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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

COACÇÃO VIOLÊNCIA - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 19/12/2012


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
325/08.7GAVLP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: COACÇÃO
VIOLÊNCIA

Nº do Documento: RP20121219325/08.7GAVLP.P1
Data do Acordão: 19-12-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O conceito de violência abrange tanto a intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido) como a violência psíquica e condutas que, apesar de não se traduzirem na utilização da força física, todavia eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou de resistência da vítima.
II - Integra o conceito de violência pressuposto pelo tipo do crime de Coação do artigo 154.°, n.° 1, do Código Penal, a conduta revelada nos seguintes factos: a vítima pretende circular livremente por uma estrada (nacional ou auto-estrada) e é perseguida, ao longo de cerca de 80 Km, por um outro veículo automóvel em cujo interior sabe que se encontra uma pessoa (arguido) que lhe vem exigindo o pagamento de determina­da quantia; o arguido atua deste modo para diminuir ou eliminar a capacidade de decisão da pessoa perseguida e, assim, a intimidar à prática do ato pretendido.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Proc. nº 325/08.7GAVLP.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Tribunal Judicial de Valpaços com o nº 325/08.7GAVLP foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 04.01.2012, que condenou o arguido
- como autor material de um crime de coação p. e p. nos artºs. 22º, 23º, 73º e 154º nºs 1 e 2 do Cód. Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão;
- como autor material de cada um de dois crimes de injúrias p. e p. no artº 181º do Cód. Penal na pena de um mês e quinze dias de prisão;
- em cúmulo jurídico das referidas penas, foi o arguido condenado na pena única de um ano e quatro meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob condição de, no prazo de oito meses, pagar à assistente C… a quantia de € 1.000,00 fixada a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo aplicou mal o direito ao presente caso, no que tange à condenação do arguido pela prática de um crime de coação, porquanto a expressão dirigida a assistente concretamente a dada como provada no ponto 6 “se queria que lhe acontecesse alguma coisa”, não é de todo em todo apta a preencher o conceito de ameaça com um mal importante, ou o anúncio da intenção de praticar qualquer mal futuro;
2. Verifica-se que inexiste, ou não se corporiza qualquer ameaça, sendo indubitavelmente de se concluir que a tipicidade do crime de coação de que vinha acusado o arguido não se encontra preenchida;
3. Tanto mais que a conduta da assistente narrada nos autos de não procurar auxílio das forças de segurança portuguesas, da respetiva família, como assim o facto de a própria família, sabedora do que estava a suceder não ir ao seu auxílio, estando próximos, ou chamarem eles mesmos as autoridades, revela, no mínimo dos mínimos que nada do que o arguido possa ter dito foi levado a sério;
4. O percurso de horas que assistente fez por locais ermos e desabitados é bem demonstrativo da ausência de medo, de receio e decorrente não limitação da liberdade, ou mero constrangimento comportamental;
5. Por seu turno, verifica-se existir um erro notório na apreciação da prova testemunhal, concretamente do depoimento de D…, porquanto as injúrias que mesmo diz ter ouvido o arguido proferir, concretamente “Caloteira” e “Tens ar de puta” foram nos dizeres da acusação particular praticadas em Vila Pouca de Aguiar nas bombas de combustível do “E…” e não na Zona Industrial …, não podendo nessa medida ter sido assistidos pela testemunha, que quando muto poderia ter ouvido somente a expressão caloteira;
6. Decorre que é manifesto que à testemunha que se reputa como sendo importante para a condenação do arguido pela prática de um dos crimes de injúria não pode ser atribuída qualquer credibilidade;
7. Sintomático disso mesmo será o facto de desde logo a pessoa referenciada nos autos como sendo seu patrão e indivíduo das relações de amizade da assistente, a quem esta ia recorrer – F…, que também teria assistido a tudo, estranhamente ou talvez não, não foi sequer arrolada como testemunha;
8. Por último, sendo manifesto que inexistiu prova testemunhal acerca das injúrias alegadamente proferidas nas referidas bombas de gasolina, e formando-se a convicção do Digníssimo Tribunal a quo somente e tão só a versão relatada pela assistente, dado que a posição assumida pelo arguido é diametralmente oposta – negou cabalmente que tivesse dito que era “caloteira” e que “tinha ar de puta”, parece evidente que foi violado o princípio basilar do “In dubio pro reo”.
*
Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência, alegando em suma que:
a) O arguido B…, face à prova produzida em audiência de julgamento, foi como se impunha condenado, pela prática do crime de coação na forma tentada e dois crimes de injúria, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período;
b) O Tribunal a quo considerou que se encontravam preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de coação na forma tentada e não podia ser outra a decisão, pois a expressão “se queria que lhe acontecesse alguma coisa” e toda a perseguição e intimidação do arguido à assistente, foram atitudes idóneas a causar medo e perturbação e efetivamente causaram;
c) A assistente sentiu pânico e terror pela presença constante e perseguição do arguido, ficando nervosa e descontrolada, pretendeu evitar a vergonha e constrangimento do arguido estar constantemente junto a sua casa, envergonhando-a, o que a levou a percorrer bastantes quilómetros no intuito de dissuadir o arguido de a importunar junto da sua residência.
d) O arguido actuou com dolo, pretendeu intimidar a assistente, para que esta pagasse uma dívida que não existia, actuando de forma a pressionar a assistente intimidando-a com a sua presença sinistra e constante, perseguindo-a ao longo de um grande percurso, para que esta não esquecesse que ele ali estava, “ Se queria que lhe acontecesse alguma coisa”, tal expressão e toda a atitude persecutória do arguido é adequada a preencher os requisitos objectivos e subjectivos do ilícito de coacção.
e) O testemunho de D…, revelou-se credível, isento e verdadeiro, no sentido de ter ouvido o arguido, na zona industrial … a apelidar a assistente de “caloteira”. O Tribunal valorou o depoimento da referida testemunha, como se impunha.
f) No que concerne ao outro crime de injúria dado como provado e pelo qual o arguido foi condenado, as declarações da assistente revelaram-se verdadeiras e coincidentes com todo o circunstancialismo factual que no dia dos factos o arguido, em Vila Pouca de Aguiar lhe dirigiu as expressões: “Caloteira e tens ar de puta”.
g) É ao julgador que cabe emitir o seu juízo em termos livre apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que a douta sentença indica na motivação, quais os pontos concretos e depoimentos que revestem maior credibilidade, em consonância com o princípio da imediação e da oralidade.
h) Da audição dos depoimentos prestados em audiência, conjugados e correlacionados com os demais elementos de prova em que se alicerçou o tribunal e com as regras da experiência comum, resulta não haver nos autos provas que imponham decisão diversa da recorrida.
i) Não foi violado o princípio basilar da doutrina penal “ In dubio pro reu”, pois a prova testemunhal, desde logo, as declarações da assistente C…, os depoimentos de G…, H…, I… e D…, foram verdadeiras, credíveis e convincentes no sentido de formar a convicção no Tribunal de que o arguido efectivamente cometeu os crimes de que vinha acusado, inexistindo qualquer dúvida razoável que pudesse conduzir à sua absolvição.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer suscitando a questão prévia da extemporaneidade do recurso por falta de cumprimento do formalismo consignado no artº 412 nºs. 3 e 4 do C.P.P., o que deverá conduzir à sua rejeição.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos: (transcrição)
1) O arguido B… é director comercial de uma empresa de gestão e recuperação de créditos, empresa esta que foi contratada para cobrar um crédito à assistente C… e marido.
2) Em data não concretamente apurada, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita em …, e abordou o seu marido para que pagasse a dívida ao cliente, situação que este nunca concordou por considerar que a dívida já estava paga.
3) De forma a obter o pagamento da dívida, o arguido deslocou-se várias vezes e em datas não concretamente apuradas junto da residência da assistente, estacionando um veículo de marca VW … de matrícula ..-BC-.., à porta desta com os dizeres “J…”.
4) No dia 10 de Outubro de 2008, cerca das 8h15, quando a assistente saiu de casa em direcção a Valpaços, foi perseguida pelo veículo referido em 3), onde seguia o arguido acompanhado de outro indivíduo.
5) Chegada a Valpaços, a assistente apanhou a estrada em direcção a Vila Pouca de Aguiar, continuando a ser perseguida pelo referido veículo.
6) Antes de chegar a Vila Pouca de Aguiar, a assistente parou, saiu do carro, tendo o arguido parado também o carro em que seguia, dirigindo-se à assistente, em voz alta e em tom sério, perguntando-lhe se ela ia pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa.
7) Com receio que o arguido lhe fizesse alguma coisa, a assistente voltou a entrar no seu veículo e foi novamente perseguida até às bombas de combustível do E…, em Vila Pouca de Aguiar.
8) Aí chegada, como o arguido continuava a persegui-la, entrou na A24 e apenas parou junto à rotunda de Verin, quando viu uma patrulha da Guardia Civil, a quem contou o que estava a acontecer e onde foram todos identificados.
9) No regresso de Verin até Valpaços, foi novamente perseguida até à Zona Industrial …, onde parou e esperou que o marido chegasse, com receio que algo lhe pudesse acontecer.
10) Ao perseguir a assistente e ao dirigir-lhe a expressão referida em 6), agiu o arguido com a vontade livre e perfeita consciência de estar a anunciar-lhe que, caso a assistente não pagasse a suposta dívida, atentaria contra a sua integridade física, de modo idóneo a levá-la, como era sua intenção e por medo de concretização de tal promessa, a satisfazer aquela exigência, o que apenas não veio a acontecer por razões alheias à sua vontade.
11) Agiu, ainda, o arguido com perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.
12) Em datas não concretamente apuradas, mas durante os meses de Setembro e Outubro de 2008, o arguido procedeu como referido em 2) e 3), abordando toda a família.
13) Por diversas vezes, nas circunstâncias referidas em 12), o arguido dirigiu-se à assistente utilizando a seguinte expressão: “caloteira”.
14) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7), o arguido, saiu do veículo e aproximou-se da assistente e dirigiu-lhe, em tom sério e de viva voz, as seguintes expressões: “Caloteira”, “Tens ar de puta”.
15) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9), a assistente parando junto a uma casa de mármores, em virtude o proprietário, F…, ser seu amigo, a quem pediu ajuda, voltou o arguido a, de viva voz, de forma a que pudesse ser ouvida pelos presentes, dirigindo-se àquela, proferir a seguinte expressão: “Caloteira”.
16) No dia 21 de Outubro de 2008, cerca das 7h45, o arguido, acompanhado do motorista, fez estacionar o veículo automóvel com a publicidade da empresa “J…”, em frente à casa da assistente e dirigindo-se a esta disse “a senhora quer pagar?”, “a senhora é uma caloteira”.
17) Em todas estas situações, o arguido aparecia acompanhado de motorista, ambos vestidos de preto, usando uma placa com a identificação da empresa “I…” e fazendo-se conduzir no veículo automóvel identificado em 3),
18) A assistente nada devia, nem ao arguido, nem à empresa que encomendou o serviço.
19) Nunca nada lhes pagou, nem foi intentada qualquer acção judicial para o efeito.
20) A assistente é considerada pessoa séria, respeitável e respeitadora.
21) A assistente sentiu vergonha, angústia, humilhação, tristeza, desgosto e sofrimento.
22) Ficou enxovalhada e sentiu-se diminuída como tal.
23) A situação foi comentada por vizinhos, familiares e amigos da assistente.
24) A assistente sentiu medo, inquietação, receio, ansiedade, susto e intranquilidade.
25) O arguido vive sozinho, auferindo uma pensão de reforma de 1 000,00€;
26) Encontra-se penhorado 1/3 da pensão de reforma;
27) Paga 300,00€ mensais de renda de casa.
28) Possui o 6.º ano de escolaridade.
29) O arguido foi, anteriormente, condenado:
- No processo 1788/00.4TDPRT do 2.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, por sentença de 21.02.2003, pela prática, em 8.06.1999, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 260/99.8SMPRT, do 1.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena única de 280 dias de multa à taxa diária de 2,50 euros, por sentença de 12.12.2003, pela prática em 5.03.1999, de um crime de detenção ou tráfico de armas proibidas, p. e p. pelo art.º 275.º, n.º 3 do Código Penal e de um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal.
- No processo 593/04.3PEGDM do 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 2,50 euros, por sentença de 31.05.2004, pela prática, em 29.05.2004, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 251/01.0PTPRT do 1.º Juízo, 2.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 1,50 euros, por sentença de 2.06.2004, pela prática, em 24.06.2001, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 831/03.0GDGDM do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 3,00 euros, por sentença de 20.07.2007, pela prática, em 28.04.2003, de um crime de violação de domicílio, p e p. pelo art.º 190.º do Código Penal.
- No processo 509/06.2GDGDM do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, por sentença de 7.05.2008, pela prática, em 30.05.2006, de um crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
- No processo 52/07.2GAMGD do Tribunal Judicial de Mogadouro, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 7,00 euros, por sentença de 20.05.2008, pela prática, em 8.05.2007, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal.
- No processo 1298/07.2TAGDM do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, subordinada ao pagamento da quantia de 500,00 euros à ANEM, por sentença de 26.11.2008, pela prática, em 1.08.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
*
A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
No que se refere à matéria de referente aos factos imputados aos arguidos, o Tribunal atendeu ao conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas em conjugação com a versão apresentada pelo arguido, tudo analisado crítica e conjugadamente.[1]
Desde logo, o arguido não negou que no dia 10 de Outubro de 2008 tenha “acompanhado” a assistente, desde a sua residência, passando por Vila Pouca de Aguiar, Verin (Espanha) até à Zona Industrial …, ao longo desse dia.
Também não nega que se tenha deslocado várias vezes à residência da assistente e lhe tenha solicitado o pagamento de uma alegada dívida.
Mais referiu que falou com o marido da assistente e que fora, ele próprio, maltratado pela assistente e pela família.
O arguido confessou que a sua atividade corresponde ao serviço vulgarmente conhecido como “cobrador do fraque” e que usava a indumentária e utilizava o veículo, como foi dado por provado, designadamente a cor escura e inscrição visível “J…” quer no fato preto quer no veículo.
Mais referiu que se fazia acompanhar por outro indivíduo, necessariamente com as mesmas características por forma a criar o “ambiente” de cobrança naqueles termos.
Ora, a sua versão apenas foi considerada credível até aqui.
Desde logo, se foi ele próprio o ofendido verbalmente pela assistente, o que não se logrou provar, e, bem assim, pela sua família, tal faz inferir que o arguido não tivesse atuado com delicadeza no trato para com a assistente.
A versão desta foi considerada absolutamente credível, uma vez que as declarações que prestou, ainda que impregnadas de uma emoção que se compreende e visivelmente afetada, conseguiu circunstanciar a atividade do arguido, vivendo-a intensamente.
Explicou que o arguido se dirigia à sua residência com muita frequência e ali permanecia (no exterior) e no interior do veículo, bem como no exterior dos mesmos e sempre nas imediações da residência, tocando na campainha ou chamando por ela, falando com as pessoas que se ali se apresentavam e aludindo ao pagamento de uma dívida que segundo referiu não existia, não tendo sido intentada qualquer ação judicial para exigir a sua cobrança.
Mais referiu que a apelidava de “Caloteira” e que chegou a dizer-lhe que “parecia uma puta”.
No dia 10 de Outubro de 2008, articulou todo o percurso que teve de realizar sempre perseguida pelo arguido no veículo que outro indivíduo conduzia. De tal forma foi a minúcia que referiu que parou para encher uma garrafa de água e mesmo aí foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lhe havia de acontecer alguma coisa.
Percorreu o percurso de … até Vila Pouca de Aguiar e desta localidade até Verin, Espanha, concluindo o percurso na Zona Industrial …, onde pretendia encontrar o marido ou um amigo deste.
Perguntar-se-á se o motivo de, sozinha, a assistente ter percorrido vários quilómetros, sem se dirigir às autoridades policiais ou a pedir ajuda é anómala.
Ora, como bem explicou e igualmente a testemunha I…, sua filha, o que a assistente sentiu foi, além de receio e medo, uma grande humilhação e vergonha, pois que apresentar-se perante terceiros, designadamente da área da sua residência, com aquela companhia seria tal facto, ele próprio, catalizador dessa vergonha, para além de que, no contexto da situação, é compreensível que as ideias racionais cedam perante aqueles receios e vergonha.
É que o arguido não nega que tenha tentado a cobrança de uma dívida e que a tenha acompanhado, nas suas traseiras, em todo aquele percurso, o que só por si é revelador não de um incómodo mas do suportar de uma atividade que reconhecidamente pouca abona a favor dos visados.
E neste contexto, importante se revelou muito importante o depoimento da testemunha D…, o qual se encontrava na Zona Industrial, a cortar pedra, no seu ofício, quando a assistente ali acorreu, visivelmente amedrontada e assustada. Numa tarde, estava a trabalhar e apareceu a assistente, escondendo-se na casa de banho e o arguido a chamar-lhe “Puta” e “Caloteira” e a dizer que ela não saía dali enquanto não pagasse. Viu o arguido e outro indivíduo, sendo que o primeiro queria entrar e o seu patrão não o deixou entrar, estando a assistente a tremer e a telefonar, posteriormente, ao marido.
Percebeu que a assistente estava alterada, nervosa e ansiosa.
No mais quer a testemunha H…, seu marido, quer a testemunha G…, nos seus depoimentos, confirmaram, de forma assaz convincente e credível, a versão apresentada pela assistente, tendo assistido ao apelidar de caloteira, o que muito a envergonhou e humilhou perante vizinhos, amigos e familiares, causando-lhe tristeza, angústia, humilhação, desgosto e sofrimento, sentimentos e danos que o próprio tribunal constatou ainda se verificarem atualmente, atentas as declarações prestadas por aquela.
Para além disso, é inegável que a assistente sentiu medo, inquietação, receio, ansiedade, susto e intranquilidade, bem espelhada na situação verificada em 10 de Outubro de 2008, que se extrai também do receio de colocar os familiares diretos, designadamente o marido e a filha naquela situação e de, naquele dia, nunca ter tomado qualquer refeição ou sequer satisfeito as suas necessidades mais básicas.
Não colheu a versão do arguido de que nunca lhe dirigira qualquer expressão menos própria à assistente, pois mostra-se consentânea com a realidade a versão apresentada pela assistente e pelas demais testemunhas, no contexto daquela situação de tentativa de pagamento de uma alegada dívida.
O tribunal teve ainda em conta as declarações do arguido quanto à sua situação pessoal e sócio – económica, porque efetuadas, nesta parte, de forma aparentemente desinteressada.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido o tribunal baseou a sua convicção nos CRC junto aos autos.
*
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3].
No caso em apreço alega o recorrente que a expressão que dirigiu à assistente - “se queria que lhe acontecesse alguma coisa” – não é apta a preencher o conceito de ameaça com mal importante ou o anúncio de praticar qualquer mal futuro pelo que não se verifica a tipicidade do crime de coacção.
Alega ainda que existe erro notório na apreciação da prova testemunhal no que respeita aos crimes de injúrias, tendo o tribunal recorrido violado o princípio do in dubio pro reo.
Vejamos:
Dispõe o art. 154 (coacção) do Código Penal:
1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
(…)
O crime de coacção «constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção»[4].
Protege-se aqui a «liberdade de decisão e de ação», preenchendo-se o tipo objetivo de ilícito com a conduta de «constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação, ou suportar uma ação»[5].
O núcleo essencial da ação típica consiste na conduta de constranger (coagir) outra pessoa, mediante os meios tipificados na lei, a realizar uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade.
Os meios de execução do crime de coacção são o uso de violência ou de ameaça com mal importante.
A “violência” implica, em sentido restrito, o emprego de força física (o que se traduz num efeito corporal, acabando - se apenas considerado nesse sentido - por reduzir a pessoa praticamente à sua estrutura biológica, podendo, no entanto, ser entendida de modo mais amplo, por forma a abranger a violência psíquica, traduzindo-se esta numa pressão anímica exercida sobre a vítima, anulando, ainda que parcialmente, a sua vontade ou colocando-a numa situação de inferioridade que a impede de reagir como queria)[6].
Claro que se pode dizer que a agressão psicológica já é intimidação, ameaça mas, o entendimento de um conceito alargado de violência tem subjacente a lesão de direitos que estão garantidos à pessoa, na sua dimensão jurídica, devendo aqui ser aferida por referência ao bem jurídico em causa, que é a liberdade de ação e de decisão que, por aquele meio, é constrangida ou limitada de forma eficaz.
Por sua vez, “ameaçar” é anunciar o propósito de fazer mal a alguém, podendo abranger a coacção psicológica, traduzindo-se esta na perturbação da liberdade interior de decisão e da liberdade de ação da vítima.
Como se acentua no Ac. desta Relação de 07.01.2009[7] “com a ameaça cria-se no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, injusto ou justo, capaz de, no caso concreto, paralisar a sua reação.
O conceito de “ameaça” pressupõe, assim, um mal que seja futuro e, além disso, é essencial que a ocorrência desse “mal futuro” «dependa (ou apareça como dependente) … da vontade do agente».
Diz Taipa de Carvalho[8] que a característica de que «a ocorrência de “mal futuro” dependa ou apareça como dependente da vontade do agente» estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência (…)».
Dá-se uma ameaça com mal importante se a ameaça é idónea a perturbar um homem sensato na sua liberdade de decisão, independentemente de se traduzir na ameaça da prática de um crime.
A ameaça de mal importante há-de ser adequada a constranger o sujeito passivo, de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação.
A gravidade objetiva do mal ameaçado radica, na sua idoneidade para provocar na vítima um estado de temor tal, que seja induzida a escolher, como saída menos gravosa, a realização de determinado comportamento (uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade) querido pelo agente.
“Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado”[9].
O conceito de “constrangimento” implica ofensa do bem jurídico liberdade, pressupondo uma pressão sobre o coagido, através dos meios típicos da violência ou de ameaça de mal importante.
«A consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida», sendo a tentativa punida nos termos do nº 2 do art. 154 do CP.
Por seu turno, o tipo subjetivo exige dolo e basta-se «com a consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme»[10].
No caso em apreço, como resulta dos factos provados, a assistente saiu de casa conduzindo o seu veículo em direção a Valpaços e foi perseguida pelo veículo de matrícula ..-BC-.., com os dizeres J… na porta, onde seguia o arguido acompanhado de outro indivíduo; chegada a Valpaços, a assistente apanhou a estrada em direcção a Vila Pouca de Aguiar, continuando a ser perseguida pelo veículo do arguido; antes de chegar a Vila Pouca de Aguiar, a assistente parou, saiu do carro, tendo o arguido parado o carro em que seguia, dirigindo-se à assistente, perguntando-lhe se ía pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa; com receio que o arguido lhe fizesse alguma coisa, a assistente voltou a entrar no veículo e foi novamente perseguida até Vila Pouca de Aguiar; aí, como o arguido continuasse a persegui-la, entrou na A24 e só parou junto à rotunda de Verin, quando viu uma patrulha da Guardia Civil, a quem contou o que estava a acontecer; no regresso de Verin a Valpaços, a assistente foi de novo perseguida pelo arguido até à Zona Industrial ….
Com a atuação descrita, pretendia o arguido conseguir que a assistente procedesse ao pagamento da dívida, que aquele reclamava, o que não veio contudo a acontecer.
Refere-se na decisão recorrida (ponto 10 dos factos provados) que “ao perseguir a assistente e ao dirigir-lhe a expressão supra referida, o arguido agiu com a vontade livre e consciência de estar a anunciar-lhe que, caso não pagasse a suposta dívida, atentaria contra a sua integridade física, de modo idóneo a levá-la, como era sua intenção e por medo de concretização de tal promessa, a satisfazer aquela exigência”.
Contudo, a expressão proferida pelo arguido – “se ia pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa” – mais não é do que uma afirmação genérica que não concretiza o “mal importante” exigido no tipo.
Acresce que a decisão recorrida, na própria motivação de facto, não concretiza o “mal importante” com que o arguido terá ameaçado a assistente. Apenas se diz que a assistente “referiu que parou para encher uma garrafa de água e mesmo aí foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lhe havia de acontecer alguma coisa”. Contudo, tal “coisa” anunciada pelo arguido tanto pode referir-se a uma agressão física, como verbal, à provocação de um prejuízo material ou mesmo a uma ação a intentar em tribunal.
Todas as hipóteses são concebíveis, já que a decisão nada concretiza.
Como é possível concluir que a assistente ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física, se se desconhece ser esse o “mal”, a “coisa”, a que o arguido se referiu?
É até plausível que o arguido pretendesse referir-se à integridade física da assistente. Como também seria admissível que aludisse à própria vida daquela. Contudo, nem a própria assistente conseguiu concretizar “o mal” anunciado pelo arguido, limitando-se a dizer que “foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lha havia de acontecer alguma coisa”.
Não sendo possível determinar se tal “coisa” anunciada configura um “mal importante”, não é possível estabelecer o necessário nexo de causalidade entre a expressão proferida pelo arguido e o constrangimento eventualmente pretendido por aquele para que a assistente se visse compelida a pagar-lhe a quantia reclamada. Desconhece-se se a mesma é, objetivamente, susceptível de intimidar e, por isso, adequada a coagir, sendo certo que o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objetivo-individual.

Integrará, porém, a conduta do arguido o conceito de violência de que fala o preceito em apreço?
Como salienta Günther Jakobs[11] “a conformação típica do crime de coação encontra as suas origens «no desenvolvimento como bem protegido da liberdade geral de agir de cada um que (…) teve lugar na passagem do século XVIII para o século XIX» e no recurso à tradição histórica do crimen vis como «roupagem de que se revestiu o novo tipo da coação» para evitar os excessos punitivos a que a proteção genérica daquela liberdade poderia conduzir.
Compreende-se assim que a «violência», para efeitos de preenchimento do tipo do crime de coação, numa fase inicial, tenha sido estritamente compreendida como exercício de força física, material – como agressão corporal – sobre o respetivo sujeito passivo, mas também que um tal entendimento, face às inúmeras formas por que se pode agredir, limitando-a ou eliminando-a, a liberdade de atuação da pessoa, rapidamente tenha evoluído no sentido de uma «desmaterialização, espiritualização ou sublimação»[12]; ainda nas palavras de Jakobs: a relação «entre, por uma parte, a violência como forma delimitada de agressão e, por outra, uma proteção da liberdade calculável, tinha que repercutir-se, a largo prazo, em prejuízo da violência, ao menos no tocante à violência entendida como luta ou como anúncio de um enfrentamento»[13].
Donde, hoje em dia, para um setor significativo da doutrina, o conceito de violência deverá definir-se de forma ampla, a partir do efeito ou resultado da conduta. Exemplar neste sentido é a posição de Knodel, para quem constituirá violência «todo o comportamento destinado e adequado a superar a resistência efetiva ou esperada por parte do coagido, que lhe torne impossível, sem o seu comportamento, a formação ou atuação da sua vontade, ou lhe retire a sua liberdade de decisão mediante a inflição de um mal de certa gravidade»[14].
O conceito de violência, pois, abrange hodiernamente tanto a «intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido – vis phisica absoluta ou vis phisica relativa ou compulsiva) sobre a própria pessoa do coagido (…) como também a violência psíquica (…) e condutas que, apesar de não se traduzirem na utilização da força física, todavia eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou de resistência da vítima (…)», tal como condutas que, com esta mesma finalidade, se dirijam contra terceiros em relação de proximidade existencial com o sujeito passivo ou mesmo coisas[15].
Nestas circunstâncias, afigura-se-nos que, do ponto de vista qualitativo a conduta do arguido integra o conceito de violência pressuposto pelo tipo do crime de coacção do artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal: se alguém pretende circular livremente por uma estrada (nacional ou auto-estrada) e se sente constantemente perseguido ao longo de cerca de 80 Kms por um outro veículo automóvel em cujo interior sabe que se encontra outra pessoa que lhe vem exigindo o pagamento de determinada quantia para, daquele modo, diminuir ou eliminar a capacidade de decisão da pessoa perseguida e assim a intimidar à prática do ato pretendido, verifica-se, ainda que não exista propriamente contato físico entre as pessoas ou os veículos envolvidos, uma interferência sobre a livre atuação da vontade individual, que é, jurídico-penalmente, susceptível de integrar o conceito de «violência» psíquica.
Por outro lado, e agora do ponto de vista quantitativo, revestindo uma tal conduta, como sucede no caso vertente, a eficácia necessária para impedir o sujeito passivo de concretizar os seus intentos (isto é, de dar execução à sua decisão volitiva), não se vislumbra qualquer razão para concluir que um tal comportamento está para além do âmbito de proteção que o Direito Penal pretende assegurar à liberdade de atuação individual através da incriminação da coação. Tanto qualitativa como quantitativamente, portanto, a conduta aqui em causa reconduz-se à noção de «violência» enquanto meio comissivo do crime previsto e punido no artigo 154.º do Código Penal.
Daí que se mostre correta a integração da conduta do arguido na previsão típica do crime de coação p. e p. no artº 154º do Cód. Penal, na sua forma tentada, na medida em que o arguido praticou todos os atos de execução de forma a constranger, por meio de violência, a assistente a pagar-lhe a quantia em dinheiro que reclamava, sem que tal pagamento viesse a concretizar-se.
Refira-se ainda que a conduta do recorrente não configura, contrariamente ao que defende, uma mera advertência ou aviso. Tal só se verificaria, caso o arguido se limitasse a dizer à assistente que, se não efetuasse o pagamento reclamado, recorreria aos meios judiciais adequados, o que, efetivamente, não ocorreu.
*
Alega ainda o recorrente que houve erro notório na apreciação da prova testemunhal, uma vez que não existe prova testemunhal acerca das injúrias alegadamente proferidas nas bombas de gasolina, tendo o tribunal formado a sua convicção somente com base na versão relatada pela assistente, diametralmente oposta à do arguido, entendendo que foi violado o princípio in dubio pro reo.
Tal afirmação do recorrente é sintomática do seu equívoco em sede de recurso.
Com efeito, constata-se que incorre no erro usual, mas incompreensível, de tratar os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal, como verdadeiros vícios do julgamento, o que é incorreto: os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal não são, nem devem ser tratados, como verdadeiros vícios do julgamento, mas sim como vícios da decisão.
Ora, sob a capa de erro notório na apreciação da prova – vício que só releva se identificável no texto da decisão recorrida, art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal – alega o recorrente algo de muito diverso, o erro de julgamento, o que não resulta do texto da decisão recorrida, e só pode ser apurado se ocorrer impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412º n.º3 do Código Processo Penal.
Com efeito, pondo o recorrente em causa o julgamento e não a decisão, querendo questionar em recurso o julgamento, - saber se o julgamento da matéria de facto foi correto ou incorreto – e não apenas a decisão da matéria de facto, impunha-se apenas que deitasse mão da impugnação da matéria de facto prevista no art.º 412º n.º3 do Código Processo Penal[17].
E a esse respeito é manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação; apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância[18].
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[19], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica – e não como “novos julgamentos”.
Com efeito, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”[20].
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
Ora, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008[21], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- Desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorretamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
No caso em apreço, o que resulta das motivações do recorrente é que à versão acolhida pelo Tribunal recorrido, aquele pretende contrapor uma outra versão, refutando a apreciação que além se fez dos meios de prova produzidos.
O recorrente esquece completamente a norma nuclear contida no artº 127º do C.P.P., quanto à valoração da prova no decurso da audiência de julgamento.
No nosso sistema processual, como acontece aliás com a grande maioria dos países europeus, vigora o princípio da livre apreciação da prova, por contraposição ao sistema da prova legal. Em conformidade com o referido princípio, o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua íntima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos.
Assim, regra geral (e ressalvadas as excepções previstas na lei), na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. Normalmente o que sucede é que face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras, nada obstando a que esse convencimento parta de um registo mínimo, mas credível, de prova, em detrimento de vastas referências probatórias, que, contudo, não têm qualquer suporte de credibilidade.
Aliás, é constante a orientação dos nossos Tribunais Superiores segundo a qual a convicção do julgador da 1.ª instância só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Como se pode ler por exemplo, no Acórdão da Relação do Porto[22], “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127.º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, pág. 204. Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal.” - Cód. Proc. Civil Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss. (…)” O art.º 127.º do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (…)”.
Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
Da análise das motivações de recurso, confrontadas com a motivação da decisão recorrida, a conclusão que se retira é que o presente recurso de facto não se funda na desconformidade entre a prova produzida em audiência, aproveitada pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção, e os factos que, com base nela, veio a considerar provados, mas antes no entendimento do recorrente (alias, não justificado minimamente nas motivações), de que a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão oposta que veio a ser acolhida na sentença recorrida. Ou seja, o que o recorrente pretende é substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.
Note-se, por outro lado, que no que respeita à impugnação da matéria de facto provada, a lei refere que o recorrente deve especificar as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Não tendo o recorrente indicado quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida, para conhecer do recurso em matéria de facto este tribunal teria de apreciar toda a prova produzida na audiência de julgamento, ou seja, de proceder a um novo julgamento, como se o da 1ª instância não tivesse existido, sendo certo que o recurso em matéria de facto tem em vista remediar os males do julgamento da 1ª instância e não proceder a um novo julgamento, como se aquele não existisse.
É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
A circunstância de o tribunal recorrido ter atribuído credibilidade ao depoimento da testemunha D… que se encontrava na Zona Industrial e que referiu ter ouvido o arguido proferir as expressões “Puta” e “caloteira”, quando a acusação particular refere que a expressão “tens ar de puta” foi proferida junto às bombas de gasolina do E…, em Vila Pouca de Aguiar, não é susceptível de abalar a credibilidade que aquela testemunha mereceu ao tribunal recorrido. Por outro lado, não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pela assistente e as declarações do arguido, o tribunal atribua maior credibilidade a um do que a outro, na medida em que se encontram ambas sujeitas à livre apreciação do julgador.
E não se diga, como pretende o recorrente, que tendo o tribunal dado credibilidade à versão relatada pela assistente, quanto às injúrias proferidas, tendo o arguido negado terminantemente que a tivesse injuriado, foi violado o princípio “in dubio pro reo”.
Antes de mais, importa acentuar que o tribunal recorrido não se socorreu de tal princípio o qual apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece o arguido, porque não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou seguro do juízo de censura ao arguido.
No caso vertente, tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar o arguido com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.
Ora, se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objetiva, e de harmonia com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efetuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo, por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto.
Como vimos, no caso dos autos a livre apreciação da prova não conduziu nem poderia conduzir à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência do facto e do seu autor. Por isso, não há lugar a invocar aqui o princípio do in dubio pro reo.
Com a devida vénia transcreve-se parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2008, in processo n.º 07P4198, acessível em www.dgsi.pt, citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art.º 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indireta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador»[23]. […] Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos atos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a atuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Conclui-se assim que o entendimento do recorrente sobre a aplicação do princípio “in dubio pro reo” é errado e significa uma compreensão deficiente das regras de apreciação da prova, não se justificando a sua aplicação no caso em apreço.

Conclui-se assim que a decisão recorrida não patenteia os vícios apontados pelo recorrente, não merecendo qualquer censura por parte deste Tribunal, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando consequentemente a douta decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
*
Porto, 19 de Dezembro de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
__________________
[1] O tribunal dará cumprimento à norma (374.º, n.º2 do CPP) e tendo presente o disposto no art. 205.º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram. – Sérgio Poças, “Da sentença Penal – fundamentação de facto”, Revista Julgar, n.3, pág. 37.
[2] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] Cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed. Maio de 2012, p.568.
[5] Autor e ob. cit., pág. 570.
[6] A. Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 571, refere que “a distinção principal entre o conceito de violência e o conceito de ameaça reside na atualidade (ou na iminência) ou na futuridade do mal”.
[7] Proferido no Proc. nº 0816766, relatado pela Des. Maria do Carmo Silva Dias, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Ob. cit, pág. 553.
[9] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 573. Daí que, como salienta o mesmo Autor, «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente, as sub-capacidades (…) do ameaçado (quando conhecidas ou quando, se não conhecidas, o agente tinha o dever de as conhecer)».
[10] Taipa de Carvalho, ob. cit., págs. 574 e 575.
[11] Coacciones por medio de violencia, em Id., Estudios de Derecho Penal, Civitas, 1997, pág. 440-441.
[12] Cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 570.
[13] Ob. cit., pág. 443.
[14] In Der Begriff der Gewalt im Strafrecht, 1962, pág. 59, apud Juan Felipe Higuera Guimerá, El delito de coacciones, 1978, pág. 99.
[15] Taipa de Carvalho, ob. cit., págs. 570 e 571.
[16] Sobre a distinção entre a «dimensão qualitativa» e a «dimensão quantitativa» do conceito de violência, vd. Santiago Mir Puig, El delito de coacciones en el Código Penal, em Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales, tomo XXX, fascículo II, Maio-Agosto de 1977, págs. 274 e segs.
[17] Cfr. Maria João Antunes, RPCC, ano 4º (1994), Fasc. 1, pág. 121
[18] V. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I n.º 0 Maio de 1999, pág.
[19] In “O caso Julgado Parcial…”, 2002, pág. 37.
[20] Cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[21] Proferido no Proc. nº 07P4375, disponível em www.dgsi.pt
[22] Proferido em 17.09.2003, no âmbito do recurso nº 312082, disponível no site www.dgsi.pt
[23] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra, 1977.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/45b8b67a265e3ce080257aee003f47fd?OpenDocument

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

TRANSFERÊNCIA DE TRABALHADOR LOCAL DE TRABALHO GRUPO DE SOCIEDADES CLÁUSULA CONTRATUAL NULIDADE - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 08/11/2012

 
Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
875/11.8T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
PODERES DO TRIBUNAL
TRANSFERÊNCIA DE TRABALHADOR
LOCAL DE TRABALHO
GRUPO DE SOCIEDADES
CLÁUSULA CONTRATUAL
NULIDADE

Data do Acordão: 08-11-2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 685º-B DO CPC; 315º/3 DO CÓDIGO DO TRABALHO DE 2003.

Sumário: I – Na reavaliação de facto, o tribunal de recurso deve controlar a convicção do julgador na 1ª instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mas encontra-se impedido de controlar o processo lógico da convicção no segmento em que a prova produzida na 1ª instância escapa ao seu controle, quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.
II – O artº 315º/3 do CT/2003 permitia estipulações no contrato de trabalho que facilitassem a transferência de trabalhadores de uns locais para outros, unilateralmente ordenadas pelo empregador.




III – Porém, sob pena de inconstitucionalidade dessa norma, a mesma nunca poderia ser interpretada no sentido de permitir cláusulas que quebrassem todos os limites de protecção do trabalhador e permitissem ao empregador, a todo o tempo e por qualquer razão, transferir o trabalhador para qualquer outro local.




IV – Não se pode esquecer que em virtude da diferente posição negocial de ambas as partes, o trabalhador pode ser pressionado a aceitar uma cláusula de livre transferência sob pena de não celebrar o contrato, nem que é por referência ao seu local de trabalho que o trabalhador organiza o seu plano de vida.




V – Com efeito, não pode olvidar-se aqui o princípio da segurança no emprego estabelecido no artº 53º da CRP, que também impõe a estabilidade espacial do contrato de trabalho, sendo que, por isso, nenhuma norma jurídica poderá permitir, sob pena de inconstitucionalidade da mesma, a livre e unilateral alteração do local de trabalho pelo empregador.




VI – Assim, por violação do artº 315º/3 do CT/2003, na interpretação conforme à Constituição que dele tem de ser feita, será nula uma qualquer cláusula contratual constante de um contrato individual de trabalho em que se permite/acorda que o empregador possa modificar unilateralmente o local de trabalho, sem ser num quadro justificado por necessidades sérias de organização da empresa, avaliadas de acordo com o princípio da boa-fé, e mesmo que dessa modificação resultem prejuízos sérios para o trabalhador.




VII – O Título V do Código das Sociedades Comerciais (CSC) disciplina a matéria referente às sociedades coligadas, considerando como tais as sociedades em relação de simples participação, as sociedades em relação de participações recíprocas, as sociedades em relação de domínio e as sociedades em relação de grupo (artº 482º CSC).




VIII - Apesar da existência de um grupo de sociedades (sociedades coligadas), as sociedades que o integram mantêm as suas personalidades jurídicas, de modo que o empregador não é o grupo (que não tem personalidade jurídica), mas sim a sociedade que contratou o trabalhador em concreto.




IX – Por outro lado, mesmo em situações de grupo de sociedades, a licitude da ordem de transferência de trabalhador, em execução da qual este passe a desempenhar as suas funções em estabelecimento de outra entidade integrante do grupo, supõe que o trabalhador não deduza oposição à transferência.





Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra




I - Relatório




A autora instaurou a presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra a ré alegando ter sido despedida por esta em 04/08/2011 e juntando cópia da decisão de despedimento proferida em procedimento disciplinar que lhe foi instaurado pela ré.
Realizada a audiência de partes, frustrou-se a tentativa de conciliação.
Notificada para o efeito, a ré juntou o procedimento disciplinar (doravante designado por PD) e apresentou o articulado a motivar o despedimento, no qual pugna pela declaração de que o despedimento da autora pela ré foi regular e lícito, com a consequente improcedência da acção.
Alega, em resumo, que a autora, sua trabalhadora, faltou injustificadamente ao serviço por mais de 10 dias consecutivos, sendo que, com esse comportamento, a autora quebrou a relação de confiança subjacente ao contrato de trabalho, impossibilitando a subsistência do vínculo laboral; consequentemente, incorreu em justa causa de despedimento.
Acrescenta que, em qualquer caso, sempre deveria ser excluída a reintegração da autora (art. 392º do CT).
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A autora contestou, tendo sustentado, em resumo, que:
a) o procedimento disciplinar é inválido, porque violado o princípio do contraditório, na medida em que a ré procedeu à inquirição de testemunhas sem informar a autora da mesma;
b) não faltou ao trabalho nos termos descritos na decisão de despedimento, dada a ilicitude da ordem da ré de transferência da autora de posto de trabalho que esta não acatou, sendo a partir e em consequência das ausências decorrentes desse não acatamento dessa ordem que lhe foram averbadas as faltas que motivaram o despedimento.
Em reconvenção pede a condenação da ré no pagamento de uma indemnização em substituição da reintegração, à data de € 5.820, das retribuições que deixou de auferir desde 30 dias antes da data da propositura da acção e juros de mora a contar da data da citação.
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A ré apresentou resposta negando qualquer violação do princípio do contraditório, reafirmando o alegado no articulado motivador do despedimento e concluindo pela improcedência da reconvenção.
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A autora apresentou requerimento pedindo que se declare parcialmente nula a cláusula 3ª do contrato de trabalho junto pela ré com o articulado de resposta (constante de fls. 116/117), na medida em que menciona de forma genérica e indeterminada os locais onde a autora poderia prestar trabalho – fls. 122 a 124.
Apesar da oposição da ré (fls. 127 a 137), foi proferido despacho a admitir aquele requerimento como cumulação sucessiva de pedido – fls. 139 a 143.
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Procedeu-se a julgamento, com observância dos legais formalismos, após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:
“Face ao exposto, julga-se a acção procedente, e em consequência decide-se:
I) Reconhecer que o despedimento da autora A… promovido pela ré “R…,Lda, é ilícito por improcedência dos motivos justificativos do mesmo.
II) Declarar a nulidade da cláusula 3º do contrato junto a fls. 116/117 na parte em que permite a mudança do local de trabalho da trabalhadora sem exigir a não existência de prejuízo sério para o trabalhador e sem exigir a verificação de necessidades sérias de organização da empresa.
III) Condenar a ré a pagar à autora o seguinte:
III.1) a quantia de € 3.880,00 a título de indemnização por antiguidade;
III.2) a quantia de € 485,00 ilíquidos tantas vezes quantos meses decorreram e decorram entre 03.09.2011 e o trânsito em julgado da presente decisão a título de compensação conforme artº 390º do NCT – incluindo o correspondente a subsídio de férias e de Natal (proporcional) –, com dedução daquilo que a autora tenha recebido seja a título de subsídio de desemprego seja por via de outra actividade que tenha iniciado;
III.3) juros de mora à taxa legal (presentemente de 4%), desde a presente data até integral pagamente.
Valor da acção (artº 98º-P do CPT): € 7.275,00.
Custas pela ré.”.
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A ré recorreu da sentença, de facto e de direito, e do despacho de fls. 139 a 143 que admitiu a cumulação sucessiva de pedido, pugnando pela alteração de alguns pontos da matéria de facto que considerou incorrectamente julgados, bem como pela integral revogação de ambas as decisões impugnadas.
Para tanto, apresentou as seguintes conclusões:
[…]
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A autora contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões: 
[…]
*
A ré respondeu às contra-alegações da autora, concluindo como segue:
[…]
*
Nesta Relação, a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer que consta de fls. 318 a 324, concluindo que:
a) não deve conhecer-se da nulidade da sentença invocada pela ré, por inobservância do art. 77º/1 do CPT;
b) deve conhecer-se do recurso sobre a matéria de facto;
c) deve improceder o recurso sobre a matéria de facto;
d) no recurso da ré vem suscitada uma questão nova e da qual não deve conhecer-se – a do despedimento da autora com fundamento em uso de baixa fraudulenta para justificação de faltas;
e) deve improceder o recurso da ré referente à matéria de direito, por inexistência de justa causa para o despedimento da autora;
f) julgando-se improcedente o recurso da ré, não deve conhecer-se da ampliação do recurso requerida pela autora.
*
A ré respondeu a esse parecer nos termos constantes de fls. 327 a 331, concluindo, como já tinha feito nas alegações, pela revogação das decisões recorridas.
*
II – Questões a decidir
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, as questões suscitadas e a decidir são as seguintes:




1ª) Se deve conhecer-se das nulidades da sentença arguidas pela apelante.
2ª) Se a sentença padece dessas nulidades, por não especificar os elementos de facto e de direito que justificam a decisão e porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão.
3ª) Se deve tomar-se conhecimento do recurso, na parte em que no mesmo se impugna a decisão de 19/1/2012  que admitiu a cumulação sucessiva de pedido (fls. 139 a 143).
4ª) Se devem ser admitidos o recurso sobre a matéria de facto da apelante e as contra-alegações da apelada.
5ª) Se foi incorrectamente julgada a matéria de facto descrita nos pontos 20º), 23º), 30º) dos factos provados.
6ª) Qual o fundamento que deve ter-se por invocado pela apelante, como justa causa para a cessação unilateral do contrato de trabalho, na decisão disciplinar que sancionou a apelada com o despedimento: apenas as faltas ao trabalho no estabelecimento de Santa Maria da Feira ou, também, as faltas ao trabalho no escritório de Ovar, bem assim como o recurso fraudulento à baixa médica a fim de se eximir à prestação de trabalho? 
7ª) Se a cláusula 3ª) do contrato de trabalho em que a autora outorgou padece de uma qualquer causa de invalidade.
8ª) Se a ré podia ter validamente determinado a transferência do local de trabalho da autora para um estabelecimento pertencente a outra empresa.
9ª) Se o não cumprimento pela autora dessa determinação da ré, não comparecendo para prestar trabalho nesse outro estabelecimento, fez incorrer a autora em faltas injustificadas.
10ª) Se a autora recorreu fraudulentamente ao mecanismo da baixa médica por doença para se furtar à prestação de trabalho.
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III – Fundamentação




Questões prévias 




Primeira questão: Se deve conhecer-se das nulidades da sentença arguidas pela apelante.




Importa, antes de mais, emitir pronúncia sobre a arguição de nulidades da sentença levada a efeito pela apelante.
Fazendo-o, cumpre dizer, antes de mais, que a forma pela qual as nulidades foram arguidas respeita o comando normativo do art. 77º/1 do CPT.
Com efeito, num único requerimento datado de 23/5/2012 (Refª: 10250123 – fls. 238 e ss), a apelante começou por arguir nulidades da sentença, de forma expressa e separada (fls. 239 a 243), e a seguir interpôs recurso da mesma sentença, com apresentação das correspondentes alegações e conclusões (fls. 244 a 269).
Por outro lado, estando em causa uma acção que admite recurso ordinário, a arguição de nulidades deveria ser dirigida ao tribunal ad quem, o que a apelante também respeitou.
Termos em que se decide tomar conhecimento da arguição de nulidades feita pela apelante.
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Segunda questão: Se a sentença padece de nulidades, por não especificar os elementos de facto e de direito que justificam a decisão e porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão.








Adiante-se, agora, que a arguição de nulidades deve improceder.
De facto, não pode acolher-se, com o devido respeito, a afirmação da apelante no sentido de que “A sentença é nula porquanto não especifica os elementos de facto e de direito que justificam a decisão…”, com a consequente nulidade prevista no art. 668º/1/b do CPC.
Como escreveu Rodrigues Bastos a propósito da causa de nulidade em apreço, “A falta de motivação a que alude a al. b) do nº1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença.” – Notas ao CPC, III, 3ª ed., pág. 194.
Ora, a sentença impugnada não padece, manifestamente, do vício em consideração.
Os fundamentos de facto estão enunciados na descrição dos factos dados como provados – fls. 217 a 223.
Por outro lado, a fls. 224 a 235 da sentença recorrida, são invocadas, interpretadas e aplicadas aos factos provados as normas legais com fundamento nas quais se veio a concluir, a final, pela ilicitude do despedimento da apelada, posto que efectuado com fundamento em faltas injustificadas imputadas à trabalhadora mas que, em rigor factual e legal, não podiam ter-se por verificadas, com a consequente inexistência da infracção disciplinar com fundamento na qual a apelada foi despedida  e efeitos jurídicos daí decorrentes (v.g. arts. 193º, 194º/1/3/4, 248º/1, 288º, 289º/1/b/c, 315º, 351º/1/2/a/d/e/g/3, 381º/b, 390º, 391º,  todos do CT/09, 488º, 489º, 493º do CSC.
Consequentemente, tem-se por não verificada a causa de nulidade em apreço.
Sustenta a apelante, igualmente, que a sentença é nula, pois que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão (artigo 668º/1/c CPC).
É sabido que quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete – a construção da sentença é, então, viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (A. Reis, CPC Anotado, Vol. V, pág. 141).
“A oposição referida na al. c) do nº1 é a que se verifica no processo lógico por via do qual das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas este extrai a decisão a proferir.” (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. III, pág. 246).
Como escrevem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2ª Ed., 1985, pág. 690), a causa de nulidade em apreço abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples “lapsus calami” do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto, ou, pelo menos, direcção diferente.
No mesmo sentido, entre muitos outros, podem ver-se os acórdãos do STJ, de 22/01/98, proferido no processo nº 604/97, e de 29/09/98, proferido no processo nº 567/98.
Em suma, no que concerne à nulidade em apreço, indispensável será, para que a mesma possa ser tida como verificada, que os fundamentos invocados pelo juiz devam logicamente conduzir a resultado oposto ao que vem expresso na sentença: se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma. Ou seja, constituem realidades distintas a aludida nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo este uma apreciação da questão em desconformidade com a lei. Ou, dito de outro modo, conforme Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (ob. Cit. pág. 686), “…não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado «erro de julgamento», a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”. 
Ora, assim entendida a questão, nenhuma contradição se vislumbra entre, por um lado, os fundamentos convocados para a decisão recorrida (ilicitude da ordem de transferência de posto de trabalho dada pela apelante à apelada, consequente inexistência de faltas injustificadas e da correspondente infracção disciplinar invocada na decisão de despedimento, e consequente inexistência de justa causa de despedimento), e, por outro lado, o sentido em que esta foi proferida (declaração de ilicitude do despedimento e condenação da apelante a satisfazer determinados direitos de crédito da apelada emergentes daquela ilicitude), antes se encontrando uns e outra em total sintonia jurídica.
Diga-se, aliás, que ao contrário do sustentado pela apelante, não se verifica qualquer contradição entre o que se deu como provado no ponto 19º) dos factos provados e a decisão de declarar a ilicitude do despedimento levado a cabo pela apelante com fundamento em que a apelada não incorreu em faltas injustificadas: no ponto 19º) dos factos provados apenas se deu como provado o teor de uma resposta da apelada, através do seu ilustre mandatário, a uma comunicação da apelante, sem que isso signifique dar-se como provado a materialidade dos factos afirmados nessa resposta (por exemplo, dar-se como provado que uma parte comunicou à outra, por escrito, a ocorrência de determinado facto, não significa dar como provada a efectiva ocorrência desse mesmo facto).
Dar-se como provado que a apelada declarou que iria apresentar-se diariamente nas instalações da “Letimus” para trabalhar, a não ser que lhe fosse comunicado pela apelante que estava dispensada de o fazer, não implica dar-se como provado que efectivamente a apelada se apresentou no local e termos anunciados, nem que a mesma não tinha outras justificações para não se apresentar naquele local para lá da radicada numa eventual comunicação de dispensa de comparência por parte da apelante.
Finalmente, saber se efectivamente as ausências da autora devem ou não ser qualificadas como faltas injustificadas, apesar do que se deu como provado no ponto 19º) dos factos provados, é matéria que contende com o mérito da acção, não com a nulidade da sentença em apreciação.
Termos em que improcede a arguição de nulidades da sentença.




Terceira questão: Se deve tomar-se conhecimento do recurso, na parte em que no mesmo se impugna a decisão de 19/1/2012  que admitiu a cumulação sucessiva de pedido (fls. 139 a 143).








No requerimento de fls. 122 a 124, com fundamento em indeterminabilidade do objecto e no disposto no art. 280º do CC, a autora requereu a declaração de nulidade parcial da cláusula 3ª do contrato de trabalho junto aos autos pela ré (fls. 116 e 117), na parte em que estabelece que a trabalhadora pode ser colocada a trabalhar em “… qualquer outro local indicado por primeiro Outorgante que seja imposto pela natureza das funções próprias do segundo Outorgante”, bem como na parte em que o segundo Outorgante “declara aceitar ser transferido ou deslocado para qualquer outro local de trabalho, sempre que o Primeiro Outorgante, por sua conveniência, assim o entenda”.
Admita-se, por mera comodidade de raciocínio, que o despacho que admitiu a cumulação sucessiva cometeu uma qualquer infracção por violação interpretativa dos dispositivos legais invocados na conclusão 26ª de fls. 267, devendo, por consequência, ser substituído por outro que não admitisse a cumulação sucessiva nele admitida. 
Ainda que assim fosse, o tribunal recorrido sempre estaria obrigado a conhecer da questão da nulidade da cláusula em questão.
Com efeito, entre o mais que alegou para justificar a legitimidade da ordem de transferência da autora de Ovar para Santa Maria da Feira, a ré pretendeu prevalecer-se do teor da cláusula 3ª em questão – para assim concluir basta atentar, por exemplo, no alegado pela apelante nos arts. 8º e 9º do articulado de motivação do despedimento e no 17º da resposta ao articulado da trabalhadora com a qual juntou o contrato de trabalho do qual consta a dita cláusula.
As nulidades são de conhecimento oficioso pelo tribunal – art. 286º CC.
Assim sendo, perante a invocação daquela cláusula por parte da empregadora, era dever do tribunal apreciar se a mesma está ou não ferida de qualquer causa de nulidade, designadamente por indeterminabilidade do seu objecto (art. 280º do CC) ou por violação das disposições conjugadas do art. 315/1/2/3 do CT/03, devendo declará-la oficiosamente em caso de resposta afirmativa à questão, independentemente de qualquer requerimento por parte da trabalhadora solicitando a expressa declaração da nulidade.
Portanto, mesmo que não admitisse a cumulação sucessiva que admitiu, o tribunal a quo teria de ter apreciado a nulidade da cláusula em questão e declará-la se entendesse que a mesma se verificava, como efectivamente entendeu.
Como assim, o conhecimento da questão da nulidade da dita cláusula 3ª e a declaração da mesma teriam que ter sido efectuadas nos termos em que o foram na sentença recorrida, mesmo que a autora não tivesse requerido a declaração de nulidade e mesmo que o requerimento em que o solicitou não tivesse sido admitido.
Assim, mesmo no caso de eventual procedência do recurso do despacho que admitiu  cumulação sucessiva, daí não resultaria qualquer impedimento a que o senhor Juiz recorrido conhecesse, como efectivamente conheceu, da nulidade da cláusula em questão.
Por outro lado, nas suas conclusões de recurso a apelante não se insurge contra o entendimento explanado na sentença recorrida no sentido da nulidade parcial da cláusula, nos exactos termos em que essa nulidade foi declarada; o que a recorrente fez, foi, tão-só, sustentar que o tribunal recorrido não devia ter conhecido dessa questão, por ter admitido ilegalmente o requerimento em que foi peticionada a declaração de nulidade.
Assim sendo, assistindo ao tribunal recorrido a possibilidade legal de declarar oficiosamente a nulidade da cláusula em questão nos exactos termos em que o fez e não tendo a apelante impugnado do ponto de vista substantivo essa declaração de nulidade, evidente é que transitou em julgado a declaração de nulidade parcial contida na sentença recorrida; isto, evidentemente, sem prejuízo dessa declaração de nulidade poder ser ampliada se vier a ser admitida e proceder a ampliação de recurso sustentada pela apelada.
Tudo para dizer que ainda que procedesse o recurso na parte em questão, essa procedência era por si insusceptível de provocar qualquer modificação na sentença recorrida na parte em que a mesma declarou a nulidade parcial da cláusula 3ª supra referida, pelo que nunca poderia ser provido o presente recurso na parte em apreço, face ao regime do art. 79º-A/4 CPT.
De tudo se conclui, pois, pela inutilidade do recurso na parte em que no mesmo se impugna a decisão de 19/1/2012  que admitiu a cumulação sucessiva de pedido (fls. 139 a 143), razão pela qual se decide não se tomar conhecimento dessa parte do recurso.




*
B) De facto
B.1) Apreciação do recurso da matéria de facto




Quarta questão: Se devem ser admitidos o recurso sobre a matéria de facto da apelante e as contra-alegações da apelada.




O art. 685º-B CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso referido na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do nº2 do art. 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.”.
O art. 522º-C/2 CPC determina:
“Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.”
Consultada a acta da sessão da audiência de 28/3/2012 (fls. 202 a 205), logo se verifica que não foi dado cumprimento ao art. 522º-C/2 CPC, com a consequente inaplicabilidade do art. 685º-B/2 CPC, razão pela qual nunca o recurso da apelante podia ser rejeitado com fundamento na inobservância deste último normativo.
De resto, a apelante transcreveu as passagens dos depoimentos das testemunhas que considera relevantes para efeitos de alteração de determinados pontos da matéria de facto que igualmente indica, razão pela qual nunca teria aplicação a exigência de indicar “…com exactidão as passagens da gravação em que se funda…”, substituída, nesse caso, pela própria transcrição das passagens dos depoimentos que pretende ver consideradas no recurso.
É de admitir, assim, o recurso da apelante sobre a matéria de facto.
Cumpre apreciar, agora, se devem ser admitidas as contra-alegações da recorrida referentes ao recurso sobre a matéria de facto.
Competia à recorrida “…, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.” – art. 685º-B/3 CPC.
Repare-se que este nº 3, ao contrário do nº 2, do art. 685º-B CPC não comina qualquer sanção para a inobservância do nele estatuído, sendo que não cabe ao intérprete estabelecer cominações onde o legislador as não estabeleceu.
A única consequência decorrente dessa omissão do recorrido será, porventura, a de perder a oportunidade de chamar à atenção do tribunal ad quem para determinados aspectos e passagens da prova testemunhal produzida que contrariem a pretensão recursiva do apelante.
Por outro lado, a recorrida invoca as testemunhas por si arroladas e inquiridas para demonstração das suas apresentações diárias em Ovar (último parágrafo do capítulo V das contra-alegações – fls. 283) e transcreve partes de depoimentos prestados em audiência que pretende ver valorados em seu benefício (fls. 283 e 284) e, naturalmente, em prejuízo da pretensão recursiva da apelante.
Importa dizer, ainda, que o recurso interposto pela apelante incide sobre a matéria de facto, razão pela qual a mesma beneficiou de um prazo de 30 dias (art. 80º/1/3 do CPT).
Por isso, independentemente do teor concreto da contra-alegação que viesse concretamente a apresentar (só sobre a matéria de facto, só sobre a de direito, ou sobre ambas), o prazo para contra-alegar era, sempre, igual ao de que a apelante beneficiou para a interposição de recurso – 30 dias (art. 81º/2 do CPT).
Consequentemente, ao contrário do pretendido pela apelante, as contra-alegações da apelada não padecem de qualquer vício que justifique a declaração da sua inexistência e o seu desentranhamento, com devolução à apresentante, tendo as mesmas sido apresentadas no prazo legal de que a apelada beneficiava para o efeito.
Como assim, admite-se o recurso  sobre a matéria de facto da apelante, do mesmo modo que se admitem as contra-alegações da apelada, com o esclarecimento de que a admissão dessas contra-alegações não significa, sem mais, a admissão da ampliação do recurso pela qual aí se pugna.
*
Quinta questão: Se foi incorrectamente julgada a matéria de facto descrita nos pontos 20º), 23º), 30º) dos factos provados.




Importa ter presente, antes de mais, que como tem sido repetidamente afirmado por esta Relação (v.g. o recente acórdão de 20/9/2012, proferido na apelação nº 229/10.3TTGRD.C1, que subscrevemos como adjunto, intervindo neste acórdão como adjunto o relator daquele), “na reavaliação de facto o tribunal de recurso deve controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mas encontra-se impedido de controlar o processo lógico da convicção no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle, quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação. Como referiu o Acórdão desta Relação, de 3/10/2000, in CJ, tomo 4, pág. 27, “a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artigo 655, n.º 1 do C. P. Civil … E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova – seja áudio seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis …”. 
No seguimento de tais princípios, tem entendido a nossa jurisprudência, maioritariamente, que só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1.ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento, que não ocorrerá perante elementos de prova contraditórios, caso em que deverá prevalecer a resposta dada em 1.ª instância, no domínio da convicção que formou com fundamento no princípio da sua livre convicção e liberdade de julgamento.”
                        […]




*
B.2) Factos provados




Face a quanto se deixou já decidido, são os seguintes os factos provados:
[…]
*
C) De direito




Sexta questão: Qual o fundamento que deve ter-se por invocado pela apelante, como justa causa para a cessação unilateral do contrato de trabalho, na decisão disciplinar que sancionou a apelada com o despedimento: apenas as faltas ao trabalho no estabelecimento de Santa Maria da Feira ou, também, as faltas ao trabalho no escritório de Ovar, bem assim como o recurso fraudulento à baixa médica a fim de se eximir à prestação de trabalho?




Por referência a esta questão, importa ter presente os seguintes aspectos:
1- Em 5/4/2011, a autora tinha como local de trabalho os escritórios da apelante situados rua ..., em Ovar;
2- Nessa data e para produzir efeitos a partir de 15/4/11, a ré comunicou à autora que o local de trabalho desta passaria temporariamente a ser a loja F... em Santa Maria da Feira – ponto 7º) dos factos provados;
3- Entre 15/4/2011 e 3/5/2011, a autora esteve de baixa médica – ponto 14º) dos factos provados;
4- Perante comunicações escritas que lhe foram dirigidas pela autora no sentido de que não acatava a ordem de transferência de local de trabalho, de Ovar para Santa Maria da Feira, a ré manteve, por duas vezes, em comunicações escritas que dirigiu à autora em 3/5/2011 e 4/5/2011, essa ordem de transferência temporária de local de trabalho, mais tendo informado a autora de que as ausências ao trabalho em que a autora incorresse por referência à loja de Santa Maria da Feira seriam consideradas faltas injustificadas – pontos 16º) e 18º) dos factos provados;
5- Findo o período de baixa médica, a autora apresentou-se para trabalhar, no dia 4/5/2011, nos escritórios de Ovar, sendo que nesse dia foi reiterado à autora que o seu local de trabalho não era, nessa altura, em Ovar, mas sim na loja de Santa Maria da Feira, onde se deveria apresentar para trabalhar – pontos 20º) e 22º) dos factos provados;
6- Depois de não se ter apresentado na loja de Santa Maria da Feira entre os dias 4 e 8 , correspondendo os dias 4 e 5 aos dias de folga que estavam assinalados para a autora naquela loja, a autora entrou de baixa médica no dia 9/5/2011, situação que se manteve até ao dia  25/5/2011, data em que a situação de baixa médica foi cessada pelos serviços de verificação de incapacidade da segurança social – pontos 21º), 23º), 24º), 25º), 27º) e 29º) dos factos provados.
Não consta dos autos, nem resulta dos factos provados que a apelante alguma vez tenha comunicado à apelada, em especial depois de 4/5/2011, que ficava sem efeito a ordem de transferência temporária de local de trabalho de Ovar para Santa Maria da Feira, em consequência do que a autora deveria voltar a apresentar-se ao trabalho em Ovar.
Resulta de quanto vem de expor-se que a ré exerceu o direito potestativo que considerava assistir-lhe de transferir temporariamente a autora do seu local de trabalho, não resultando dos autos que a mesma alguma vez tenha dado sem efeito, até 9/6/2011 (fls. 39), a ordem de transferência em que se materializou o exercício daquele direito.
Como assim, o local de trabalho da autora e que lhe foi assinalado como tal pela ré foi, a partir de 15/4/2011, o correspondente à loja de Santa Maria da Feira; por isso, na ausência de qualquer evidência de que a ré tenha dado sem efeito aquela ordem de transferência e a modificação temporária do local de trabalho dela decorrente, evidente se nos afigura que só poderiam ser contabilizadas como faltas da autora as ausências ao trabalho protagonizadas pela mesma em relação à mencionada loja, sem qualquer possibilidade de como tal serem contabilizadas as ausências da autora protagonizadas em relação aos escritórios de Ovar, que deixaram transitoriamente de ser o local de trabalho da autora.
De resto, foi nesse sentido e com o mesmo entendimento que actuou a ré em todo o processo disciplinar que moveu à autora.
Com efeito, em 9/6/2011, a ré decidiu-se pela instauração de um processo disciplinar à autora, nos termos seguintes (fls. 39):
Verificando-se que a trabalhadora A…, até à presente data não se apresentou no local de trabalho que lhe foi determinado, sendo esse comportamento susceptível de procedimento disciplinar, determina-se a abertura do mesmo, elaborando-se a respectiva Nota de Culpa a ser comunicada à trabalhadora, com cópia da correspondência trocada no âmbito da transferência temporária do local de trabalho e documentação conexa que circunstancia a ausência ao trabalho.
O local de trabalho “…que lhe foi determinado …”, ao qual a autora não se apresentou e que se mostra referido no despacho de abertura do processo disciplinar era, como é óbvio, o correspondente à loja de Santa Maria da Feira; por outro lado, é a própria ré quem se refere, no despacho de abertura do processo disciplinar, “… à correspondência trocada no âmbito da transferência temporária de local de trabalho …”, assim associando o processo disciplinar à ordem de transferência, ao não cumprimento dela e às faltas ao trabalho daí decorrentes.
Além disso, no relatório final do processo disciplinar que a ré deu como reproduzido na decisão de despedimento, diz-se claramente o seguinte:
Com a ordem de transferência do local de trabalho não foram ofendidos quaisquer direitos da trabalhadora uma vez que a distância entre os dois postos de trabalho era de apenas 15 kms, existindo transportes públicos que asseguram a deslocação para cumprir os horários solicitados, designadamente autocarro, conforme documento 2, junto com a Nota de Culpa.
Por outro lado, justificava-se e existia interesse por parte da entidade patronal que exigia a transferência, pois o não cumprimento dos horários do centro comercial coloca o lojista (entidade patronal) numa situação de incumprimento com elevadas penalizações pecuniárias.
Apesar de considerada apta a trabalhadora-arguida não se apresentou ao trabalho, nem encetou qualquer contacto com a entidade patronal, faltando injustificadamente desde o dia 26 de Maio até à instauração do procedimento disciplinar, bem como em todos os dias que se lhe seguiram.
Destas passagens do dito relatório, que a ré fez seu na decisão final de despedimento da autora resulta inequívoco que o fundamento invocado para integração de justa causa de despedimento da autora foi, exclusivamente, o das faltas injustificadas da autora ao trabalho que a mesma deveria ter prestado na loja de Santa Maria da Feira e não prestou.
De tudo se conclui, assim, no sentido de que o fundamento invocado pela ré para despedir a autora com justa causa foi, exclusivamente, o das faltas injustificadas ao trabalho cometidas por referência à loja de Santa Maria da Feira, de nada relevando as eventuais faltas da autora ao escritório de Ovar.
Por outro lado, dos fundamentos pelos quais a autora foi despedida pela ré não consta, ao contrário do que parece ser sustentado pela apelante, o recurso indevido pela autora ao mecanismo da baixa médica por doença a fim de se furtar à prestação efectiva de trabalho.
Como assim, o tribunal a quo só podia apreciar, como fez, a regularidade e licitude do despedimento da autora levado a efeito pela ré com fundamento nas faltas dela ao trabalho na loja de Santa Maria da Feira, estando-lhe absolutamente vedado apreciar quaisquer ausências da autora cometidas por referência aos escritórios em Ovar e a relevância das mesmas para efeitos disciplinares.
Nenhuma censura merece o tribunal a quo, pois, ao limitar-se a apreciar a regularidade e licitude do despedimento da autora fundado em faltas dadas pela mesma relativamente à loja de Santa Maria da Feira, ignorando absolutamente as eventuais faltas dadas pela autora relativamente aos escritórios de Ovar.
*
Sétima questão: Se a cláusula 3ª) do contrato de trabalho em que a autora outorgou padece de uma qualquer causa de invalidade.




É do seguinte teor a cláusula 3ª) do contrato de que emergiu a relação de trabalho entre a autora e a ré:
«O local de trabalho do segundo Outorgante serão os escritórios da empresa de agenciamento de serviços de telecomunicações e informação do primeiro Outorgante, situados na…, Ovar, ou qualquer outro local indicado por primeiro Outorgante que seja imposto pela natureza das funções próprias do segundo outorgante. 
Ponto único: O segundo Outorgante desde já declara aceitar ser transferido ou deslocado para qualquer outro local de trabalho, sempre que o primeiro Outorgante, por sua conveniência, assim o entenda.».
Nada obsta, sendo que ninguém a discute nos autos, à validade do segmento dessa cláusula que fixou como local de trabalho da autora o correspondente aos escritórios da ré em Ovar.
Porém, essa cláusula é nula na parte em que a mesma fixa como outro local de trabalho, em alternativa ao dos escritórios em Ovar, qualquer outro que viesse a ser determinado pelo empregador, aceitando o trabalhador, desde logo, ser transferido para qualquer outro local de trabalho, sempre que o empregador o entendesse em função das suas próprias conveniências.
Com efeito, essa cláusula é nula, desde logo, na parte em que permite uma transferência unilateral de posto de trabalho pelo empregador, ainda que não ditada por necessidades sérias de organização da empresa do empregador, avaliadas de acordo com o princípio da boa-fé, e mesmo que dela decorram prejuízos sérios para o trabalhador.
Na verdade, o art. 315º/3 do CT/2003, vigente à dada da celebração do contrato do qual consta a cláusula em apreciação (estando em causa um problema de validade ou invalidade de um determinado contrato de trabalho, a lei a ter em consideração para o efeito é a que estiver em vigor à data da celebração do contrato – sobre este tema e neste sentido, a propósito da aplicação das leis no tempo em matéria de validade dos contratos em geral, de modo perfeitamente transponível para o contrato de trabalho, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, págs. 233 e 234, P. Lima e A. Varela, CC Anotado, I, anotação ao art. 12º/2; cfr., também, art. 7º/1 da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro), permitia estipulações no contrato de trabalho que facilitassem a transferência de trabalhadores de uns locais para outros, unilateralmente ordenadas pelo empregador.
Porém, sob pena de inconstitucionalidade dessa norma, a mesma nunca poderia ser interpretada no sentido de permitir  clásusulas que quebrassem todos os limites de protecção do trabalhador e permitissem ao empregador, a todo o tempo e por qualquer razão, transferir o trabalhador para qualquer outro local.
Não se pode esquecer que em virtude da diferente posição negocial de ambas as partes, o trabalhador pode ser pressionado a aceitar uma cláusula de livre transferência sob pena de não celebrar o contrato, nem que é por referência ao seu local de trabalho que  o trabalhador organiza o seu plano de vida.
Com efeito, não pode olvidar-se aqui o princípio da segurança no emprego  estabelecido no art. 53º da CRP, que também impõe a estabilidade espacial do contrato de trabalho, sendo que, por isso, nenhuma norma jurídica poderá permitir, sob pena de inconstitucionalidade da mesma, a livre e unilateral alteração do local de trabalho pelo empregador (cfr. José  Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2ª ed., AAFDL, 2004, págs. 586 ss). 
Por isso, tem de interpretar-se o art. 315º/3 do CT/2003 em conformidade com a CRP por forma a que a segurança no emprego não seja irremediavelmente posta em causa e de modo a que não se abra a porta a despedimentos encobertos por ordens de transferência.
Ou seja, a estipulação contratual que permita a transferência de local de trabalho por decisão do empregador  pode definir qual o interesse da empresa que releva e quando há ausência de prejuízo sério do trabalhador, mas não pode atribuir um poder incondicionado de alteração unilateral do local de trabalho (João Leal Amado, Local de Trabalho, estabilidade e mobilidade: o paradigma do trabalhador on the road?” - Temas Laborais, Coimbra Editora, págs. 65 a 82).
A este respeito, Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, 2ª ed., Almedina, pág. 716 ss) escreve que a cláusula contratual que admite a modificação unilateral do local de trabalho só permitirá alterações justificadas num parâmetro de boa-fé, razão pela qual o empregador não pode transferir o trabalhador sem um motivo de gestão empresarial.
A liberdade contratual tem limites relacionados com o princípio da boa-fé; daí que a cláusula de mobilidade tem de ter sempre uma justificação empresarial, fundada no interesse da empresa, e não pode ser dada a ordem de transferência do posto de trabalho com finalidades diversas, nomeadamente com intuito  persecutório – cfr. Catarina Carvalho, A Mobilidade Geográfica dos Trabalhadores no Código do Trabalho”, VII Congresso Internacional de Direito do Trabalho, Almedina, págs. 46 ss.
Como assim, por violação do citado art. 315º/3 do CT/03, na interpretação conforme à Constituição que dele tem de ser feita, a parte da cláusula 3ª em apreciação é nula se e na medida em que permite à empregadora modificar unilateralmente o local de trabalho sem ser num quadro justificado por necessidades sérias de organização da empresa, avaliadas de acordo com o princípio da boa-fé, e mesmo que dessa modificação  resultem prejuízos sérios para a trabalhadora.
Para lá disso, na parte em que está a ser apreciada, a dita cláusula terceira é também nula, por indeterminabilidade do seu objecto e por violação dos bons costumes (art. 280º).
Com efeito, mesmo no âmbito do CT/2003, a possibilidade de as partes estipularem sobre a mobilidade geográfica através da inclusão de cláusulas de mobilidade tem de compaginar-se com as seguintes regras (art. 280º do CC): determinabilidade do objecto do contrato e das suas cláusulas; respeito pelos bons costumes, entendidos estes como o conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam como contrárias à imoralidade ou indecoro social).
Neste enquadramento, devem considerar-se nulas, por indeterminabilidade do seu objecto (art. 280º/1 CC), as cláusulas de mobilidade das quais resulte uma indeterminação do parâmetro geográfico dentro do qual o trabalhador possa ser obrigado à sua prestação contratual, indeterminação essa que se regista sempre que não possa estabelecer-se uma previsão sobre a área geográfica dentro da qual o trabalhador pode ser unilateralmente mobilizado pelo empregador.
É o que acontece com a citada cláusula 3ª, na parte em apreciação, da interpretação literal da qual resulta que a ré ficava constituída no direito a exigir da autora a prestação laboral a que esta se obrigou, em qualquer local (em território nacional – continental ou insular – ou estrangeiro) onde a ré o considerasse necessário.
Neste enquadramento, não era possível à autora ou a quem quer que fosse estabelecer qualquer espécie de previsão sobre a área geográfica dentro da qual a ré estava contratualmente habilitada a mobilizá-la: ao abrigo daquela cláusula a autora poderia ser mobilizado para qualquer local indicado pela ré, quaisquer que fossem as consequências pessoais e/ou patrimoniais que daí pudessem resultar para a autora e respectivo agregado familiar.
Por outro lado, não pode deixar de considerar-se que a concessão à ré, ainda que por via contratual, de tão amplos e ilimitados poderes de mobilização geográfica da autora, independentemente das consequências decorrentes para ela de tal mobilização, ofende as regras dos bons costumes, entendidos estes no sentido acima evidenciado; com efeito, a nosso ver, é imoral e indecoroso que alguém possa estar sujeito a tamanho e ilimitado poder de mobilização geográfica por parte do seu empregador, especialmente quando essa mobilização não tenha que ser motivada pelo empregador e possa ser imposta independentemente dos prejuízos daí resultantes para o trabalhador e seu agregado familiar.
Como assim, tal cláusula também dever ter-se por nula (art. 280º/2 CC).
A nulidade parcial da cláusula 3ª que vem sendo referida deve ser declarada oficiosamente (art. 286º CC).
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Oitava e nona questões:  Se a ré podia ter validamente determinado a transferência do local de trabalho da autora para um estabelecimento pertencente a outra empresa; Se o não cumprimento pela autora dessa determinação da ré, não comparecendo para prestar trabalho nesse outro estabelecimento, fez incorrer a autora em faltas injustificadas.




Na sentença recorrida, decidiu-se que a ré não podia transferir a autora do seu local de trabalho em Ovar para outro sito em Santa Maria da Feira e, por isso, concluiu-se que a autora não cometeu faltas ao trabalho por referência ao local de trabalho sito em Santa Maria da Feira.
Afigura-se-nos que de modo acertado.
Sustenta a ré que ela e a sociedade dona da loja de Santa Maria da Feira (C…) pertencem ao mesmo grupo, o Grupo D…, sendo que, por isso, era lícito ordenar à autora a prestação de trabalho num local de trabalho pertencente à C… (a loja sita em Santa Maria da Feira) – v.g. arts. 11º e  15º do articulado motivador.
O título V do Código das Sociedades Comerciais (CSC) disciplina a matéria referente às sociedades coligadas, considerando como tais as sociedades em relação de simples participação, as sociedades em relação de participações recíprocas, as sociedades em relação de domínio e as sociedades em relação de grupo (artigo 482º).
É a estas últimas que importa atender, pois que foi nesse campo que a ré e a sentença recorrida se situaram.
No caso em apreço, sabe-se, apenas, que a ré é uma sociedade comercial por quotas, com o capital social de € 100.00,00, detendo a sociedade E..., uma quota de € 90.000,00 e a sociedade C..., uma quota de € 10.000,00 – ponto 4º dos factos provados.
Assim, os factos provados não permitem ter por verificada em relação a qualquer dessas sociedades uma situação de domínio total inicial ou superveniente (arts. 488º e 489º do CSC).
No primeiro caso é necessário que uma sociedade constitua uma sociedade anónima de cujas acções ela seja inicialmente a única titular (art. 488º/1 CSC), sendo que a ré é uma sociedade por quotas; no segundo caso, é necessário que exista uma sociedade que, directamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483º/2 CSC, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios (art. 489º/1 CSC), realidade essa que os factos provados não revelam.
Além disso, os factos provados não revelam que entre a ré e as sociedades E…, e C.. , tenha sido celebrado qualquer contrato de paridade ou subordinação (art. 492º e 493º do CSC).
Os factos provados não supotam, assim, a conclusão de que entre as mencionadas sociedades esteja constituído, de modo juridicamente relevante, um qualquer grupo de sociedades.
Consequentemente, com base na alegada, mas não provada, existência de uma situação de grupo de sociedades não podia a ré ter ordenado a transferência do local de trabalho da autora.
Por outro lado, mesmo que se tivesse por demonstrado que existia entre a autora e a sociedade C…, um grupo de sociedades com relevância jurídica, mesmo assim a ré não podia ter ordenado à autora, de forma unilateral, a transferência de local de trabalho de Ovar para Santa Maria da Feira.
Com efeito, apesar da existência de um grupo, as sociedades que o integram mantêm as suas personalidades jurídicas, de modo que o empregador não é o grupo (que não tem personalidade jurídica), mas sim a sociedade que contratou a trabalhadora (Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXVI, 1990, Grupos de Sociedades e Direito do Trabalho, págs. 124 a 147, especialmente pág. 136), neste caso a ré, sem prejuízo de situações de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empregadora (cfr. Maria Irene Gomes, Grupos de Sociedades e Algumas Questões Laborais, Questões Laborais, Ano V – 1998, nº 12, págs. 162 a 204, maxime págs. 172 a 177, e Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, págs. 382/383).
Ora, a autora não consentiu na sua cedência à C…razão pela qual a ordem de transferência da autora não poderia fundar-se na cedência ocasional de trabalhador do tipo da que se alude no art. 289º/1/c CSC.
 Por outro lado, mesmo em situações de grupo de sociedades, a licitude da ordem de transferência de trabalhador, em execução da qual este passe a desempenhar as suas funções em estabelecimento de outra entidade integrante do grupo, supõe que o trabalhador não deduza oposição à transferência (cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos Empresariais e Societários, Incidências Laborais, Almedina, págs. 473-476 e 488-492  – a autora exige, para efeitos de mobilidade no seio de grupos societários, de trabalhadores com contrato único com uma das empresas do grupo, uma cláusula contratual a possibilitar a mobilidade).
Ora, na situação em apreço, face à nulidade parcial da cláusula 3ª do contrato de trabalho a que supra se aludiu, tendo em conta que nessa mesma cláusula não estava prevista qualquer situação de mobilidade entre empresas do mesmo grupo, e considerando que a autora deduziu oposição à sua transferência para Santa Maria da Feira, é forçoso concluir-se no sentido de que a ré não podia impor unilateralmente a transferência da autora para Santa Maria da Feira.
Consequentemente, não pode considerar-se que a autora alguma vez faltou ao trabalho em Santa Maria da Feira, sendo apenas com esse fundamento, como se viu, que ela foi despedida pela ré.
*
Décima questão: Se a autora recorreu fraudulentamente ao mecanismo da baixa médica por doença para se furtar à prestação de trabalho.




Já se deixou referido que a autora não foi despedida pelo facto de ter recorrido a baixa médica por doença e, muito menos, com fundamento em qualquer fraude alegadamente cometida a esse respeito.
Por outro lado, os factos provados não permitem concluir, ao contrário do sustentado pela recorrente, no sentido de que foi cometida qualquer fraude por parte da autora por ocasião do recurso da mesma ao mecanismo da baixa médica por doença.
Assenta a recorrente o seu entendimento de que essa fraude teve lugar, com o fundamento de que os serviços de verificação de incapacidades temporárias da Segurança Social consideraram que a autora estava capaz para o trabalho (fls. 68), assim se contrariando, como parece claro, o juízo científico emitido pela médica que concedeu a baixa médica à autora (fls. 62 e 66).
Comece por ter-se em consideração que aquele baixa médica e a sua prorrogação foram concedias à autora por quem tinha legal competência para o efeito –  a médica subscritora dos boletins de fls. 62 e 66.
Dos factos provados e da prova produzida, que analisámos e ouvimos, não resulta minimamente que tenha havido uma qualquer espécie de acordo entre a autora e essa médica no sentido da emissão de boletins de baixa médica nos quais se exarasse uma situação e justificação falsas.
É certo que a comissão de verificação de incapacidades entendeu que a autora não estava incapacitada para o trabalho (fls. 68), contrariando, assim, a opinião da médica que concedeu e prorrogou a baixa à autora.
Estando em causa uma divergência técnica na apreciação da situação clínica da autora e da incapacidade para o trabalho dela decorrente, não tem este tribunal qualquer possibilidade para sobrevalorizar a posição da comissão de verificação em detrimento da posição da médica que concedeu a baixa.
Aliás, não é da competência da comissão de verificação sindicar o juízo técnico-científico do médico subscritor do boletim de baixa de modo a concluir pelo acerto ou desacerto desse juízo; o que a comissão de verificação faz é emitir uma deliberação no sentido de considerar que subsiste ou não incapacidade para o trabalho, apenas para efeitos da segurança social e com efeitos circunscritos à continuidade ou não do subsídio por baixa médica.
Além disso, não se conhece dispositivo legal ou qualquer outra regra que atribua às deliberações das comissões de verificação valor científico ou probatório superior ao do juízo clínico do médico subscritor do boletim de baixa médica, de tal modo que este deva ser postergado sempre que divergir daquelas.
Donde se conclui no sentido de que a divergência entre a médica que concedeu a baixa e a comissão de verificação não permite, só por si, concluir no sentido de que a baixa médica em apreço era fraudulenta.
Por outro lado, não consta dos autos qualquer outro meio de prova que indicie essa fraude, razão pela qual nunca a autora poderia ter sido despedida com fundamento em fraude no recurso aos mecanismos da baixa médica por doença.
*
Aqui chegados, importa concluir no sentido de que a sentença recorrida deve ser confirmada.
Por outro lado, face ao acima sustentado quanto à nulidade parcial da cláusula 3ª do contrato de trabalho e ao carácter oficioso da declaração dessa nulidade, logo se verifica que fica prejudicado o conhecimento autónomo da questão de nulidade dessa mesma cláusula suscitada na ampliação do recurso feita pela apelada.
Resta dizer que não se vislumbra má-fé de qualquer das partes que justifique a sua condenação em multa e indemnização.
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III - Decisão




Termos em que deliberam os juízes da 6ª secção deste Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de confirmar a sentença recorrida e de declarar oficiosamente a nulidade parcial da cláusula 3ª) do contrato de trabalho documentado a fls. 116  e 117, na parte em que dela consta o seguinte: “…ou qualquer outro local indicado por primeiro Outorgante que seja imposto pela natureza das funções próprias do segundo outorgante. 
Ponto único: O segundo Outorgante desde já declara aceitar ser transferido ou deslocado para qualquer outro local de trabalho, sempre que o primeiro Outorgante, por sua conveniência, assim o entenda.”.
Custas pela apelante, em ambas as instâncias.
 




Jorge Manuel Loureiro (Relator)
Ramalho Pinto
Azevedo Mendes

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