.º 345/07.9PAENT.E1 e de 28-06-2011, no processo n.º 32/08.0TAGDL.E1, da Relação de Guimarães, de 10-09-2012, no processo n.º 1011/11.6GBBCL.G1, da Relação de Lisboa, de 15-01-2013, no processo n.º 1354/10.6TDLSB.L1-5, da Relação de Coimbra, de 16-01-2013, no processo n.º 486/08.5GAPMS.C1 e da Relação do Porto, de 26-05-2010, no processo n.º 179/08.3GDSTS.P1, de 29-02-2012, no processo n.º 368/09.3PQPRT.P1, de 19-09-2012, no processo n.º 2049/11.9PAVNG.P1, de 19-09-2012, no processo n.º 901/11.0PAPVZ.P1, de 06-02-2013, no processo n.º 2167/10.0PAVNG.P1, de 26-09-2012, no processo n.º 176/11.1SLPRT.P1 e de 09-11-2013, no processo n.º 31/09.5GCVLP.P1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[15] Acórdão da Relação de Lisboa, de 17-04-2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[16] Mas ainda assim um crime único e, portanto, conceptualmente diferenciado do crime continuado. Daí que a jurisprudência firmada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403, publicado em http://www.dgsi.pt citado pelo recorrente em abono da sua tese passe ao lado da nossa temática, precisamente porque versa sobre um caso de crime continuado e não, como aqui, de um crime único, mas de consumação reiterada no tempo.
[17] Art.os 3.º e 119.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal. Neste sentido, vd. Leal Henriques e Simas Santos, no Código Penal, Anotado, Volume I, 2.ª edição, 1.ª reimpressão, página 123 e, especificamente sobre o tipo de crime em apreço, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 22-09-2010, no processo n.º 179/09.6TAMLD.C1 e de 15-12-2010, no processo n.º 512/09.0PBAVR.C1, da Relação de Évora, de 19-02-2011, no processo n.º 331/08.1GCSTB.E1 e da Relação de Lisboa, de 30-10-2012, no processo n.º 5752/09.0TDLSB.L1-5, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[18] Páginas 46 e 47 e nota de rodapé n.º 11.
[19] Acórdãos da Relação de Lisboa, de 04-06-2008, no processo n.º 3715/2008-3, de 08-11-2011, no processo n.º 5752/09.0TDLSB.L1-5 e de 17-04-2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[20] Folhas 803 e seguintes.
[21] Mais precisamente o pretensamente ocorrido no dia 11 de Setembro de 2011.
[22] Pois que fora dado como provado na sentença recorrida no facto enumerado em 1.1.7 dos factos provados.
[23] Que sabia da pendência do processo de Chaves uma vez que o Ministério Público comunicou ao seu congénere junto desse Tribunal quando nele deduziu acusação.
[24] Onde, como vimos, o dito aresto da Relação do Porto foi proferido.
[25] Acórdão da Relação de Lisboa, de 17-04-2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3, publicado em http://www.dgsi.pt.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/c8032b88b06696e580257baa0047d199?OpenDocument

terça-feira, 16 de julho de 2013

DIREITO DE TRADUÇÃO PROCESSO DE EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO MOMENTO DA COMUNICAÇÃO OBJECTO - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 19.06.2013


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1728/12.8JAPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: DIREITO DE TRADUÇÃO
PROCESSO DE EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE
NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO
MOMENTO DA COMUNICAÇÃO
OBJECTO

Nº do Documento: RP201306191728/12.8JAPRT-C.P1
Data do Acordão: 19-06-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O suspeito tem direito à tradução de todos os atos do processo necessários à sua compreensão a fim de lhe permitir exercer plenamente o seu direito de defesa e a fim de garantir a equidade do processo.
II – Integra a nulidade dependente de arguição do art. 120.º, n.º 2, al. c), do CPP, a notificação do despacho que declarou a excecional complexidade do processo feita aos arguidos de nacionalidade estrangeira sem que lhes tivesse sido nomeado intérprete que possibilitasse o seu adequado conhecimento e compreensão.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Recurso 1728/12.8JAPRT-C.P1
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de inquérito antes identificados, a correr termos no DIAP do Porto, foram submetidos a 1º interrogatório judicial, entre outros, os arguidos ora Recorrentes:
1. B…, casado, motorista, nascido a 14/8/1955, natural da Roménia e residente, antes de preso à ordem destes autos, na Rua …, …, .º Dto., Vila Nova de Gaia;
2. C…, solteiro, gerente, nascido a 9/2/1955, natural da Roménia e residente, antes de preso à ordem destes autos, na Rua …, n.º .., .º esquerdo, …, Vila Nova de Gaia.

No interrogatório, o Sr. Juiz de Instrução informou os arguidos que os autos continham fortes indícios de que estariam incursos na prática dos seguintes ilícitos-típicos:
a) B…
● 1 crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º, n.º 1 do CP;
● 2 crimes de detenção de arma proibida, na modalidade de fabricação de engenho explosivo improvisado, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, alínea a), da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio;
● 2 crimes de explosão, p. e p. pelo art.º 272º, n.º 1, alínea b), do CP;
● 1 crime de dano qualificado, p e p. pelo art.º 213º, n.º 1, alíneas a) do CP;
● 1 crime de dano qualificado, p e p. pelo art.º 213º, n.º 1, alínea c) do CP;
● 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1, al. a) e e) e 2, alínea g), do CP;
● 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1, al. e) e 2, alínea a) e g), do CP;
● 1 crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1 a) e 3 do CP.
b) C…:
- 1 crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299º, n.º 1 do CP;
- 2 crimes de detenção de arma proibida, na modalidade de fabricação de engenho explosivo improvisado, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio;
- 2 crimes de explosão, p. e p. pelo art.º 272º, n.º 1, alínea b), do CP;
- 1 crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.º 213º, n.º 1, alínea a) do CP;
- 1 crime de dano qualificado, p e p. pelo art.º 213º, n.º 1, alínea c) do CP;
- 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1, al. a) e e) e 2, alínea g), do CP;
- 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1, al. e) e 2, alíneas a) e g), do CP;
- 1 crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1 a) e 3 do CP.

Mais informou os arguidos:
“Nos termos dos factos e prova, além da de folhas 501 - 512 que lhes foram referidos em voz alta e traduzidos para a língua romena pela Sr.ª Intérprete nomeada, e introduzidos a juízo pelo despacho do M.º P.º de folhas 1010-1029, que aqui se dão por reproduzidos para os devidos efeitos legais, ficando assim a fazer parte integrante deste despacho, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do art.º 194º do C.P.P.
Não podemos de aqui deixar de especificamente referir as apreensões, designadamente lâmpadas, pilhas, argola metálica com grampo e um pequeno segmento de fio amarrado, bonés de pala azul, pistola de pressão, canhões de fechadura com as respectivas chaves, pé de cabra, notas com vestígios de queima, garrafa de oxigénio, passa montanhas, mangueira com acessório de acoplagem a garrafa de acetileno e cânula para introdução do gás na ATM, como ainda declarações dos arguidos, designadamente do arguido D…, E… e F…, em sede de interrogatório policial e autos de reconhecimento em sede de processo de averiguações e investigação, como ainda a escuta de folhas 501 - 512 e respectiva localização celular.
Os actos revelam por parte dos arguidos, face ao modo de actuação e consequências, uma personalidade de total insensibilidade e de desprezo para com bens alheios, reveladores também ainda de não lhes importar outras eventuais consequências, nomeadamente contra a integridade física e a vida das pessoas face aos sítios em que se encontram e encontravam colocadas as ATM. A prática de tais actos, face precisamente ao modo, meio e método e consequências traz forte alarme social e perturbador da tranquilidade e da ordem pública, como até de perturbação do sistema financeiro.
De toda a prova produzida e referida, é notória a ligação e o conhecimento entre os arguidos. É notório, quanto aos arguidos de nacionalidade Romena e quanto ao arguido G…, o apreendido, designadamente o respectivo e-mail e o contacto no Canadá deste arguido”.

Na sequência, determinou que os arguidos aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos à medida coactiva de prisão preventiva.

No decurso do inquérito, o Ex.mo Magistrado do M.º P.º, após promover a realização pelo M.º JIC de uma série de diligência de prova, enumeradas, e que são da exclusiva competência do Sr. JIC, lavrou o seguinte despacho:
“A investigação em curso nos autos tem por objecto a investigação dos crimes de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º, n.ºs 1 e 3 do CP, detenção de arma proibida, na modalidade de fabricação de engenho explosivo improvisado, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio; detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n° 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio, Explosão, p. e p. pelo art. 272º, n.º 1, alínea b), do CP, Dano qualificado, p e p. pelo art. 213º, n.ºs 1, alíneas a) do CP; Dano qualificado, p e p. pelo art. 213º, n.° 1, alínea c) do CP; Furto Qualificado, p. e p. pelo art. 204º, n.º 1, al. e) e 2, alínea a) e g), do CP; Furto Qualificado, p. e p. pelo art. 204º, n.º 1, al. a) e e) e 2, alínea g), do CP; Furto Qualificado na forma tentada, p. e p. pelo art. 204º, n.º 1 e), n.ºs 2, alínea g), conjugado com o disposto nos art.ºs 22º e 23º, todos do CP e falsificação, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1 a) e 3 do CP, praticados de forma organizada e que ocorreram durante os anos de 2011-2012 na zona norte do País.
Neste período a associação criminosa levou a cabo um conjunto de mais de vinte explosões em ATM’s, algumas destas com consumação de furto qualificado e todas com danos elevados.
As explosões e crimes conexos verificados estão disseminados um pouco por todo o Norte do País, facto que acarreta morosidade, atendendo ao número de locais, instituições envolvidas e consequentes testemunhos que se impõe recolher.
A detenção de seis autores em Novembro de 2012 e aplicação da medida de coação de prisão preventiva originou uma série de recursos e requerimentos diversos interpostos pelos mandatários dos arguidos. A sucessão de diligências entre o DIAP e TIC do Porto tem dificultado de sobremaneira a normal investigação do processo a cargo da Policia Judiciária do Porto, a qual teve acesso aos originais do inquérito por escassos dias durante os últimos três meses.
A matéria probatória já recolhida, para além de reforçar os fortes indícios existentes relativamente aos seis arguidos detidos, revela ainda que existem indícios do envolvimento de pelo menos mais quatro suspeitos nos factos em investigação.
Em conformidade com o exposto impõe-se a prorrogação do prazo de duração do inquérito, pelo período de um ano, para a investigação dos crimes que são objeto do presente inquérito tendo em conta o disposto na al. c), n.º 2 do art.º 276º, por força do disposto no n.º 3 do art.º 215º do CPP, isto face à excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos detidos e arguidos a constituir, ao número elevado de ofendidos, à dispersão geográfica dos locais alvo de explosão, ao período extenso da prática dos crimes (anos de 2011-2012), às perícias solicitadas e complexidade de que se revestem e ainda ao carácter altamente organizado dos crimes em causa.
Assim, pelos motivos expostos, promovo se considere de excepcional complexidade o procedimento e se declare ser de um ano, até que deduzida a acusação, o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se encontram sujeitos os arguidos G…, F…, D…, E…, B… e C…”.

Os Arguidos foram pessoalmente notificados deste despacho, tal como os seus Ilustres Defensores.
Nada disseram.

Conclusos os autos ao M.º JIC, reexaminando os pressupostos da prisão preventiva, determinou que, “por subsistência daqueles pressupostos (…) se mantenham a guardar os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva em que se encontram”.

Sobre a promoção do M.º P.º recaiu o seguinte despacho:
“Dispõe o art° 215° do CPP que a prisão preventiva se extingue, decorrido desde o seu início, o prazo de quatro meses, al. a) do seu n° 1, se entretanto não tiver sido deduzida acusação.
Contudo aquele prazo será desde logo elevado para seis meses desde que esteja em causa um crime dos elencados no art.º 215.º do CPP (n.º 2). O que acontece no caso concreto já que os crimes indiciados são de associação criminosa, detenção de arma proibida, como na modalidade de fabricação de engenho explosivo, dano e furto qualificados.
Porém, se o processo de revelar de excepcional complexidade, devido ao número de arguidos ou ao carácter altamente organizado do crime, aquele prazo de seis meses, poderá ser elevado para 1 (um) ano (n.º 3).
Ora, compulsados os presentes autos, constata-se que os mesmos respeitam a vários crimes realizados em várias localidades, e com vários arguidos, e com várias diligências de prova a realizar, que, por segredo de justiça e a fim de não se fazer perigar o resultado das mesmas não se identificam.
Reportam-se pois os autos a investigação a crimes de excepcional complexidade, e, consequentemente complexa a investigação.
Os arguidos notificados do requerido nada disseram.
Assim, pelo que fica exposto e nos termos do n.º 3 do art.º 215º do C.P.Penal, declaro de excepcional complexidade os presentes autos, prorrogando o respectivo prazo da prisão preventiva”.

Não conformados, os arguidos interpõem o presente recurso, de cuja motivação extraíram as seguintes conclusões:
a) O despacho em crise sofre dos males apontados na motivação para a qual remete.
b) É irregular e nulo porque foi decidido em incumprimento de atos processuais legalmente obrigatórios, impedindo os recorrentes de serem notificados de decisões fundamentais para a sua vida e liberdade, sem poderem por si ser compreendidas, dado que não traduzidas em língua romena.
c) É também nulo por erro de apreciação dos pressupostos processuais e factos concretos que aduziu e falta de fundamentação adequada dado que omitiu de examinar criticamente os factos concretos que levaram ao deferimento do requerimento do Ministério Público.
d) Errando em vários pontos na apreciação abstrata da matéria de facto, dando como acertado o fundamento de que basta afirmar o número de inquéritos ilegal e tardiamente apensados, bem como a necessidade vaga de realização de outras diligências.
e) Indicando a probabilidade de extensão no tempo da continuação dos trabalhos, omitindo o facto grave da investigação se ter iniciado contra conhecidos e os aqui recorrentes há mais de 18 meses, num pré inquérito secreto e ilegal que impediu os arguidos de se defenderem no tempo certo.
f) E permitiu eventualmente a continuação do cometimento de outros crimes que seriam travados através do controlo judiciário dos aqui e só agora declarados arguidos, suspeitos conhecidos e identificados desde há muito tempo.
g) Acolhendo fundamentos subjetivos e procedimentos que não passam de expedientes artificiais, lesivos, gravosos e desnecessários para a vida dos arguidos.
h) Que cristalizam desde já a necessidade de responsabilização futura do Estado na sede apropriada.
i) Porque esta fundamentação não passa objetivamente de um pretexto para justificar o prolongamento de uma investigação que há muito ultrapassou os prazos legais. E também dos prazos máximos da prisão preventiva.
j) E até contra producente para a Justiça e a sua imagem porque a ser mantida serviria para encobrir e justificar os desmandos e desperdícios para o contribuinte e esvanecer no tempo as responsabilidades individuais de quem é fautor dos arbítrios até hoje cometidos.
k) Feriu o despacho em crise os arts. 4º; 61º; 97º, n.º 5; 113º n.º 9); 120º n.º 2, al. d); 215º n.º 4; do CPP; e arts. 8º n.º 1; 18.º n.º 2; 20º n.º 4 in fine; 22º; 28º n.º 2; 32º n.ºs l, 2, 3 e 5; 204º e 205º n.º l da Constituição da República Portuguesa; art. 6º n.º l da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Sem apresentar conclusões, respondeu o M.º P.º em defesa do julgado.

Nesta Relação, a Ex.mo PGA limita-se a subscrever, na íntegra, a resposta do M.º P.º em 1ª Instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Os Recorrentes submetem à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
- O despacho recorrido é irregular e nulo porque foi notificado aos arguidos sem que tenha sido traduzido em língua romena.
- O despacho recorrido é também nulo por falta de fundamentação adequada dado que deixou de examinar criticamente os factos concretos que levaram ao deferimento do requerimento do Ministério Público.
- Não há fundamento legal para declarar o processo de especial complexidade. O despacho recorrido serve apenas para encobrir e justificar os desmandos e desperdícios para o contribuinte e esvanecer no tempo as responsabilidades individuais de quem é fautor dos arbítrios até hoje cometidos.

DECIDINDO

Começamos por afirmar que a 1ª conclusão - O despacho em crise sofre dos males apontados na motivação para a qual remete - é de todo em todo inútil e, por isso, não pode ser levada em linha de conta.
A não ser assim, bastaria uma conclusão do género da referida para que o Tribunal fosse levado, ele próprio., a apresentar as conclusões que são ónus do Recorrente.
De resto, como é sabido, são as conclusões que balizam o objecto do recurso e, por isso, a lei as põe a cargo do Recorrente.

Alegam os Recorrentes que o despacho recorrido é irregular e nulo porque foi notificado aos arguidos sem que tenha sido traduzido em língua romena.

Nos termos do n.º 1 do art.º 82º do CPP, “Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade”.
O arguido, como sujeito processual que é, e principal destinatário das decisões jurídico-penais, tem de conhecer o teor dos despachos e decisões que o possam afectar nos seus direitos subjectivos.
O princípio do processo equitativo, reconhecido no artigo 20.º da CRP e no art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, impõe que a solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com a observância das garantias de imparcialidade e independência, esteja sujeita a um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras.
Com a finalidade última de se obter a conformação do processo de forma materialmente adequada.
A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual[1].
Todavia, “A figura do processo equitativo não pode ser definida in
abstracto, antes deve ser verificada segundo as circunstâncias particulares de cada caso, tomando em consideração o processo no seu conjunto; e portanto, não pode ser considerado um elemento isolado, salvo se ele revestir uma importância tal que deva ser considerado decisivo para apreciação global do processo.” (cfr. Ireneu Cabral Barreto, «A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada», 2010, 4.ª edição, Wolters Kluwer sob a marca de Coimbra Editora, p. 165)[2].

Pois bem.
Para poder exercer correctamente o contraditório, o arguido tem de conhecer e compreender o teor do despacho em questão na sua totalidade.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem[3], invariavelmente, vem afirmando que o suspeito tem direito, para além do mais, à tradução de todos os actos do processo que ele necessite compreender para beneficiar de um processo equitativo.
O que se compreende sem qualquer dificuldade ademais quando a decisão briga com direitos fundamentais, como é o caso da liberdade. In casu, ao ser declarada a especial complexidade do processo, por força da lei (n.º 3 do art.º 215º do CPP), os prazos máximos de prisão preventiva são substancialmente elevados (n.º 3 do art.º 215º do CPP). Afectando os arguidos na sua liberdade já que continuarão em prisão preventiva por mais tempo, que é significativo.

Ora, no caso em apreço, a notificação foi feita aos arguidos sem que o despacho tenha sido traduzido para língua romena.
O que impossibilitou o conhecimento e compreensão do aludido despacho por parte dos arguidos.
É certo que, para além dos arguidos, também foram notificados os Ilustres Defensores.
Todavia, essa notificação aos Defensores não torna inútil a notificação aos arguidos que, facilmente se alcança, até podem ter entendimento diferente do dos Ilustres Defensores.
O STJ já teve oportunidade de se pronunciar sobre a necessidade de serem notificados os arguidos e seus Defensores em questão análoga e decidiu, em recente acórdão uniformizador, que “a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão deve ser notificada ao advogado ou defensor nomeado e, pessoalmente ao condenado nos termos da alínea a) nº 1 do artº 113º do CPP”.
A doutrina é igualmente válida para o caso da prorrogação da prisão preventiva, se não por maioria de razão, pelo menos por igualdade de razão.
De resto, a melhor jurisprudência”[4] vem entendendo que a garantia de uma compreensão efectiva por parte do arguido, relativamente a actos processuais de tão sérias consequências, como é o caso da declaração de processo como de especial complexidade, “não se basta com uma aparência de possibilidade de compreensão”.
Ou seja, não se basta com a notificação do despacho em língua portuguesa, que os arguidos não dominam. Ou, pelo menos, tal não está demonstrado nos autos. Antes pelo contrário, como o revela a nomeação de intérprete no 1º interrogatório judicial.

Porque não foi nomeado intérprete que pudesse traduzir o despacho para língua romena, o que possibilitaria o adequado conhecimento e compreensão por parte dos arguidos, cometeu-se a nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do art.º 120º do CPP[5], que foi tempestivamente arguida [al. c) do n.º 3 do mesmo preceito legal].
A qual tem como consequência unicamente a declaração de nulidade da notificação.
E só desta, repete-se, que não do despacho recorrido, o qual se mantém válido até que seja revogado pelo tribunal ad quem, na hipótese, meramente académica, de o vir a ser (art.º 122º do CPP).
O aqui decidido não põe, pois, em crise o despacho recorrido, de cuja validade só não se conhece agora para proporcionar aos arguidos que o possam atacar com argumentos que até podem não coincidir com os utilizados in casu.

O prazo para interposição de recurso contar-se-á a partir da referida notificação.

DECISÃO:
Termos em que se declara nula a notificação do despacho recorrido, que deve ser repetida no que diz respeito aos arguidos, após tradução do despacho para língua romena.
Sem tributação por dela estar isento o M.º P.º

Porto, 19-06-2013
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro
_____________
[1] Neste sentido o Ac do STJ de 24/9/2003, citado pelo Ac Uniformizador 2/2011
[2] Ac do TC 527/2011
[3] Por todos o caso Luedicke, citado no despacho de 13/6/1990 do Ex.mo Procurador-Geral da República
[4] Ac da RE de 8/1/2013, processo 128/12.4GTABF.E1, in www.dgsi.pt
[5] Assim, o citado Ac da RE de 8/1/2013, processo 128/12.4GTABF.E1, in www.dgsi.pt

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/850e78bb84c3fd3e80257b9c0056c253?OpenDocument

Pesquisar neste blogue