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sexta-feira, 29 de junho de 2012

SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO ACORDO- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 20/06/2012


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
90/11.0GFPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
ACORDO

Nº do Documento: RP2012062090/11.0GFPRT.P1
Data do Acordão: 20-06-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O actual Código de Processo Penal introduziu no seu artigo 281º o instituto de suspensão provisória do processo, que se insere no que vulgarmente se designa por justiça penal negociada, partindo-se de um postulado de consenso das respectivas partes, assente em ponderações e finalidades de realização de uma justiça restaurativa, quando estejam conexas lesões de natureza civil [Ac. T. R. Porto de 2012/Mar/21];
II – Sendo essência do mesmo o acordo, não pode ser imposto, seja por quem for, designadamente o arguido, o assistente, os demandantes, o Ministério Público e o muito menos o juiz;
III - Isto significa que em nenhum momento o tribunal pode catalisar a suspensão provisória do processo e muito menos impor essa reacção hetero-compositiva ao Ministério Público.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Recurso n.º 90/11.0GFPRT.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Carlos Espírito Santo

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No PCS n.º 90/11.0GFPRT do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de S. M. Feira, em que são:

Recorrente/Arguido: B…

Recorrido: Ministério Público

por sentença proferida em 2011/Jun./13, a fls. 29-30, onde consta apenas o seu dispositivo, em virtude de ter sido proclamada oralmente, o arguido foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo disposto no artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 72 (setenta e dois) dias de multa, com o valor diário de € 10 (dez) euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, de qualquer categoria, durante 5 (cinco) meses.
2. O arguido interpôs recurso por correio electrónico expedido em 2012/Jul./04, a fls. 32-34, apresentando para o efeito as seguintes conclusões:
1.º) Atentas as circunstâncias do crime, a ter ocorrido na sua plenitude, o facto de se tratar de arguido primário, colaborante em audiência de julgamento, dada até a situação familiar e profissional, positivas e de plena inserção social, considera-se que considera-se que foram violados os determinativos da medida da pena (artigo 71.º do CP), os quais deveriam ter sido levados mais em conta, ou seja mais brandamente, pelo tribunal singular, aplicando-se os mínimos legais exigíveis;
2.º) Efectivamente, com a aplicação da pena de três meses de inibição de conduzir e de 20 dias de multa à taxa diária de cinco euros, cumprir-se-iam os pressupostos de prevenção geral e especial a que se devem atender à situação em apreço;
3.º) Sem prescindir, sempre o arguido requereu previamente a suspensão provisória do processo nos termos do artigo 281.º C. P. Penal, já que se encontram cumpridos os requisitos do referido artigo, os quais se encontram plasmados a fls. 101 dos autos. O Tribunal a quo violou o artigo 281.º C. P. Penal ao negar provimento ao requerido o que se requer que seja previamente analisado e sancionado pelo tribunal de recurso.
3. O Ministério Público respondeu em 2011/Nov./22 no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
4. Recebidos os autos nesta Relação foram os mesmos autuados em 2012/Mar./23, tendo sido emitido parecer pelo Ministério Público em 2012/Abr./10, igualmente no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do C. P. Penal, tendo-se colhido os vistos legais.
*
O objecto do recurso passa pela questão prévia da suspensão provisória do processo [a)], a medida da pena principal [b)] e da pena acessória [c)].
*
* *
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) A suspensão provisória do processo
O Código de Processo Penal ao disciplinar o regime do processo sumário estipula no seu artigo 391.º, que “Em processo sumário só é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo”.
Como se pode constatar o recurso do arguido nesta parte não incide sobre a sentença, mas sobre um despacho que foi proferido no início da audiência de julgamento, pelo que o mesmo não é admissível.
Mas mesmo que o fosse também este recurso seria manifestamente improcedente, pelas razões que se passam a indicar.
O actual Código de Processo Penal introduziu no seu artigo 281.º o instituto de suspensão provisória do processo, tendo o mesmo no seu proémio e actualmente a seguinte redacção:
“Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:”
Tal instituto insere-se naquilo que actualmente e vulgarmente se designa por justiça penal negociada, partindo-se de um postulado de consenso das respectivas partes, assente em ponderações e finalidades de realização de uma justiça restaurativa, quando estejam conexas lesões de natureza civil [Ac. T. R. Porto de 2012/Mar./21][1].
Estes propósitos político-criminais de privatização do direito e processo penais, que nos tem aproximado do modelo norte americano de “plea bargaining”, surgiram ancorados e catalisados pela Organização das Nações Unidas (ONU), através das Regras Mínimas sobre as medidas não privativas da liberdade, também conhecidas como Regras de Tóquio, aprovadas pela sua Assembleia Geral através da Resolução 45/110, de 14 de Dezembro 1990, sendo de destacar o seu ponto 5.1[2],
Também o Conselho de Ministros do Conselho da Europa na sua Recomendação R (87) 18, de 1987/Set./17 deixou as suas directrizes para simplificação e agilização do processo penal, aproximando-se do modelo “guilty plea” norte-americano.
Tal teve desde logo reflexos ao nível do direito comparado, com destaque para o “Codice di Procedura Penale” italiano de 1988, onde se consagrou o “Giudizio abbreviato” e o “Patteggiamento” [438.º a 448.º] e também para a “Ley de Enjuiciamento Criminal” espanhola, através de um procedimento preliminar ou posterior de “reconocimiento de los hechos” [779.1-5.ª, 801., 655, 781, 784.2, II, 787.1, 800.2, 801, 787, 801.1].
O Código de Processo Penal alemão (StPO) passou igualmente a contemplar as hipóteses de acordo (Verstädignung) [§§ 153, 1, 2, 407 e ss.], enquanto o Código Penal alemão (StGB) introduziu a possibilidade de conciliação através de mecanismos de justiça restaurativa que podem conduzir à atenuação da pena ou mesmo à sua isenção [§ 46a].
O nosso ordenamento jurídico com o Código de Processo Penal de 1987 passou também a conhecer o instituto de suspensão provisória do processo (281.º, 282.º), a par do processo abreviado (391.º-A a 391.º-E) e do processo sumaríssimo (392.º a 398.º), que foram parcialmente revistos com a Lei n.º 48/2007, de 29/Ago..
Por sua vez, o Código Penal veio a consagrar autênticos mecanismos de justiça restaurativa (206.º, n.º 1; 218.º, n.º 4) – foi ainda introduzido o instituto de mediação penal através da Lei n.º 21/2007, que seguiu a Decisão Quadro n.º 2001/220/JAI do Conselho, de 15/Mar.
Como se pode dar conta desta breve leitura de referências que suportou a introdução de mecanismos de justiça penal negociada ou da sua privatização, a essência dos mesmos é o acordo, pelo que nenhum dos mesmos pode ser imposto, seja por quem for, designadamente o arguido, o assistente, os demandantes, o Ministério Público e muito menos o juiz.
Por outro lado, na sequência da filosofia implementadora desta justiça penal negociada e tendo presente que o Ministério Público é o titular do exercício da acção penal (219.º, n.º 1 Constituição; 48.º C. P. Penal), a opção pelo instituto de suspensão provisória do processo reside essencialmente no direito potestativo daquela magistratura em accionar o mesmo, ainda que sob o impulso prévio do arguido ou do assistente.
Isto significa que em nenhum momento o tribunal pode catalisar a suspensão provisória do processo e muito menos impor essa reacção hetero-compositiva ao Ministério Público.
Daí que a pretensão do arguido seja manifestamente improcedente, devendo ser “duplamente” rejeitada e devidamente sancionada (420.º, n.º 1, al. a) e b); n.º 3).
*
b) A medida da pena principal
i) Os dias de multa
O crime de condução em estado de embriaguez da previsão do artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal comina “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de sangue superior 1,2 g/l, ”, punindo com “pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave não lhe couber”, sabendo que o mínimo da pena de prisão é um (1) mês da pena de multa são dez (10) dias (41.º, n.º 1; 47.º, 1 do Código Penal).
Através deste crime pretende-se tutelar imediatamente a segurança da circulação rodoviária em geral e mediatamente os riscos de lesão para a vida, a integridade física e os bens patrimoniais.
Trata-se de um crime de perigo abstracto, o que significa que o perigo não faz parte dos elementos típicos deste ilícito criminal, partindo-se antes da presunção de que o estado de embriaguez, nas suas diversas cambiantes e a partir de uma TAS superior a 1,2 g/l, torna qualquer pessoa inapta para conduzir.
Tal presunção decorre da constatação de que o álcool em excesso produz efeitos destabilizadores em qualquer pessoa, como seja a criação de um estado de imoderada confiança em si próprio, bem como a diminuição da rapidez de reflexos, da capacidade visual e do raciocínio.
Partindo-se desta realidade, a tipificação deste ilícito mostra-se adequada à diminuição dos riscos de circulação de veículos com motor e ajustada às necessidades de protecção tanto da segurança da circulação rodoviária, como de outros bens jurídicos de incidência pessoal, mostrando-se essa tipificação constitucionalmente ajustada, conforme veio recentemente reafirmar o Tribunal Constitucional [Ac TC 95/2011, 16/Fev.].
Por isso se mostra razoável antecipar a correspondente tutela penal dos bens jurídicos aqui em causa, pelo que não se mostra necessário para o cometimento do crime de condução em estado de embriaguez que se verifique alguns dos resultados que se pretende acautelar, como seja a existência de um acidente de viação e a ocorrência de vítimas.
Nesta conformidade, basta adoptar, de modo culposo, a conduta descrita no respectivo tipo legal, que é a condução a partir de uma taxa de alcoolemia no sangue superior a 1,2 g/l para ocorrer a tipificação do crime de condução em estado de embriaguez. Tal crime tanto é cometido dolosamente, como por negligência (art. 13.º e 14.º do Código Penal),
Tanto na determinação da pena, como na sua execução, deve-se atender às finalidades de aplicação de qualquer pena, que consistem na protecção dos bens jurídicos violados e na reintegração do condenado na sociedade, como decorre do artigo 40.º do Código Penal, estando os critérios da sua determinação estabelecidos no art. 71.º, n.º 1 do mesmo diploma.
Isto significa que a pena, enquanto instrumento político-criminal de protecção de bens jurídicos, tem, ao fim e ao cabo, uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa.[3]
*
Estes são os consabidos critérios legais para a determinação da pena. Porém, existem a montante e com assento constitucional outros parâmetros que influem nessa determinação, como que condicionando os referenciados critérios legais (40.º, 47.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1, Código Penal).
Estamo-nos a referir ao princípio da intervenção mínima do direito penal, com consagração no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, segundo o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Também será de atender ao princípio da proporcionalidade das penas, pois de acordo com o artigo 49.º, n.º 3 da CDFUE, “As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção”.
Tratam-se de princípios imanentes a qualquer Estado de Direito Democrático (2.º Constituição).
Dos mesmos podemos extrair três critérios para a dosimetria das penas, que funcionam como um parâmetro da constitucionalidade da punibilidade, a partir do princípio da proporcionalidade. Este tem sido perspectivado a partir de três sub-princípios: da idoneidade ou adequação (i), da necessidade ou exigibilidade (ii), ambos respeitantes à optimização relativa do que é factualmente possível, e da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida (iii), o qual se reporta à optimização normativa, seja a propósito dos direitos, liberdades e garantias em geral [Ac. TC 11/83, 285/92, 17/84, 86/94, 99/99, 302/2006, 158/2008[4]], seja especificamente no que concerne às reacções penais [Ac. TC 370/94, 527/95, 958/96, 329/97].
O primeiro desses critérios da idoneidade ou da adequação (Fähigkeit oder Geeignetheit) estabelece a conexão entre a determinação em concreto da pena e os fins das mesmas, de modo que aquela se mostre idónea e suficiente em relação à prossecução dos objectivos pretendidos.
O segundo critério da necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) leve a que se opte por aquela reacção penal que se revele menos gravosa para os direitos e interesses do condenado, mas que, concomitantemente, se mostre simultaneamente eficaz em relação aos fins das penas.
O terceiro critério que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida, impele que a respectiva pena se mostre ponderada e equilibrada, procurando-se acautelar o interesse geral da protecção dos bens jurídicos violados, mediante a sua ponderação tanto como os interesses comunitários da defesa da sociedade, como os interesses pessoais do condenado, sempre que estiver em causa a sua ressocialização.
Trata-se de estabelecer uma relação entre os meios possíveis da reacção penal e os fins das penas, mas fazendo-se esse balanceamento por referência às posições jurídicas em confronto, de modo a acautelar-se a paz jurídica.
*
O arguido não contraria a opção pelo tribunal recorrido pela pena de multa, dizendo antes que esta é excessiva, pois deveria situar-se em 20 dias.
Muito embora o grau de culpa seja de difícil quantificação, podemos no entanto estabelecer patamares ao nível da respectiva moldura penal, faseando-a consoante a mesma seja leve, moderada ou elevada.
Nesta conformidade e atendendo que o arguido revelou uma culpa e uma ilicitude moderada ou razoável, a condenação em 72 dias de multa revela-se ajustada, atentos os referidos critérios legais, porquanto a mesma situa-se no segundo terço do referido limite máximo[5].
*
ii) O quantitativo diário
A fixação do valor diário da multa, de acordo com o estabelecido no anterior art. 47.º, n.º 2, podia variar entre 5 e 500 € “em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
Na aferição desse quantitativo diário o julgador, deve não só ter em conta os rendimentos mensais do arguido, sejam próprios ou do que o mesmo beneficie, mas toda a situação económica e financeira de que o mesmo disponha, designadamente o património que se lhe apresente disponível e os seus encargos.
Neste apuramento deve-se atender igualmente que a multa é uma verdadeira reacção criminal de índole económica e não um laxante com repercussões económicas, devendo, por isso, na sua aplicação ser submetida a critérios de igualdade de sacrifícios e ónus.[6]
No que concerne aos encargos e perante o mesmo princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, afigura-se-nos que devemos fazer uma consideração diferenciada dos mesmos, distinguindo aqueles que revelam custos indispensáveis para a sustentação do condenado e dos seus familiares dependentes, os quais devem ser deduzidos no rendimento, daqueles que revelam alguma prodigalidade ou luxúria e que não devem beneficiar da mesma ponderação dedutiva, antes pelo contrário.
Tudo isto leva a que se reserve os quantitativos mínimos para aquelas pessoas que vivem abaixo ou no limiar da subsistência, escalonando-se a partir daí todos os demais.
Perante estas considerações, vejamos quais foram os factos relevantes que foram dados como provados pelo tribunal recorrido:
- O arguido é engenheiro, auferindo entre 1400 a 1600 € mensais, vive com os seus progenitores, contribuindo com 450€ relativo a crédito de habitação de obras.
Nesta conformidade, nunca poderia ser fixado um valor diário de 5€, já que este deve ser reservado para as pessoas indigentes, como salientou e justificou o Ministério Público junto nesta Relação no parecer que apresentou.
Por isso, consideramos por demais ajustado o valor diário de 10€ que a “pecar” será apenas por defeito e nunca por excesso.
*
c) A medida da pena acessória
O crime de condução em estado de embriaguez da previsão do artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, ao nível da sua reacção penal, tem uma dupla consequência jurídico-penal.
Uma a título principal, que corresponde a uma pena de multa ou de prisão e que se encontra cominada no respectivo tipo-legal, e outra com natureza acessória, que, por isso mesmo acompanha aquela outra, a qual consiste na proibição de conduzir veículos com motor, estatuída no citado art. 69.º do Código Penal – aqui se comina que “É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: b) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;”
Assim, o seu pressuposto formal resulta claramente do facto do agente ter sido punido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez do art. 292.º do Código Penal.
Já o seu pressuposto material reside essencialmente na perigosidade apresentada pelo arguido no exercício da condução de veículos com motor e no estado de embriaguez revelado pela sua TAS.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma perigosidade que reside na conduta típica do crime de condução em estado de embriaguez e que sobressai das circunstâncias do agente conduzir veículos depois de ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso.
Assim, a pena acessória de proibição de conduzir tem uma relevância de prevenção especial, decorrente da perigosidade revelada pela leviandade e imprudência que aquele preciso condutor patenteou, por circular num estado de embriaguez relevante para a segurança rodoviária ou então por ser uma conduta frequente.
Mas também tem um acentuado cariz de prevenção geral de intimidação e de defesa da sociedade, surgindo como uma autêntica advertência para os demais condutores [Ac. R. C. de 1996/Nov./07, CJ V/47].[7]
Mas para se ultrapassar qualquer efeito automático das penas, o julgador deve proceder à aferição da medida concreta da proibição de conduzir, tendo em atenção as apontadas finalidades das penas e os critérios da sua determinação, os quais estão expressos no art. 71.º [Ac. TC n.º 362/92 (DR II 1993/Abr./08); 149/01; 440/02; 630/04].
Assim e muito embora se trate de uma pena acessória, a sua aplicação está sujeita às mesmas finalidades que deve ter qualquer pena, que, como já referimos, visa a protecção dos bens jurídicos violados e o desiderato de atingir a paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa, proporcionando a reintegração do agente na sociedade (40.º do Código Penal).
Esses critérios legais, apontam para que, numa primeira fase, a pena seja encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Neste sentido se tem pronunciado a generalidade da jurisprudência, como sucede com os Ac. R. E, de 1998/Fev./17 [CJ II/291], 1998/Mar./10[8] [BMJ 475/798], R. C. de 1997/Mai./15, BMJ 467/640, 1999/Jun./02, R. P. de 2000/Nov./29, [CJ III/54 e V/229], referindo-se expressamente neste último que “Esta pena acessória deve ser determinada tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção”.
No entanto, convém recordar que as penas acessórias, apesar de decorrerem da necessidade de aplicação de uma pena, seja principal ou substituta desta, desempenham essencialmente uma função preventiva adjuvante daquela, que se dirige mais à perigosidade da personalidade do agente, do que à tutela do bem jurídico violado.[9]
Isto não significa que não se tenha em atenção a TAS revelada pelo agente do crime de condução em estado de embriaguez, porquanto e como já se decidiu “A determinação da medida da pena acessória de inibição de conduzir não pode deixar de ter em conta a taxa de alcoolemia de que o arguido é portador”. “Daí que não tenha qualquer justificação aplicar a um arguido o mínimo legal quando a taxa de álcool no sangue (TAS) com que conduzia um automóvel era de 1,65 g/l” [Ac. R. C. de 2000/Nov./29, CJ V/49].
Por isso, na aplicação das pena acessórias sobressaem mais as razões de prevenção especial, que no caso do crime de condução em estado de embriaguez, dizem essencialmente respeito à segurança rodoviária, face ao perigo provocado pela(s) conduta(s) do agente, do que a sua dimensão de reinserção social.
O facto do arguido precisar de se deslocar de veículo automóvel quando se encontra escalado na fábrica onde trabalha não é um factor de atenuação de perigosidade, mas antes de realçar devidamente a mesma, pois a necessidade de circulação na via pública incrementa o risco do acidente e a condução sob o efeito do álcool é um dos factores potenciadores da sinistralidade rodoviária.
E o arguido já deu “provas” de que a ingestão de álcool não o inibe de conduzir.
Assim, tendo sido determinada uma pena acessória de conduzir veículos por um período de 5 meses, temos a mesma abaixo do limiar mínimo da culpa revelada pelo arguido, pelo que nunca se poderia aceitar os 3 meses que correspondem ao mínimo legal.
*
* *
III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, rejeita-se o recurso interposto pelo arguido B… relativamente ao fundamento descrito sob a alínea a) e nega-se provimento quanto ao demais.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) Ucs, condenando-se ainda o mesmo na sanção de três (3) UCs. (513.º n.º 1, 514.º n.º 2, 420.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

Notifique.

Porto, 20 de Junho de 2012
Joaquim Arménio Correia Gomes
Carlos Manuel Paiva do Espírito Santo
________________
[1] Acessível em www.dgsi.pt e que seguiremos de perto, reproduzindo alguns dos seus excertos.
[2] “5.1. Cuando así proceda y sea compatible con el ordenamiento jurídico, la policía, la fiscalía u otros organismos que se ocupen de casos penales deberán estar facultados para retirar los cargos contra el delincuente si consideran que la protección de la sociedad, la prevención del delito o la promoción del respeto a la ley y los derechos de las víctimas no exigen llevar adelante el caso. A efectos de decidir si corresponde el retiro de los cargos o la institución de actuaciones, en cada ordenamiento jurídico se formulará una serie de criterios bien definidos. En casos de poca importancia el fiscal podrá imponer las medidas adecuadas no privativas de la libertad, según corresponda.”
[3] Veja-se a propósito ROXIN, Claus, Culpabilidad y Prevencion en Derecho Penal, Reus, SA, Madrid, 1981, p. 181; DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 72-73; “Sobre o estado actual da doutrina do crime”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, 1991, p. 22; PALMA, Maria Fernanda, “As alterações da Parte Geral do Código Penal na revisão de 1995: Desmantelamento, reforço e paralisia da sociedade punitiva”, em Jornadas sobre a revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, p. 26, onde se traça as finalidades de punição deste artigo 40.º, com base no § 2 do projecto alternativo alemão (Alternativ-Entwurf).
[4] Acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt assim como os demais a que se fizer referência do Tribunal Constitucional.
[5] Muito embora a concretização de uma pena não seja uma mera operação aritmética, como raciocínio da sua medida podíamos situar a culpa leve no primeiro terço, a moderada no seu segundo terço e a culpa elevada no último terço do seu limite máximo.
[6] JESCHECK, H.-H., “Tratado de Derecho Penal”, Vol. II, (1981) p. 1074; DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (1993), p. 127 e ss.
[7] Neste sentido JESCHECH, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal – Parte General”, Tomo II, Bosch, Barcelona, 1981, p. 1090-1091; dando mais ênfase à função de prevenção geral FIGUEIREDO DIAS, Jorge, “Direito Penal Português – As consequências do crime”, Coimbra Editora, 2005, p. 165; PINTO de ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica, Lisboa, 2008, p. 225.
[8] Este aresto teve por base o n.º 2 do artigo 12º do dec.-Lei n.º 124/90.
[9] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 89 e ss.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/de44e9a359023afd80257a2b002e1103?OpenDocument

terça-feira, 26 de junho de 2012

CONTRATO DE CONTA CORRENTE HOMEBANKING BANCO ÓNUS DA PROVA NULIDADE DA CLÁUSULA - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 24/05/2012


Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
192119/11.8YIPRT.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: CONTRATO DE CONTA CORRENTE
HOMEBANKING
BANCO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DA CLÁUSULA
ABERTURA DE CONTA

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 24-05-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE

Sumário: I – O contrato de conta bancária - enquanto contrato nuclear instituinte do tronco comum sobre o qual repousarão todas as relações jurídicas entre banco e cliente, inclusive contratuais, possui um conteúdo negocial complexo do qual fazem parte, necessária ou usualmente, outras convenções acessórias embora autónomas: tal o caso do contrato de conta-corrente bancária e do contrato de depósito.
II - Por via do contrato de depósito bancário a instituição de crédito passa a ser titular da propriedade e risco das disponibilidades monetárias depositadas, e, por outro lado, fica obrigada à restituição de igual quantia nos termos acordados, usualmente acrescida dos juros.
III – O contrato de serviço de “homebanking” insere-se numa relação negocial complexa iniciada através de um contrato de abertura de conta, e da constituição de depósitos de quantias em conta.
IV – As cláusulas do contrato de “homebanking” que presumem expressamente a culpa ou consentimento do aderente na realização, por terceiro, de operação de home banking mediante a inserção dos elementos de segurança pessoais e intransmissíveis do subscritor do serviço, implicam a modificação dos critérios legais de repartição do ónus da prova aplicáveis ao contrato de depósito bancário.
V – Como tal essas cláusulas, quando estabelecidas em contratos celebrados com o consumidor final são proibidas, e sancionadas com a nulidade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (Cível) deste Tribunal da Relação

I – “A”, requereu na Secretaria do Banco Nacional de Injunções, em formulário do Ministério da Justiça, procedimento de injunção contra a “B “, nos termos do Decreto-Lei 269/98, de 01 de Setembro, para haver desta o pagamento de € 5.694,33, sendo € 5.000,00 de capital, e € 592,33, de juros de mora vencidos, à taxa de 4%, entre 20/07/2008 e 05/07/2011, e € 102,00, de taxa de justiça paga.
Alegando para o efeito terem sido feitas transferências da sua conta sediada na agência do ... da Requerida, para contas tituladas por terceiros, à sua revelia, o que só poderá ter acontecido através da clonização do seu cartão matriz existente nos serviços da “B “.
Devendo a Requerida, a entender-se não ter agido com culpa, ainda que presuntiva, suportar o risco respetivo.

Notificada, deduziu a Requerida oposição.
Sustentando ter sido o Requerente quem incumpriu com as obrigações de zelo cautela e vigilância que assumiu quando subscreveu o serviço “B” directa on-line.
Pois as transferências foram necessariamente efectuadas pelo A. ou consentidas ou facilitadas por ele.

Efectuada que foi a distribuição, veio ainda o Requerente, desta feita A., apresentar resposta, que foi mandada desentranhar por despacho de folhas 103-106.
Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgando a acção “totalmente procedente (…) por provada”, condenou a Ré “a pagar ao Autor (…) a quantia global de € 5.694,33 (…) acrescida dos juros mora calculados à taxa anual de 4 %, desde 6 de Julho de 2011 até efectivo e integral pagamento (sobre o capital de € 5 000,00).”.

Inconformada, recorreu a R., formulando, nas suas alegações, as conclusões seguintes:
“1) Ao considerar que incorria sobre a apelante o ónus de demonstrar que as transferências bancárias efectuadas o foram por negligência do apelado a douta sentença recorrida ignorou o que as cláusulas 9 e 10 das condições gerais de utilização do contrato “B” Directa prevêem, cláusulas estas que se encontram dadas por provadas no n° 11 da fundamentação de facto, matéria esta que, cotejada com a provada nos n°s 18 e 19 da mesma douta fundamentação, apenas pode levar a concluir que se verificou uma utilização do sistema por terceiro o qual introduziu de forma correcta no sistema todas as coordenadas de segurança só assim logrando obter o processamento das transferências;
2) Nestas circunstâncias a matéria considerada provada no n° 11 da fundamentação de facto impunha ao Tribunal a quo extracção de conclusão inversa à que tirou: Incumbia ao apelado demonstrar que não havia sido por negligência ou descuido deste que as transferências se processaram nos termos constantes dos n°s 9 e 10 das Condições Gerais de Utilização do serviço “B” Directa;
3) Estabelecida que estava convencionalmente esta presunção em convenção de prova e nada tendo sido demonstrado pelo aqui apelado no sentido de que as transferências bancárias se realizaram sem consentimento ou facilitação culposa sua restava ao Tribunal a quo concluir que as mesmas são imputáveis ao apelado;
4) A questão da desproporção do risco não pode servir para legitimar juridicamente condutas violadoras do contrato estabelecido, sendo certo que, tal como acima se referiu, se presume à luz das cláusulas 9 e 10 das Condições Gerais de Utilização que as transferências bancárias se realizaram com facilitação culposa do aqui apelado não tendo este logrado ilidir esta presunção;.
5) Aliás não se aceita à partida que exista um desequilíbrio na distribuição do risco inerente a esta contratualização; com efeito é impossível ao Banco - a menos que exista confissão expressa nesse sentido por parte do utente - demonstrar que este divulgou a terceiros os seus elementos de segurança pessoais e intransmissíveis pelo que é justo, razoável e equitativo que seja este - que é quem os tem em seu poder, pondo e dispondo dos mesmos - a ter de demonstrar que os não divulgou a terceiros, mesmo que tal divulgação tenha sido involuntária;
6) Aliás, o raciocínio empregue na douta sentença poderia por exemplo ser utilizado para accionar judicialmente os fabricantes de automóveis por lançarem no mercado global viaturas que à saída da fábrica permitem que o seu utilizador final conduza a velocidades superiores àquelas que são o máximo permitido por lei (entre nós 120 Km/hora), o que não se verifica;
7) A pedra de toque a este respeito não poderá assim deixar de ser a existência de culpa ou a negligência por parte do utente, não podendo aceitar-se que o mesmo possa ser beneficiado mesmo após ter praticado uma conduta negligente, a qual poderá ser presumida nos termos contratados entre as partes cabendo ao utente a ilisão da presunção;
8) Também não impressiona o argumento de que o valor em causa será para a instituição bancária uma insignificância conforme vem defendido na douta sentença; o problema para a instituição bancária não é analisável à luz de um só cliente, e uma só (possível) indemnização mas, ao invés, numa miríade de potenciais casos e a esse nível não estamos já a falar de valores insignificantes mas sim de valores significativos;
9) É razoável afirmar-se que o banco tem de garantir a fiabilidade do Serviço “B” Directa on line : É ónus seu; todavia o banco fez a este respeito a prova que lhe competia conforme resulta do n° 20 da douta fundamentação de facto; Neste particular crê-se que não pode ser exigido ao Banco mais do que o cumprimento da obrigação de manter devidamente informados e avisados os seus clientes quanto aos cuidados que devem ter no manuseamento dos seus computadores pessoais quando utilizam o serviço, o que resultou provado (n°s 14 a 16 da fundamentação de facto) não sendo de resto necessário para que o utente normal se consiga salvaguardar mais do que o respeito por regras básicas de segurança que a apelante divulga e que não importam especiais qualificações de conhecimento a nível informático estando perfeitamente ao alcance do cidadão médio;
10) O Tribunal a quo declarou a nulidade das cláusulas 9 e 10 das Condições Gerais de Utilização do “B” Directa com fundamento na violação da norma do art. 21 alínea f) do DL 446/85 de 25/10; todavia inexistem razões para declarar a nulidade destas duas cláusulas;
11) Afirma-se na douta sentença sob sindicância que o risco do "perecimento' do dinheiro corre por conta da apelante consequência esta que decorreria, em seu entender, da aplicação do regime jurídico do contrato de mútuo ao contrato de abertura de conta (depósito bancário) e da consequente aplicação do regime previsto nos arts. 1144° e 796° n° 1 do C.C.; todavia, esta interpretação não tem encontrado acolhimento nem na doutrina nem na jurisprudência de ponta;
12) Não acolhimento este que se deve sobretudo ao argumento de que não faz qualquer sentido aludir ao risco da perda de algo que deixou de ter individualidade própria (coisa especifica) para se (con)fundir na massa patrimonial do accipiens, fazendo nascer uma obrigação de restituir tão só in genere e, assim, impossibilitando de raiz a própria questão do risco pois como é sabido: Genus nunquam perit;
13) Mesmo que se admita que o contrato de abertura de conta se reduz a um contrato de depósito irregular - o que está longe de ser líquido - sempre se terá de concluir que existem especificidades no depósito bancário que não são possíveis de enquadramento no regime jurídico que este prevê, nomeadamente para o risco do perecimento ou deterioração da coisa (art. 796° ex vi art. 796° do C.C.) atendendo a que o regime jurídico aqui previsto se destina fundamentalmente ao depósito de coisas infungíveis sendo inequívoco que é relativamente a este tipo de coisas que a lógica da solução jurídica vertida nos artigos 1144 e 796 n° 1 do C.C. se destina;
14) Por outro lado não se pode aceitar por boa a douta conclusão do Tribunal a quo de que o contrato de utilização do serviço “B” Directa perde a sua autonomia e sendo assim retirado do contexto decisório quanto à repartição do risco, submetendo-o integralmente ao chamado "depósito irregular"; Estando o depósito bancário necessariamente subjacente ao contrato “B” directa, e apesar da vinculação funcional existente entre os contratos de utilização desse serviço e de depósito bancário, são de distinguir dois tipos contratuais distintos, embora coligados, com influência recíproca e é à luz deste contrato de utilização que as posições do banco e do cliente deverão ser prioritariamente aferidas, no quadro das normas que disciplinam a actividade bancária, bem como as matérias da responsabilidade civil e da prova.
15) Assim, a questão da validade de uma cláusula respeitante à repartição de responsabilidade entre o titular do cartão e o banco emissor, pela utilização fraudulenta do cartão de débito por um terceiro, não pode ser respondida com fundamento no brocardo "res suo domino perit" ou no disposto no artigo 796°, n° 1, do CC, por um lado porque tal pressupõe a qualificação do depósito bancário como depósito irregular, o que constitui questão muito discutida e, por outro lado, porque tal construção ignora em absoluto a realidade jurídica decorrente da conclusão do contrato de utilização;
16) A apelante não aceita a qualificação do depósito bancário como depósito irregular considerando na esteira de Simões Patrício o depósito bancário como um contrato autónomo, atípico, distinto do depósito irregular - expressando que mais do que uma questão de transferência de domínio de uma coisa e do inerente risco estará evidenciado um direito de crédito do depositante sobre o banco à restituição no mesmo género e quantidade, pelo que se estará mais perto de um contrato de mandato - e como tal não serve do argumento proporcionado pelo regime legal vazado nos normativos citados do Código Civil, tendo antes de se recorrer aos critérios gerais da boa fé para, como determina o artigo 15° do DL n° 446/85, avaliar da sua conformidade legal;
17) A construção jurídica defendida na douta sentença recorrida ignora em absoluto a realidade jurídica decorrente da conclusão do contrato de utilização (do serviço “B” Directa on line), autónomo em relação ao contrato de depósito bancário - embora com ele funcionalmente articulado; ora, no contrato de utilização do serviço “B” Directa, o seu titular tem a disponibilidade directa e imediata sobre o saldo da sua conta, podendo proceder a levantamentos sem qualquer intervenção física do depositário bastando que para tal insira os seus elementos e códigos de acesso pessoais e intransmissíveis no sistema: Sendo estes introduzidos correctamente o sistema não tem hipótese de "travar" a ordem de transferência dada, que assume provir do legítimo titular da conta;
18) Articulando o contrato de utilização do Serviço “B” Directa com o contrato de depósito bancário não se pode concluir linearmente que exista apenas o contrato de depósito bancário, mas sim uma coexistência de dois contratos, nem se pode concluir tão pouco que seja aplicável a estes contratos o regime dos artigos 1144 e 796 n° 1 do C.C.; consequentemente não está correcta a premissa de que estejamos sequer perante uma transferência de risco, assim e como tal potencialmente enquadrável na previsão da norma do art. 21 alínea f) do DL 446/85 de 25/10;
19) Com efeito mesmo à luz da aceitação da aplicação in casu da norma do art. 796° n° 1 para que o risco se transfira não poderá existir causa imputável ao alienante (aqui apelado), sendo legítima a convenção de prova que estipule que incorre sobre o alienante o ónus de demonstrar que agiu sem culpa; assim, na perspectiva da apelante a questão do risco terá todavia de ser analisada à luz quer do princípio do equilíbrio contratual quer do princípio da boa fé;
20) Haverá que analisar os concretos contornos e especificidades destes contratos acoplados para se poder concluir algo a respeito do risco negociai envolvido resultando da teia de obrigações e deveres resultantes destes contratos que avulta a obrigação da utilização correcta do serviço por parte do utente, utilização esta que fica dependente em boa parte deste porquanto assenta no princípio básico da não divulgação - seja a quem for e seja em que circunstâncias for - dos seus elementos de segurança e códigos de acesso, pessoais e intransmissíveis;
21) E isto porquanto uma vez introduzidos correctamente no sistema tais códigos e elementos de acesso o banco não pode deixar de pagar porquanto assume que a ordem provém do legítimo titular da conta visto que só este tem acesso a tais elementos e códigos;
22) Ao contrário do que parece transparecer da douta sentença recorrida é sobre o banco que incide à partida na génese do contrato de utilização do “B” Directa o desequilíbrio contratual atendendo a que lhe é impossível prever (e consequentemente actuar em conformidade evitando que a transferência bancária se processe) que em determinada situação concreta não obstante os elementos e códigos de acesso secretos e intransmissíveis não é efectivamente o titular da conta que está a debitá-la;
23) E daí a lógica de o banco pretender repor o equilíbrio contratual no que concerne ao risco envolvido fazendo incorrer sobre o utente do serviço “B” Directa o ónus de ter de ser ele a demonstrar que nestes casos (casos de introdução correcta dos elementos e códigos de acesso) a sua conta foi debitada sem que ele, voluntaria ou involuntariamente, tivesse divulgado estes elementos e códigos; Todavia, caso o utente do serviço detecte que a sua conta está a ser debitada sem a sua intervenção, avisar o banco e este não actuar aí dúvidas não há de que passa a ser do banco a responsabilidade do risco do negócio; o banco só pode impedir a movimentação da conta após a comunicação que lhe deve ser feita pelo titular da conta assim que este detecte a movimentação anómala da mesma;
24) Ou seja: não se pode atentar apenas, como faz a douta sentença recorrida, no depósito bancário, de mais a mais perspectivado em termos que estão longe de ser pacíficos, esquecendo o contrato acessório de utilização do Sistema “B” Directa on line ; a consideração do contrato de utilização como um contrato autónomo, embora em regime de coligação com o depósito bancário, apoia o afastamento da invocação, em primeira linha, das regras do depósito irregular a propósito de uma utilização indevida do cartão, amparando, em contrapartida o reconhecimento de que o regime das cláusulas 9 e 10 é conforme aos princípios da boa fé e do equilíbrio contratual;
Termos em que deverá ser revogada a douta sentença recorrida absolvendo-se a apelante da condenação proferida.”.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- natureza jurídica do contrato de depósito bancário;
- relação entre aquele contrato e o contrato de utilização do serviço “B” Directa;
- validade das cláusulas 9ª e 10ª das Condições Gerais de utilização do serviço “B” Directa;
- da culpa quanto ao “perecimento” do dinheiro depositado na conta do A.
- na ausência daquela, quem suporta o “risco” de tal “perecimento”.
*
Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito e nada impondo diversamente, a factualidade seguinte:
“1. O Autor é titular, desde 9 de Fevereiro de 1999, da conta número ... da Ré, sediada na agência do … sita na Avenida ..., n.º …, em Lisboa;
2. Na referida conta bancária, o Autor efectua os movimentos correspondentes à sua vida de gestor e chefe de família, com movimentos de depósito e desconto de cheques e eventuais levantamentos, todos de pequenos montantes;
3. No dia 20 de Julho de 2008, em que o Autor se encontrava no gozo de férias, este foi alertado para o facto de que havia sido realizado, no dia anterior, um movimento de transferência da sua conta acima identificada, no valor de € 5 000,00, com a finalidade de “Entrada Lancha”, para a conta número ... da instituição Ré, de que é titular “C”;
4. No dia 21 de Julho de 2008, o Autor foi alertado de uma nova transferência no valor de € 5 000,00 da sua conta acima identificada para a conta número ..., de que é titular “D”, com a finalidade de “Parcela Veículo”;
5. Constatando a situação, o Autor contactou a agência no ... e expôs ao gerente o facto de estar a ser vítima de subtracção de valores da conta à guarda da instituição Ré;
6. Por efeito desta actuação, o gerente conseguiu evitar o levantamento da segunda transferência, com destino para a mencionada conta número ..., de que é titular “D”;
7. Na sequência da reclamação apresentada pelo Autor, a Ré procedeu ao bloqueio da dita conta beneficiária da ocorrida transferência, tendo a conta bancária do Autor sido creditada pelo mesmo valor (€ 5 000,00);
8. O Autor apresentou queixa-crime, a que foi atribuído o NUIPC .../08.4PHOER da 8.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, por burla informática, não tendo sido deduzida acusação no processo por falta de provas;
9. O Autor comunicou à Ré, verbalmente e por escrito, que não ordenara qualquer das aludidas transferências;
10. O Autor subscreveu o serviço da Ré denominado de “B”directa on-line (em 12 de Junho de 2006), tendo sido inseridos no sistema os códigos e elementos de segurança pertencentes ao Autor aderente, cifrados;
11. Nos termos do estipulado em 9 e 10 das Condições Gerais de Utilização do Serviço “B”directa, subscritas pelo Autor (cuja cópia se encontra a fls. 22 dos autos), presume-se que as operações realizadas com a inserção dos elementos de segurança pessoais e intransmissíveis do subscritor do serviço são da autoria do subscritor do serviço; caso se demonstre que as operações (transferências) realizadas foram efectuadas por terceiros, presume-se que tal foi consentido ou culposamente facilitado pelo subscritor aderente;
12. Aquando da subscrição do serviço “B”directa on-line foi fornecido ao Autor, na activação deste serviço, um número de contrato, um código de acesso e um cartão matriz com um conjunto único de 64 combinações de números de três algarismos cada, que funciona como um elemento de segurança adicional para as operações realizadas no serviço “B”directa on-line;
13. Qualquer um destes três dados deve ser pessoal, secreto e intransmissível;
14. O Autor sabia dever respeitar as recomendações de segurança e os alertas de segurança que a Ré divulgava e divulga no seu sítio www.”B “.pt e que estão disponíveis ao utilizador imediatamente antes do acesso ao serviço e sempre em cada utilização deste;
15. Nas sobreditas recomendações de segurança, acessíveis aos utilizadores do serviço “B”directa on-line, sob o título de “Mantenha a confidencialidade dos seus dados pessoais”, consta expressamente: “(…) Mantenha sempre os seus códigos de acesso ao “B”directa on-line reservados. Não os divulgue, nem mesmo se solicitado por pessoas que se identifiquem como colaboradores da “B “, não os escreva de forma a poderem ser consultados por terceiros, nem os envie por correio electrónico (nem mesmo para si próprio)”;
16. Nas mesmas recomendações de segurança, sob o título “Proteja e preserve o seu cartão matriz”, a Ré avisa os utentes que devem “preservar a confidencialidade dos números contidos no cartão”; e, ainda, que “deve ter sempre presente que a “B” nunca solicita dados de segurança (códigos de acesso e cartão matriz) ou outro tipo de informação confidencial através de mensagens de email, telefone, ou outro tipo de contacto. Nunca se deve responder a este tipo de solicitação porque se trata de fraude. Para ter a certeza que está a aceder ao site “B”directa on-line, deve sempre aceder através do endereço https://”B”directa.”B “.pt e nunca através de links contidos em mensagens de email, mesmo que estas tenham alegadamente origem na “B””;
17. Para que o utente do serviço “B”directa on-line possa efectuar operações na(s) sua(s) conta(s), após fazer o login (mediante a introdução do número de contrato e do código de acesso), é-lhe solicitada aleatoriamente pelo sistema uma das 64 possíveis combinações de três números que compõem o cartão matriz de modo a validar a operação que pretende realizar, e realizá-la;
18. Quem acedeu à conta bancária do Autor pôde fazê-lo porque conhecia, quer o número do contrato, quer o número do código de acesso, quer todas, ou parte, das 64 combinações de três algarismos que compõem o cartão matriz;
19. As movimentações da conta do Autor foram executadas porque introduzidos os códigos que permitiam o acesso àquela conta bancária;
20. O sistema informático da Ré e, em concreto, o serviço “B”directa on-line, encontra-se protegido, sendo considerado pelos especialistas como um sistema seguro, não obstante alguns clientes terem sido já alvo de acção organizada de grande dimensão.”.

Mais se tendo julgado não comprovado “qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa, designadamente a factualidade seguinte:
I. Os movimentos descritos no ponto 2. (dos factos provados) nunca ascenderam à média de € 450,00, desde a abertura da identificada conta;
II. O gerente da referida agência bancária conhece o Autor e os movimentos que faz na conta, sabendo que este não faria, atenta a sua idade e posição, a compra de automóvel e de embarcação, por transferência de quantias tão elevadas;
III. O Autor nunca deu instruções, em toda a sua vida, para a realização de transferências, só sendo possível através de alguém pertencente aos serviços da Ré ou a empresa de assessores que tivesse acesso a elementos identificadores do cartão matriz e suas passwords, junto das entidades emitentes, a mando da Ré;
IV. O Autor mantinha o seu cartão matriz a bom recato, guardado numa gaveta fechada à chave da secretária onde despacha o seu expediente;
V. O Autor revelou na Internet todas as possíveis combinações de três algarismos que lhe podiam ser solicitadas pelo sistema da Ré para validar as operações bancárias que pretendesse realizar;
VI. Dentro da instituição Ré é impossível conhecer os códigos de autenticação dos clientes aderentes a este serviço, nomeadamente os do Autor (por estarem cifrados);
VII. De entre todas as instituições bancárias a operarem em território nacional, a Ré é a que maior segurança oferece ao nível da prestação de serviços na área da Internet e dos produtos fornecidos por este meio de comunicação.”.
Vejamos:
II – 1 – Da natureza jurídica do “contrato de abertura de conta”.
Como logo se alcança das alegações da Recorrente, e designadamente do teor da conclusão 13ª, aquela assimila o contrato de abertura de conta a um contrato de depósito.
Apenas ressalvando que, para lá do “ilíquido” do entendimento daquele como depósito irregular, “sempre se terá de concluir que existem especificidades no depósito bancário que não são possíveis de enquadramento no regime jurídico que este prevê, nomeadamente para o risco do perecimento ou deterioração da coisa”.

Com o que nem se afasta de autores como Antunes Varela, que utilizou a expressão “depósito bancário” na acepção de conta bancária,[1] e do próprio legislador, no Decreto-Lei n.º 430/91, de 2 de Novembro, relativo ao “regime geral das contas de depósito”.

Mas distinguindo a generalidade dos autores aquelas duas espécies negociais.
Assim se referindo Engrácia Antunes ao contrato de conta bancária como “contrato bancário primogénito”, em torno do qual “gravitarão usualmente os contratos de depósito, cheque…”.[2]
Apontando Menezes Cordeiro[3] tratar-se o depósito bancário em sentido próprio, de uma operação que surge sempre associada a uma abertura de conta.
E referindo João Calvão da Silva[4] que apesar de andar a conta corrente bancária, normalmente associada à conta de depósito à ordem, “trata-se de duas modalidades de convenção, perfeitamente distintas (…), A conta corrente é um contrato autónomo, com conteúdo próprio, na essência o serviço de “B”, distinto do depósito e da abertura de crédito.”.

Propendendo parte significativa da doutrina para a qualificação do depósito bancário como um depósito irregular, a que se aplicam as regras do mútuo na medida do possível, vd. Antunes Varela[5] e João Calvão da Silva.[6]
Embora outros, como Ferreira de Carvalho[7] e Paula Ponces Camanho,[8] sustentem revestir aquele a natureza jurídica de mútuo.
E outros ainda, como Maria Raquel Guimarães,[9] prefiram considerar que “Estamos (…) mais perto de um contrato de mandato, enquanto gestão de interesses alheios, do que de um contrato de mútuo ou mesmo de depósito, ainda que irregular.”.

A jurisprudência maioritária, com que enfileiramos, acolhe a primeira tese, cfr. v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-1999,[10] 04-04-2006,[11] e 10/11/2011.[12]
Naquele último ler-se podendo:
“Através do acto de depósito o tradens aceita transferir para a esfera de domínio (propriedade) do accipiens o risco sobre a gestão da quantia que transferiu, sendo que a partir desse momento se alheia da responsabilidade quanto ao uso e fruição, por transferência para a esfera de responsabilidade do depositário. Cabe ao depositário, enquanto proprietário da coisa transferida responder pelo risco de extravio ou dissipação da coisa até ao montante exigível no momento da solicitação da restituição.”.

José Engrácia Antunes[13] colocando embora a tónica na natureza acessória do depósito bancário relativamente ao contrato de conta bancária, caracteriza aquele “por dois elementos essenciais: por um lado, a entrega material ou electrónica pelo depositante de uma quantia em dinheiro ao banco depositário, o qual passa a ser assim titular da propriedade e risco das disponibilidades monetárias depositadas; por outro lado, a restituição de igual quantia nos termos acordados, usualmente acrescida dos juros.” (o realce a negrito e sublinhado são nossos).
Também Menezes Cordeiro[14] “mantendo” o “depósito bancário como figura unitária, típica, autónoma e próxima, historicamente, do depósito irregular”, não deixa de assinalar que “O risco do que possa suceder na conta do cliente, quando não haja culpa deste, cabe ao banqueiro”.

De qualquer forma, as diversas abordagens referenciadas remeter-nos-ão para resultados finais idênticos, quando não por via da consideração da transferência do domínio da coisa e, consequentemente, da transferência do risco, por via da obrigação de restituição no mesmo género e qualidade, que em qualquer das consideradas abordagens impende sobre o banco, por aplicação das regras do mútuo, e quando não ilida aquele a legal presunção de culpa, cfr. art.ºs 540º, 796º, n.º 1, 799º, n.º 1, 1144º, 1185º, 1205º e 1206º, e 1161º, alínea e), todos do Código Civil.
Sendo assim de assinalar que mesmo para Maria Raquel Guimarães,[15] “sempre que o banco debite na conta do seu cliente uma determinada quantia sem a autorização deste último, o seu cliente manter-se-á credor do montante debitado. E este princípio vale não só para os montantes debitados em virtude de erro do sistema ou de uma qualquer anomalia técnica, mas também para aquelas situações de actuação fraudulenta de um terceiro, sempre que essa actuação não seja imputável a acto ou a omissão do cliente do banco.
A instituição bancária não pode liberar-se da sua obrigaçao de restituição dos fundos "depositados" se a ordem de pagamento emana de um terceiro. O cumprimento feito a terceiro não extingue a obrigação do credor nos termos da nossa lei civil e, apesar as ordens de pagamento dadas através de um terminal electrónico por um terceiro serem eventuulmente acompanhadas da introdução de um cartão de débito e da correcta marcação do PIN respectivo no teclado da máquina, criando-se, portanto, a aparência do direito de crédito do "depositante", não se pode esquecer a irrelevância atribuída pelo legislador português ao cumprimento efectuado ao credor aparente, com a consequente possibilidade de o solvens repetir a prestação, estando, no entanto, obrigado a efectuar nova prestação perante o verdadeiro credor.”.

II – 2 – Da relação entre o contrato de depósito e o contrato de utilização do serviço “B” Directa.
O Autor, está provado, subscreveu o serviço da Ré denominado de “B”directa on-line.
E que, como é pacífico, se reconduz ao chamado home banking, figura contratual distinta do depósito, e que envolveu uma proposta e uma aceitação.
Através do serviço assim disponibilizado sendo conferida ao A. a faculdade “de estabelecer relações com a “B “ consistentes, designadamente, na aquisição de serviços, realização de consultas e de operações bancárias relativamente às contas de que ele seja o único titular ou co-titular em regime de solidariedade, e que possa livremente movimentar, utilizando para o efeito, canais telemáticos: telefone (serviço telefónico) internet (serviço on-line) Wap (wireless Application Protocol, ITV (interactive TV) ou outras formas de acesso que venham a ser definidas pela “B”.”, cfr. cláusula 1ª das “Condições Gerais” do Serviço “B” Directa, a folhas 22.

Sendo meridiano que este “novo” contrato se insere numa relação negocial complexa iniciada através de um contrato de abertura de conta, e da constituição de depósitos de quantias em conta por parte da A.
Encontrando a sua razão de ser nesses contratos de abertura de conta e de depósito, relativamente aos quais prossegue uma função de simplificação de processos e operações disponibilizados, em jornada contínua, ao cliente, que assim desfruta de um acesso mais continuado e mais rápido, potenciando a realização de outras operações, bem como a obtenção de uma gama mais vasta de serviços, de forma em princípio mais cómoda.
Com enormes poupanças de escala, por parte do banco, que, a não ser assim, nunca se interessaria pela disponibilização de tal serviço que, de resto, e como é notório, promove insistentemente junto dos seus clientes.

Deparando-nos pois com uma situação de vários contratos ligados entre si, segundo a intenção dos contraentes, por um nexo funcional, que influi na respetiva disciplina.
Podendo ver-se aqui uma verdadeira coligação de contratos, em que há já certa dependência entre os contratos coligados – substancialmente correlacionados entre si – criada pela relação de motivação que os afecta, sem que porém esse nexo destrua a sua individualidade.[16]
Ou nas palavras de Inocêncio Galvão Telles,[17] configura-se, numa união de contratos com dependência, em que aqueles são “distintos mas já não autónomos. As partes querem-nos como um conjunto económico, que envolve um nexo funcional (…) O vínculo de dependência significa que a validade e vigência de um contrato, ou de cada um dos contratos, depende da validade do outro. Um contrato só será válido se o restante o for;”.
Mas sendo certo, por outro lado, que para além da diferenciação da sede formal dos contratos, o de serviços de “B” Online interfere diretamente na área normativa própria do contrato de abertura de conta e de depósito.
Certo a propósito que como assinala José Engrácia Antunes, o “contrato de conta bancária - enquanto contrato nuclear instituinte do tronco comum sobre o qual repousarão todas as relações jurídicas entre banco e cliente, inclusive contratuais” possui “um conteúdo negocial complexo do qual fazem parte, necessária ou usualmente, outras convenções acessórias embora autónomas: tal o caso do contrato de conta-corrente bancária (convenção que tem por objecto o registo contabilístico das operações reciprocamente realizadas entre os contraentes e respectivo saldo) e do contrato depósito (convenção que tem por objecto o depósito de dinheiro na conta do titular).”.
A todas essas operações se referindo o serviço de “B”directa.

Tendo-se assim, pelo que agora aqui interessa – e para lá da questão da qualificação da espécie de contratos (mistos/união) que a questão da validade das cláusulas 9ª e 10ª das Condições Gerais do contrato de utilização do Serviço “B”directa não deixará de se repercutir na matéria da responsabilidade da “B “, nos quadros do contrato de depósito bancário.

II – 3 – Da referida questão de validade.
1. Nas sobreditas cláusulas, recorda-se, consignou-se:
“9. Sempre que uma operação seja realizada mediante os procedimentos referidos nas cláusulas anteriores e no guia do utilizador, presume-se que o foi pelo aderente.”.
10. Se, no entanto, se provar que a operação foi realizada por terceiro, presumir-se-á que tal foi consentido ou culposamente facilitado pelo aderente.”.

Referindo-se as aludidas “cláusulas anteriores” à inserção dos elementos de segurança pessoais e intransmissíveis do subscritor do serviço.

Ora, não sofrendo crise tratar-se o contrato em que aquelas se inserem, de um verdadeiro contrato de adesão, também assim pacífico é estar aquele sujeito à disciplina estabelecida no Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro – sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 1995-08-31; Decreto-Lei n.º 220/95, de 1995-08-31; Decreto-Lei n.º 249/99, de 1999-07-07; e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 2001-12-17.

Concluiu-se, na sentença recorrida, pela nulidade de tal clausulado, “ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 12.°, 20.º e 21.°, al. j), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.”.
E, assim, depois de se considerar que por via da aplicação do regime jurídico do mútuo “é o Banco adquirente quem arca com o risco da perda ou deterioração da coisa transferida, de acordo com o princípio estruturante res perit domino. Tentar transferir o risco como se fez através do estipulado em 9 e 10 das Condições Gerais de Utilização do Serviço “B”directa, subscritas pelo Autor (cuja cópia se encontra a fls. 22), subverte o âmago desse princípio estruturante, ao mesmo tempo que altera as regras respeitantes à distribuição do risco, designadamente na hipótese (verificada) de se demonstrar que as operações (transferências) realizadas foram efectuadas por terceiros, "presumindo-se" que tal foi consentido ou culposamente facilitado pelo subscritor aderente. Situação que se nos afigura absolutamente proibida na relação negocial mantida com o consumidor final (ora Autor)”.

Ao que contrapõe a Recorrente a não aceitação da qualificação do depósito bancário como depósito irregular, e o império quer do princípio do equilíbrio contratual quer do princípio da boa fé, em função dos “concretos contornos e especificidades destes contratos acoplados.”.

2. Pelo que à qualificação do depósito bancário e à relação entre este e o contrato de utilização do serviço “B” Directa, respeita, remete-se para o que se deixou dito supra, em II -1 e II-2, e, no primeiro ponto, se conclui no tocante à aplicação das regras do mútuo.

Quanto ao mais, assinalar-se-á que a nulidade de cláusula contratual absolutamente proibida, como assim é o caso das que “Alterem as regras respeitantes à distribuição do risco”, e como anota José Manuel de Araújo Barros,[18] “tem relevado essencialmente no que concerne a cláusulas que, nas convenções que regem a utilização de cartões bancários, imputam contratualmente ao seu titular a responsabilidade, com maior ou menor amplitude, pelos riscos de utilização abusiva ou fraudulenta daqueles.”.
Concluindo aquele autor que a partilha de risco – por ele advogada – não se justifica no casos em que o perecimento da coisa, neste caso o levantamento ou pagamento indevidos de e com dinheiro do depósito, ocorrer por facto imputável a qualquer das partes.
E que nos “casos residuais”, em que o prejuízo não é imputável ao mau funcionamento de mecanismos que são exclusivamente controlados pelo banco nem a actuação culposa do banco ou do titular da conta – “sendo os casos mais típicos os que ocorrem na sequência de perda ou de roubo do cartão” – “qualquer cláusula de um contrato de utilização nos termos da qual o depositário (predisponente) faça recair sobre o depositante tal risco, ou o faça em um montante desajustado ao domínio que este detém sobre a quantia depositada, será proibida. Absolutamente proibida, a que o fizer recair apenas sobre o depositante, por força da alínea f) do artigo 21.º em análise. Relativamente proibida, a que colocar a cargo do depositante um risco superior àquele que, atendendo ao quadro negocial padronizado, a sua quota-parte de domínio sobre a quantia depositada justifique – cláusula relativamente proibida atípica, já que não constante do rol das enunciadas nos artigos 19.º e 22.º do DL n.º 446/85.”.

Não podendo aqui deixar de se assinalar serem diversas as situações de perda ou furto de cartão de débito – em que tal evento está inteiramente subtraído ao controlo do banco emissor – das de apossamento de dados pessoais relativos ao serviço de homebenking, em que tudo se trata da vulnerabilidade de um sistema que se proclama como “blindado”.

Que as cláusulas em causa fazem recair o risco do perecimento da coisa, e integralmente, sobre o aderente, é porém conclusão que, em rigor, não podemos acolher.

As ditas presumem expressamente a culpa ou consentimento do aderente na realização, por terceiro, de operação de home banking mediante a inserção dos elementos de segurança pessoais e intransmissíveis do subscritor do serviço.

O que implica, é certo, uma prova do contrário – cfr. art.º 350º, n.º 2, do Código Civil – absolutamente diabólica e na prática inalcançável pelo aderente.
O qual não tem qualquer controlo sobre os sofisticados meios informáticos da entidade bancária, nem dispõe da assessoria técnica de primeira água com que os departamentos respetivos daquela se apetrecham.

Na verdade, e como dá nota Luiz Gustavo Caratti de Oliveira,[19] “a proteção de contra senha é freqüentemente utilizada como um dispositivo protetor contra acesso sem autorização, porém, o hacker moderno pode evitar esta proteção, descobrindo a contra senha que lhe permite o acesso, introduzindo programa específico para este fim que irá capturar outras senhas de usuários legítimos.”.
E a “fraude virtual” “É utilizada em muitos casos de crimes econômicos, como manipulação de saldos de contas, balancetes em bancos, transferências de dinheiro, etc, alterando, omitindo ou incluindo dados, com o intuito de obter vantagem econômica. A fraude virtual é o crime de computador mais comum, mais fácil de ser executado, porém, um dos mais difíceis de ser esclarecido. Não requer conhecimento sofisticado em computação e pode ser cometido por qualquer pessoa que obtenha acesso a um computador e a uma linha telefônica. Tradicionalmente a fraude envolve o uso de dados bancários roubados ou furtados.”.
Referindo ainda aquele autor que “atualmente a fraude virtual mais aplicada na internet que prejudica o sistema bancário é a chamada “salami slicing” ou seja, fatias de salame. Os ladrões utilizando vários recursos, realizam transferências eletrônicas, de pequenas quantias, de milhares de contas.”.

Concluindo o mesmo que “os bancos são responsáveis pelos prejuízos advindos das fraudes virtuais que lesam as contas de seus correntistas efetuadas através dos sites das respectivas instituições financeiras, ou seja, o cliente ao se sentir lesado por ser vítima de terceiro que movimente sua conta ao ponto de lhe causar prejuízo financeiro, deve ser ressarcido pelo banco, pois este tem o dever de manter seu serviço em segurança. A instituição financeira ao se descuidar da segurança das contas de seus clientes, deve ser responsabilizada por isso.”.

Face à apertada literalidade das cláusulas em análise, e na ausência de outros elementos, terá de aceitar-se tratar-se aqui – melhor do que uma questão de alteração de regra, res perit domino, respeitante à distribuição do risco, como se julgou na sentença recorrida – da modificação dos “critérios de repartição do ónus da prova” – cfr. alínea g) do mesmo art.º 21º do RJCCG – igualmente proibida, e sancionada com a nulidade da cláusula respetiva, quando, como é o caso, se mostre estabelecida no âmbito das relações com consumidores finais, cfr. art.º 20º do mesmo Regime.

Recorde-se que de acordo com o disposto no já citado art.º 799º, n.º 1, do Código Civil, recai sobre o devedor o ónus da prova de que “a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”.
E, assim, impendendo sobre o banco/depositário a obrigação de restituição de quantia em dinheiro igual à depositada – porventura acrescida de juros e deduzida dos encargos bancários acordados – sobre ele recairá o ónus de prova de a circunstância de a restituição ser de quantia inferior, não provir de culpa sua.

II – 4 – Da culpa quanto ao “perecimento” do dinheiro depositado na conta do A.
1. Pelo que respeita ao A. não estão reunidos factores que permitam configurar uma actuação de menor cuidado relativamente à preservação dos tais elementos ditos “pessoais, secretos e intransmissíveis”, através de cuja introdução electrónica se efectua o “login” que vai possibilitar a realização on line das diversas operações na conta respetiva.
Não sendo legítimo retirar da circunstância de as movimentações da conta do Autor terem sido “executadas porque introduzidos os códigos que permitiam o acesso àquela conta bancária”, essa falta do cuidado exigível, nas circunstâncias concretas do caso.
Reitera-se ter resultado não provado que Autor tenha revelado na Internet todas as possíveis combinações de três algarismos que lhe podiam ser solicitadas pelo sistema da Ré para validar as operações bancárias que pretendesse realizar; que dentro da instituição Ré seja impossível conhecer os códigos de autenticação dos clientes aderentes a este serviço, nomeadamente os do Autor (por estarem cifrados); e que de entre todas as instituições bancárias a operarem em território nacional, a Ré é a que maior segurança oferece ao nível da prestação de serviços na área da Internet e dos produtos fornecidos por este meio de comunicação.
Antes tendo ficado provado que embora o sistema informático da Ré e, em concreto, o serviço “B”directa on-line, se encontre protegido, sendo considerado pelos especialistas como um sistema seguro, alguns clientes foram já alvo de acção organizada de grande dimensão.

2. Por isso mesmo e no que tange à Ré/recorrente, logo assim sendo legítimo questionar se aquela, e designadamente na sequência desses eventos, terá desenvolvido todas as acções que se impunham em ordem a garantir a segurança dos depósitos dos seus clientes.
Até porque o acesso on line fraudulento aos depósitos bancários conhece uma sofisticação e actualização permanentes, que exigem das instituições de crédito um esforço continuado naquele domínio, ao menos enquanto persistirem em apresentar-se como guardiãs confiáveis dos valores que lhes são entregues, no pressuposto de assim ficar garantida a salvaguarda daqueles.

Como refere Roberta de Matos Vilas Boas,[20] «A internet está exigindo mais atenção e cuidado dos usuários. Segundo o relatório da IBM de Tendências e Riscos X-Force 2009, referente ao primeiro semestre, os links nocivos cresceram mais de 500% no período, e algumas mudanças na forma de ataques também foram notadas.
Uma delas refere-se aos ataques de phishing voltados a alvos financeiros, que estão sendo substituídos por Cavalos de Tróia voltados à atividade bancária. Com isso, embora a primeira forma de ataque esteja diminuindo, não significa mais segurança financeira.
Nos seis primeiros meses do ano, do total de phishing, aqueles direccionados ao sector financeiro representaram 66%, contra 90% registrados no mesmo período do ano passado. Os alvos de pagamento on-line responderam por 31%.
Além do aumento em links nocivos, o relatório indica que houve crescimento na presença de conteúdo lesivo em sites de alta confiabilidade e credibilidade, incluindo mecanismos de buscas populares, blogs, painéis de divulgação, sites pessoais e revistas on-line.
Também foi notada a utilização de métodos mais sofisticados para obter acesso e manipular dados dos usuários. Isso é demonstrado pelo alto nível de explorações na web ainda não detectadas, especialmente em arquivos PDF. "É o maior já visto, superando todas as vulnerabilidades desse tipo descobertas em todo o ano de 2008", afirma o gerente da IBM ISS (Internet Security Systems), João Gaspar.».

Sendo igualmente reconhecido, em artigo de Francisco Luís, publicado na inforBANCA 88 • Abr > Jun 2011, da Associação Portuguesa de Bancos,[21] que “Os ataques de phishing e o malware usados são cada vez mais sofisticados e difíceis de detectar, mesmo para utilizadores alertados para a temática da segurança.”.

Importando porém assinalar que tais artigos, e compreensivelmente, atenta a sua origem, fonte e/o, enquadramento, colocam a questão apenas na perspectiva de o acesso on-line fraudulento, se efectivar através da plataforma informática do utilizador/aderente…

Ora temos para nós, face à factualidade apurada, não logrou a Ré/recorrente demonstrar que o acesso de terceiros, em via electrónica, à conta do A./recorrido, se não ficou a dever a qualquer vulnerabilidade do sistema de segurança por ela implementado, relativamente à movimentação on line dos clientes aderentes ao serviço ““B” directa”.
Uma vez mais se convocando o não provado de que “Dentro da instituição Ré é impossível conhecer os códigos de autenticação dos clientes aderentes a este serviço, nomeadamente os do Autor (por estarem cifrados)”.
Também não havendo sido alegado, nem desse modo tendo resultado provado, ser impossível que a partir do exterior alguém possa aceder ao sistema informático da Ré, e nele recolher os sobreditos códigos.

Resultando pois não actuado o ónus de prova que recaía sobre a Ré, e subsistindo a presunção de culpa estabelecida no art.º 799º, do Código Civil.

II – 5 – Do risco.
Mas ainda quando assim não fosse de concluir, antes se devendo entender haver a Ré/recorrente logrado ilidir a presunção da sua culpa, sempre seria de a responsabilizar a título de risco, conforme resulta do que se foi referindo supra, designadamente em sede de caracterização do contrato de depósito bancário.

Sem que se conceda aqui a bondade da solução da partilha do risco, já por excluída quando se pressupõe, como é o caso, a transferência da propriedade do dinheiro depositado para o banco depositário, já por, em qualquer caso, não haver um equilíbrio entre as posições do depositante e da instituição, que justifique aquela solução.
Pois dificilmente alguém poderá sustentar o razoável de o depositante individual suportar – ainda que em parte – o risco de a instituição de crédito a quem confiou os seus valores, se revelar afinal incapaz de assegurar a intangibilidade daqueles por terceiros.
O depositante contrata com o banco no inarredável pressuposto de ser estranho às vicissitudes por que passe a instituição de crédito em matéria de segurança, e para as quais ele não contribua.
A não ser assim estar-se-ia a frustrar o cerne da motivação que esteve na base da celebração do contrato de abertura de conta e dos contratos “acessórios” daquele, como o de depósito.
*
Improcedem, em suma, as conclusões da Recorrente.


III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, que decaiu totalmente.
Taxa de justiça nos termos da tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
*
Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 713º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, como segue:
(…)
*
Lisboa, 2012-05-24

Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
--------------------------------------------------------------------------------------
[1] In “Depósito Bancário – Depósito a Prazo em regime de Solidariedade” in Revista da Banca, n.º 21 (1992), Janeiro/Março de 1992, Associação Portuguesa de Bancos, Lisboa, págs. 41-75, maxime 49.
[2] In “Direito dos Contratos Comerciais”, Almedina, 2011 (Reimpressão de Ed. de Setembro de 2009), pág. 484.
[3] In “Manual de Direito Bancário”, 2ª Ed., 2001, Almedina, pág. 524.
[4] In “Direito Bancário”, Almedina, 2001, pág. 344.
[5] In op. et loc. cit.
[6] In op. cit., pág. 349.
[7] In “Natureza Jurídica e Função do Cheque”, Revista da Banca, n.º 18, Abril/Junho de 1991, pág. 106, quanto ao particular do depósito a prazo.
[8] In “Do contrato de depósito bancário”, Almedina, 1998, pág. 208.
[9] In “As transferências Electrónicas de Fundos e os Cartões de Crédito”, Almedina, 1999, pág. 233.
[10] Relator: Ferreira Ramos, in Col. Jur. , Acs. do S.T.J., Ano VII, tomo I, págs. 133-134
[11] Proc. 06A579, relator: Azevedo Ramos in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[12] Proc. 1182/09.1TVLSB.S1.L1, relator: Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[13] In op. cit., pág. 493.
[14] In op. cit., pág. 525.
[15] In op. cit., pág. 233.
[16] Vd. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª Ed.,(reimpressão) Almedina, 2003, págs. 282-284.
[17] In “Direito das Obrigações”, 6ª ed., Coimbra Editora, 1989, pág. 71.
[18] In “Cláusulas Contratuais Gerais, D.L. n.º 446/85 – Anotado – Recolha Jurisprudencial”, Wolters Kluver Portugal – Coimbra Editora, 2010, pág.314.
[19] Pós graduado em Direito Civil e Processo Civil com Ênfase em Direito do Consumidor (Universidade Castelo Branco), Graduado em Direito (Universidade Salgado de Oliveira) e Advogado. In “Monografia de conclusão de curso apresentada ao curso de Pós Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Castelo Branco como parte dos requisitos para conclusão de curso.”, in www.ambito-juridico.com.br.
[20] In www.jurisway.org.br. v2/bancojuris1.asp?pagina=1&idarea=1&idmodelo=16232.
[21]In http://apb.pt/content/files/Inforbanca_88_Proteger_o_Dinheiro.pdf.

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/fb97a022c0ffb06180257a1e003d26ca?OpenDocument

segunda-feira, 25 de junho de 2012

QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA, INSOLVÊNCIA CULPOSA, PRESUNÇÕES JURIS ET DE JURE - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 04/06/2012


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3063/10.7TBVFR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA

Nº do Documento: RP201206043063/10.7TBVFR-B.P1
Data do Acordão: 04-06-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 186º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

Sumário: O n.º 2 do art° 186° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece nas suas diversas alíneas, presunções de insolvência culposa, devendo entender-se tais presunções como de “juris et de jure”, ou seja, nestas diferentes alíneas enumeram-se os casos em que a insolvência é sempre culposa.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Pº nº 3063/10.7TBVFR-B.P1
Apelação
(102)
ACÓRDÃO

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada insolvente B…, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, veio a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentar parecer propondo que a insolvência seja qualificada como culposa, por força do disposto no art. 186º, n.º 2, alíneas a), b) e d), e n.º 3, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

O Ministério Público aderiu ao parecer do Sr. Administrador da Insolvência, por se verificar, em concreto, a previsão das referidas alíneas do n.º 2 e do n.º 3 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, promovendo a qualificação da insolvência como culposa.

A insolvente deduziu oposição, com os fundamentos constantes de fls. 31 e seguintes, que aqui damos por reproduzidos. Defende que a alínea a) do n.º 3 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não tem aplicação no caso concreto, por se tratar de uma pessoa singular, alegando que o imóvel identificado na escritura pública de partilha subsequente ao divórcio foi adquirido com recurso a crédito bancário, garantido por hipoteca voluntária constituída sobre o mesmo imóvel, tendo o passivo correspondente sido adjudicado ao seu ex-marido e, por outro lado, que a venda efectuada à sociedade “C…, S.A..” se prendeu com razões de gestão e fiscais, sendo certo que a insolvente não tinha a consciência de estar eminente a insolvência da sociedade “D…, Lda.”. De facto, em Junho de 2009, não obstante alguns problemas de tesouraria, foi desenvolvido um plano de reestruturação e estavam em curso negociações para regularização das dívidas junto dos bancos. Aliás, não seria o património pessoal dos sócios e avalistas que poderia garantir os créditos bancários concedidos à referida sociedade, mas antes o valor da participação que aqueles detinham na mesma, sendo do conhecimento dos bancos que o património daqueles era insuficiente para o efeito.

A Sr.ª Administradora da Insolvência respondeu nos termos de fls. 53 e seguintes.

O Ministério Público não respondeu.

Foi proferida sentença em que se decidiu:
a) Qualificar a insolvência como culposa e declarar afectada por tal B…;
b) Decretar a inibição da mesma para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 5 (cinco) anos;
c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela mesma e a sua condenação da restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

Inconformada, apelou a insolvente, apresentando alegações, cujas conclusões são as seguintes:
I. Carecem de legitimidade para vir accionar os avalistas, os credores do insolvente que não se opuseram ao Plano de Insolvência aprovado, conforme a faculdade que lhes é dada pelo artigo 216, n.º1, alínea a) do CIRE, no qual está previsto um plano de pagamento dos créditos.
II. Conforme se tem vindo a pronunciar a doutrina, nomeadamente por Catarina Serra, cujos argumentos e que se dão aqui por reproduzidos nos termos supra citados.
III. Desta forma, não pode proceder a presente acção, uma vez que os seus credores não têm legitimidade para exigir em juízo o pagamento das quantias devidas enquanto avalista.
IV. Se assim não se entender, deve a decisão ora recorrida ser revista devendo o a prova produzida ser reapreciada.
V. A Mmª. Juíza “a quo” fundamenta a decisão no que à matéria de facto concerne:
- no teor dos documentos principais juntos aos autos principais e demais apensos;
- no relatório apresentado pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência (de aqui em diante apenas designada por AI) nos termos do artº. 155 do CIRE;
- nos elementos que resultam do processo de insolvência 3071/10 relativo à irmã da aqui Recorrente;
- no depoimento das testemunhas inquiridas, com destaque positivo para o teor do depoimento da testemunha E… e destaque negativo para o teor do depoimento da testemunha F….
VI. Mas, dos depoimentos recolhidos nos testemunhos prestados, quer pelas testemunhas arroladas pela AI quer pela testemunha arrolada pela Oponente, resultou claro que os factos vertidos nos artigos 31, 34, 36, 37, 38 e 39 da oposição, deveriam ter sido dados como provados.
VII. Quanto ao artigo 31, a testemunha F… disse claramente que a compra e venda dos imóveis à C… tinham como objectivo desenvolver a actividade imobiliária da sociedade, não tendo sido contrariado por nenhuma da restante prova produzida no presente processo (ou nos autos originais e respectivos apensos), nomeadamente pelos restantes testemunhos e/ou pela prova documental.
VIII. Quanto aos factos constantes dos artigos 36 e 37 da oposição, os depoimentos de E…, G… e F…, testemunhos que se dão aqui por reproduzidos nos mesmos termos que se encontram supra, deixaram bem claro que existiu um Plano desenvolvido pela H…, que existiram, a partir da data referida, negociações com os bancos, com vista à aplicação desse plano e que, como tal, havia a expectativa de que as dificuldades da D… fossem superadas a curto prazo.
IX. Expectativa essa que ainda hoje se mantém, como se pode ver pela aprovação do Plano de insolvência aprovado pela AI, que se encontra devidamente aprovado pelos credores da D…, conforme as declarações da mesma testemunha F….
X. Esta situação sai, mesmo reforçada, pelos documentos juntos aos autos e que consubstanciam as alíneas aa) e bb) dos factos dados por provados na sentença proferida no âmbito do processo de insolvência 3071/10 mencionado na motivação da sentença recorrida, nos quais consta que, com as datas de 16 e 20 de Novembro de 2009, respectivamente com o I…, SA e com o J…, SA a D… celebrou contratos de reestruturação do seu crédito.
XI. O artigo 38 da oposição resulta provado com o depoimento da testemunha G…, que confirmou que o K… não considerou o projecto da H… viável.
XII. No que diz respeito ao artigo 39 da oposição, a testemunha L…, funcionário do M…, S.A., deixou bem claro que os créditos eram concedidos sem qualquer avaliação ou sequer confirmação do património dos avalistas.
XIII. Após este depoimento, não restam dúvidas que os créditos eram concedidos com base única e exclusivamente no valor da D…, de outra forma, teria sido feita uma análise detalhada ao património pessoal dos avalistas, ou seja, o Banco ter-se-ia assegurado da existência de bens desonerados em quantidade suficiente para assegurar o pagamento do crédito o que, como verificámos, não aconteceu.
XIV. Resulta do exposto que os factos constantes dos mencionados artigos 31, 36, 37, 38 e 39 da oposição devem ser dados como provados.
XV. Sendo assim, e por maioria de razão, também têm que se dar como provados os factos vertidos no artigo 34 da mencionada oposição uma vez que os Administradores da Sociedade e, naturalmente os seus sócios, sempre acreditaram na viabilidade da empresa, nunca se convencendo que o desfecho seria a insolvência.
XVI. Mais deve o Tribunal rectificar a alínea a) dos factos provados porquanto a presente acção tem como objecto a insolvência de B… e não de O…, conforme se encontra na mencionada alínea.
XVII. Mais se recorre das alíneas aa) e bb) dos factos provados uma vez que consubstanciam factos novos, não invocados por nenhuma das partes.
XVIII. Entende-se ainda que, dos depoimentos já citados, não resultaram provados os três pressupostos em que o Tribunal baseia a douta sentença.
XIX. Não houve qualquer disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros por parte da Recorrente, aquando da partilha por Divórcio.
XX. Como resulta da alínea m) dos factos provados da douta sentença, a Recorrente transferiu então para o património do cônjuge não avalista, a propriedade dos imóveis aí descritos.
XXI. Contudo, transferiu-se também o passivo a ela associado, ou seja, a hipoteca e o pagamento do empréstimo, recebendo a quantia de 50.943,80 euros a título de pagamento de tornas.
XXII. Sendo assim, não houve qualquer prejuízo para os credores uma vez que, ao partilhar os imóveis em questão, a Recorrente deixou de ter um encargo, ou seja, o pagamento de um empréstimo, sobre um bem que não seria de utilidade aos credores, uma vez que se encontrava hipotecado a favor da N… e ainda recebeu uma quantia significativa de dinheiro de valor superior ao outro imóvel partilhado, que certamente enriqueceu o património da agora insolvente.
XXIII. Também não houve qualquer prejuízo para os credores da Recorrente com a celebração das escrituras pública de 1 de Junho (rectificada a 5 de Junho do mesmo ano) e 10 de Julho de 2009, através das quais a Insolvente vendeu à sociedade C…, Lda., da qual era sócia, os cinco imóveis descritos nas referidas escrituras – alíneas k), l) e n) dos factos provados da sentença ora recorrida.
XXIV. Sociedade essa que viu o seu capital social aumentado, passando a quota da insolvente a ter o valor de 10.000,00 quando antes era de 1.000,00 euros – alínea x) dos factos provados.
XXV. Ou seja, a Recorrente não só manteve a sua quota na sociedade compradora, como ainda aumentou a mesma.
XXVI. Como tal, não deixaram os imóveis de estar acessíveis aos credores da Recorrente, porquanto a mencionada quota, fazendo parte do seu património era, obviamente, um bem penhorável.
XXVII. Os credores da Recorrente ficaram mesmo, com tal negócio, beneficiados, senão vejamos: dos bens vendidos, a Recorrente era detentora de uma quota correspondente a 3/42 enquanto que, na sociedade C…, a sua participação era de 8/42, conforme se explica detalhadamente no artigo 62 supra.
XXVIII. E não houve qualquer prejuízo para os credores na posterior venda das acções da Recorrente, conforme resulta dos factos provados na alínea y) da Sentença agora recorrida, uma vez que tal venda não foi resolvida pela Senhora Administradora da Insolvência.
XXIX. Assenta ainda a condenação prevista na Sentença ora recorrida, bem como as acusações supra rebatidas, na premissa de que a Recorrente teria plena consciência de uma suposta iminente insolvência da sociedade D….
XXX. Não consta da lista de factos dados como provados na mesma Sentença qualquer menção a estes dois aspectos, ou seja, à existência de uma iminente insolvência da sociedade e do seu conhecimento por parte da Recorrente, e nenhum deles resulta como provado dos testemunhos ouvidos.
XXXI. Veio a testemunha E…, que desempenhava as funções de secretária na D…, afirmar que a Recorrente lhe teria confidenciado que tinha sido aconselhada a divorciar-se para salvaguardar os bens próprios.
XXXII. Ora, como já foi referido, encontra-se este depoimento cheio de contradições, designadamente no que diz respeito às informações que lhe teriam sido contadas pela Recorrente, o conhecimento que resultou do que “se dizia” pela empresa, ou ainda de meras deduções, conforme confessado pela mesma testemunha.
XXXIII. Quanto à testemunha G…, funcionário do K…, apenas podia dar a sua opinião da situação da D… perante a instituição bancária em que trabalha, e não generalizar para a restante Banca.
XXXIV. Tal funcionário não tomou conhecimento dos factos aquando da existência de relações comerciais entre a D… e o K…, nem tão pouco quando os créditos e os avales agora em causa foram concedidos.
XXXV. Na verdade, apesar da testemunha afirmar veementemente que, em Abril de 2009, a D… se encontrava insolvente, a instituição bancária para a qual trabalha, só requereu a insolvência da mesma a 26 de Janeiro de 2010.
XXXVI. O que significa claramente que, nem o próprio banco acreditava em tal insolvência, ou que as dificuldades financeiras que eventualmente existissem não fossem ultrapassáveis.
XXXVII. E é um facto que, ainda hoje, o K… acredita na D…, de outra forma, não faria sentido que tivesse aprovado o Plano de Insolvência da sociedade, e muito menos, que tivesse convertido parte do crédito em capital social da mesma.
XXXVIII. No que diz respeito ao depoimento de L…, funcionário do M…, este apenas teve conhecimento de factos até ao momento em que o processo passou para o departamento de contencioso, não sabendo, como tal, nada relativamente aos factos posteriores a esse momento.
XXXIX. Ou seja, o que estes dois últimos depoimentos atestam é que, em Maio de 2009, existia incumprimento no pagamento de algumas obrigações assumidas perante os respectivos bancos.
XL. O que, só por si, não significa que estivéssemos perante uma insolvência iminente.
XLI. Quanto a esta matéria, são referidos no artigo 85 supra o Assento do STJ n.º 9/94 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-2009, que aqui se dão por devidamente transcritos.
XLII. Ora, no caso em apreço, face à prova produzida, forçoso é concluir que em finais de Maio ou de Junho de 2009, a D… não estava em situação de insolvência, nem a mesma era iminente.
XLIII. Aliás, verificados os factos índice previstos no artigo 20º do CIRE, nenhum deles se verificou no caso sub judice, nem durante todo o segundo semestre de 2009, nem tão pouco no início do mesmo.
XLIV. Tanto as testemunhas E… e F…, confirmaram ao Tribunal que os salários dos trabalhadores, e os pagamentos ao fisco e à Segurança Social sempre foram escrupulosamente cumpridos.
XLV. Não existe então, nos depoimentos mencionados, certeza ou conhecimentos de facto que legitimem a convicção criada pelo Tribunal de que a D… estaria em iminente insolvência, e, muito menos, que a Recorrente tivesse consciência desse facto.
XLVI. Pelo exposto, não estão, no caso em apreço, reunidos os requisitos do artigo 186.º, n.º2 alínea d) do CIRE, uma vez que, não só não se logrou provar que a D… se encontrava em iminente insolvência como, muito menos se provou que a recorrente tivesse consciência desse facto.
XLVII. Mas ainda que se entenda que a D… se encontrava em iminente insolvência, que a Recorrente tinha essa consciência, ou que tinha obrigação de a ter, o que por mero dever de patrocínio se pondera, a verdade é que, não houve qualquer prejuízo para os seus credores, nem com a partilha por divórcio, nem com a venda dos imóveis à C…, como se demonstrou supra.
XLVIII. Desta forma, não houve disposição dos “bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”, como dispõe o mencionado artigo do CIRE.
NESTES TERMOS, e nos melhores de direito, requer V. Exas. se dignem conceder provimento ao presente recuso, pugnando pela revogação da sentença recorrida nos termos expostos.

Por seu turno, apresentaram contra-alegações a Massa Insolvente, representada pela administradora da insolvência, sendo as respectivas conclusões as seguintes:
A. A QUESTÃO PRÉVIA, suscitada carece, diga-se, de total fundamento legal;
B. É extemporânea e descontextualizada no âmbito do presente incidente de qualificação de insolvência;
C. Teria, assim, que ter sido colocada no âmbito do processo principal de insolvência – que não foi. Pois, então, já se apurou a legitimidade dos credores. Tendo a decisão (sentença de declaração de insolvência) transitado em julgado. Encontram-se assente este facto, que não foi objecto de oposição nem tão pouco recurso;
D. Tendo, por isso, transitado em julgado a douta Sentença de 4 de Janeiro de 2011 que decretou a insolvência da aqui Recorrente;
E. Por último, quanto a esta questão, atente-se que se não opôs ou impugnou a Recorrente os créditos reclamados e posteriormente reconhecidos pela Banca;
F. Tendo agora, surpreendentemente, ou talvez não, uma postura verdadeiramente contraditória e em claríssimo abuso de direito, que deverá sucumbir com todas as ínsitas consequências legais;
G. QUANTO À REAPRECIAÇÃO DA PROVA, a Meritíssima Juiz a quo, fundamentou a sua decisão:
a) no teor dos documentos principais juntos aos autos principais e demais apensos;
b) no relatório apresentado pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência, nos termos do art. 155.º do CIRE;
c) nos elementos que resultam do processo de insolvência n.º 3071/10.8TBVFR, a correr termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, relativo à irmã da recorrente e, por fim
d) no depoimento das testemunhas inquiridas, positivamente, quanto às testemunhas E…, G…, L… e, negativamente, quanto à testemunha F…;
H. E, por consequência lógica, deu como não provados os artigos 31, 34, 36, 37, 38 e 39 da Oposição, não existindo qualquer contradição entre todas as provas conjugadas entre si;
I. Existindo, uma forte sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação”.
J. Em resultado fica uma mera discordância, injustificada e birrenta da Recorrente face à decisão;
K. Devendo, manter-se a douta decisão face ao princípio da oralidade e da imediação conforme decorre da jurisprudência que de forma abrangente se referiu e transcreveu na motivação, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos;
L. Pois, a credibilidade das provas (o seu mérito ou desmérito) e a convicção criada pelo julgador da 1ª instância «tem de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento, «onde para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»;
M. Acresce que, da prova produzida e gravada em audiência de julgamento não se pode retirar qualquer uma das conclusões a que a Recorrente chega. Que foram verdadeiramente destorcidas da realidade pela mesma.
N. Atente-se por exemplo que o ARTIGO 31.º DA OPOSIÇÃO nunca poderia ser dado como provado, quer face à documentação constante no processo de insolvência, quer por outro lado, face aos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento;
O. Ora, a TESTEMUNHA F…, indica pela ora Recorrente, foi verdadeiramente inconsistente e sem qualquer credibilidade porque, APESAR DE ADMINISTRADOR ÚNICO DA SOCIEDADE C… E PESSOA QUE HÁ VÁRIOS ANOS OCUPAVA CARGOS DE RESPONSABILIDADE TAMBÉM NA PRÓPRIA D…, QUANDO QUESTIONADO SOBRE QUAIS OS INVESTIMENTOS REALIZADOS NA SEQUÊNCIA DESSE ACTO E QUAIS OS RESULTADOS DESSA SOCIEDADE, NÃO SOUBE ESCLARECER O TRIBUNAL (cd1, depoimento de F…, aos 38:17 até 39:10);
P. Relativamente AO ARTIGO 34 DA OPOSIÇÃO e de acordo com o TESTEMUNHO DE E…, desde 2009, a empresa estava com dificuldades, ao que soma o facto da própria insolvente ter sido sócia da empresa e a par dos seus irmãos aí trabalharem (CD1, depoimento de E…, aos 1:26 até 2:00);
Q. Acresce ainda, quanto a esta matéria o depoimento da TESTEMUNHA G…, tendo referido que em “Maio/Abril de 2009” o processo da D… “passou para a gestão e recuperação de crédito, porque existia um incumprimento reiterado por parte da empresa para com a banca”. Conhecendo a insolvente e a sua irmã, O… porque tinham “avalizado todas as operações de crédito junto do banco” (CD1, depoimento de G…, aos 1:37 até 2:00). A mesma testemunha indica que o último pagamento à banca foi realizado em Abril de 2009. E que em Maio do mesmo ano, todas as obrigações estavam vencidas e não mostravam a mínima possibilidade para puder cumprir (CD1, depoimento de G…, aos 3:50 até 4:04). Pelo que, a Avaliação do K… era a de que a empresa não estava solvente, tendo sempre a convicção de que a empresa não recuperava (CD1, depoimento de G…, aos 2:28 até 2:49). Para além de aspectos colaterais, uma vez que tiveram conhecimento de que se encontrava a ser realizada uma dissipação do património, quer quanto D…, quer quanto à aqui recorrente (CD1, depoimento de G…, aos 2:59 até 3:50);
R. Pelo que concluíram que nada mais restava senão requerer a insolvência da D… (CD1, depoimento de G…, aos 5:13 até 5:26);
S. Relativamente ao depoimento de L…, funcionário do M…, foi referido que desde Maio de 2009, diversas obrigações se venceram, originando a instauração de acções executivas, veja-se a título de exemplo a mencionada na al. r) dos factos dados como provados. Logo, nunca poderia ser desconhecido por parte da insolvente, ora Recorrente, que a D… se encontrava em situação de insolvência iminente;
T. QUANTO AOS ARTIGOS 36 E 37 da oposição também, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, nunca poderiam ser dados como provados. Ora, veja-se a este respeito o depoimento de G… que foi peremptória ao afirmar que “O projecto da H… (…) não tinha sustentabilidade absolutamente nenhuma” (…) “na opinião do K…” (CD 1, depoimento de G…, aos 19:30 a 19:49);
U. No que diz respeito ao ARTIGO 38 da oposição, A D… já se encontrava em insolvência iminente desde Maio de 2009, uma vez que, desde essa data, estavam vencidas todas as obrigações junto do K… (CD1, depoimento de G…, aos 1:37 até 2:00). Em consequência e atento o facto i) dado como provado, a 26 de Janeiro de 2010, o K… requereu a declaração de insolvência da D…. Sendo que, de acordo com o facto j) dado como provado, A PRÓPRIA D… apresentou-se à insolvência, no dia anterior àquele em que juntou oposição ao pedido instaurado pelo K…;
V. No que concerne ao ARTIGO 39 DA OPOSIÇÃO e de acordo com as declarações de L…, o aval prestado pelos sócios da D… era factor importante e tinha como destino final o pagamento dos créditos na eventualidade da empresa não puder cumprir.
Acrescentando ainda que, o seu parecer, não se baseava apenas na D… e naquilo que o negócio em que ela estava inserida representava, mas também, necessariamente, sem dúvida, com a informação que tínhamos das pessoas, do património que tinha. (CD2, depoimento de L…);
W. Por conseguinte, não restam dúvidas de que os créditos eram concedidos com base não só no valor da D… e no valor do seu negócio, mas também no valor patrimonial dos avalistas;
X. Resulta assim do exposto que os factos constantes nos art. 31.º, 34.º, 36 a 39.º da Oposição não poderiam ter resposta distinta à que tiveram (não provados);
Y. Acresce que, face ao comportamento da insolvente goza a Recorrida da presunção de má fé da Recorrente;
Z. Atente-se assim que quanto À PARTILHA POR DIVÓRCIO na douta sentença da qualificação da insolvência, foi dado como provado, na al. m), a transmissão do património comum do casal, por partilha, após o divórcio, para o conjugue não avalista, marido. O que prejudicou, inegavelmente, os credores da insolvente B…;
AA. Até porque, ao contrário do que é dito pela recorrente no ponto 56 das suas alegações, in fine, a ter sido paga qualquer quantia monetária para liquidação das tornas, que não foi, o mesmo não entrou no património da agora insolvente; ficando sem o cativo e permanecendo o passivo. Aliás pelo credor hipotecário foi reclamado o crédito na sua totalidade;
BB. Divorcio e partilha que ocorreu apenas para fuga do património aos credores o que foi demonstrado, inequivocamente, pelo depoimento da TESTEMUNHA E…, secretária da administração da sociedade D…, Lda., durante cerca de 12 anos. Que conhece, a insolvente e a sua irmã O…, há “12 anos, desde que entrou para a empresa” (CD1, depoimento de E…, aos 1:15 até 1:19), que para além de “patroas, foram/eram amigas” (CD1, depoimento de E…, aos 00:42 até 00:51), tendo afirmado que a Insolvente e a sua irmã se divorciaram em Maio/Junho de 2009 (CD1, depoimento de E…, aos 3:18 até 3:30), por terem sido aconselhadas, no intuito de «salvar os bens próprios delas» (CD1, depoimento de E…, aos 4:52 até 4:57), sendo certo que, depois do divórcio, «continuaram a levar uma vida normal» (CD1, depoimento de E…, aos 4:20 até 4:25).
CC. Quanto à VENDA DOS IMÓVEIS HERDADOS À SOCIEDADE C…, em complemento, foi dado como provado nas al. k), l) e n) que a insolvente vendeu em Junho/Julho de 2009, à sociedade C…, da qual era sócia, cinco imóveis, que tinha herdado por óbito, em 18 de Abril de 2001, do seu pai P…. Dessa forma e mais uma vez, visou desfazer-se de parte do património susceptível de garantir o cumprimento das suas responsabilidades. Até porque a prática das referidas compras e vendas, para além do divórcio e partilha, já supra esclarecido, terem ocorrido precisamente no ano de 2009 e após o vencimento das suas obrigações perante os credores. Ao que acresce o facto de a C… não ter assumido qualquer responsabilidade ou garantia perante os credores da insolvente B… (cfr. al. q) dos factos provados). Tendo sido, inclusivamente, transformada numa sociedade anónima, cujas acções estão na mão de terceiro que se desconhece (cfr. al. y) dos factos dados como provados e CD1, depoimento de F…, aos 37:04 até 37:38), após as referidas compras e vendas.
DD. O que mais uma vez obsta aos credores o «acesso» aos bens alienados a favor da mencionada sociedade.
EE. Em complemento, DA CONSCIÊNCIA DA INSOLVÊNCIA IMINENTE DA D…, reitera-se que a Recorrente tinha plena consciência da insolvência iminente da D…. Desde Maio de 2009 diversas obrigações se venceram, originando a instauração de acções executivas, veja-se a título de exemplo a mencionada na al. r) dos factos dados como provados. Ao que acresce o facto de que, conforme o TESTEMUNHO DE E…, desde 2009 a empresa estava em dificuldades. Reitera-se ainda que a própria insolvente era sócia e exercia funções na empresa a par dos seus irmãos (CD1, depoimento de E…, aos 1:26 até 2:00).
FF. Por conseguinte, se a secretária da administração, à data, se apercebeu das dificuldades, muito mais se aperceberia a insolvente face à relação de proximidade que tinha com a empresa e familiares.
GG. Ao que acresce ainda o depoimento da TESTEMUNHA G…, que indicou que, em “Maio/Abril de 2009”, o processo da D…” passou para a gestão e recuperação de crédito, porque existia um incumprimento reiterado por parte da empresa para com a banca”. Conhecendo a insolvente e a sua irmã, O… porque tinham “avalizado todas as operações de crédito junto do banco” (CD1, depoimento de G…, aos 1:37 até 2:00).
HH. Por conseguinte, dúvidas não restam de que era do conhecimento, não só da insolvente, como em geral, de que a empresa D… se encontrava, desde Maio de 2009, em situação de insolvência iminente.
II. Assim sendo e por tudo o explanado, dúvidas não restam de que se verificam os requisitos do disposto no art. 186.º, n.º 2 al. d) do CIRE;
JJ. NÃO TENDO A MERITÍSSIMA JUIZ A QUO VIOLADO QUALQUER NORMATIVO LEGAL, SENDO AO CONTRÁRIO A DOUTA DECISÃO RECORRIDA UM PARADIGMÁTICO EXEMPLO DE BEM JULGAR.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O RECURSO DE APELAÇÃO APRESENTADO IMPROCEDER, CONFIRMANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA.

Também o Ministério Público veio apresentar resposta às alegações, sendo as respectivas conclusões, as seguintes:
1. A recorrente coloca como questão prévia a ilegitimidade dos seus credores virem-lhe exigir os seus créditos, por se tratarem de créditos constituídos na qualidade de avalista de uma sociedade relativamente à qual foi aprovado plano de insolvência.
2. Tal questão prévia carece de qualquer enquadramento e fundamento legal. Nunca foi suscitada nos autos, nem foi alvo de qualquer decisão, pelo que não pode aqui ser apreciada.
3. A recorrente pretende ainda que os factos alegados na sua oposição sob os arts. 31º, 34º, 36º, 37º, 38º e 39º sejam considerados como provados.
4. A consideração de um facto como provado é feita após a valoração conjunta de toda a prova produzida nos autos, quer testemunhal quer documental. Não basta que uma testemunha profira determinada afirmação para que a mesma seja considerada como provada.
5. Os factos cujo aditamento se requer não resultaram minimamente provados nos autos. A recorrente limita-se a transcrever parcialmente os depoimentos que lhe interessam, ignorando todas as partes e todos os depoimentos que não são favoráveis à sua pretensão.
6. É o que sucede com o depoimento da testemunha F…, da E… e do G…, os quais se encontram apenas reproduzidos parcialmente, e apenas na parte conveniente.
7. De facto, não obstante o teor das partes transcritas pela recorrente, do depoimento integral das referidas testemunhas e dos demais prestados em audiência de julgamento, resulta que os factos cuja aditamento se requer não reuniram prova suficiente, pelo que foram os mesmos considerados, e bem, na sentença recorrida como não provados.
8. As presunções do art. 186º, nº 2, do C.I.R.E, são inilidíveis, ou seja não admitem prova em contrário. Verificando-se a ocorrência de factos aí descritos, tem necessariamente que se atribuir carácter culposo à insolvência.
9. Tendo-se provado a ocorrência da presunção p. na al. d) – de que a insolvente dispôs de bens em proveito pessoal ou de terceiros - necessariamente tinha de ser qualificada como culposa a presente insolvência.
10. De facto, verificando-se essa presunção, a lei prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito para se ter como culposa a insolvência.
11. Perante a prova da ocorrência do comportamento descrito na presunção, forçosamente tem de se concluir pela qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de um juízo casuístico do caso concreto.
12. Os factos descritos na referida presunção são de tal modo reprováveis e aptos a provocar a insolvência que é indiscutível o juízo de culpa que a lei lhe atribuiu.
13. A insolvência foi considerada como culposa com três fundamentos: a consciência pela recorrente, desde o início de 2009, da iminente insolvência da “D…”, sociedade de que era sócia e da qual tinha avalizado diversas obrigações bancárias; a partilha por divórcio, em Junho de 2009, onde foram atribuídos ao marido os dois imóveis que constituíam o património do casal; a venda da sua quota-parte de cinco imóveis à sociedade “C…”, em Junho e Julho de 2009.
14. Da conjugação destes factos, verifica-se que a recorrente ao aperceber-se da iminência da insolvência da sociedade de que era sócia, e da qual tinha avalizado a título pessoal diversas obrigações bancárias, tudo fez para colocar o seu património pessoal “ a salvo” dos credores, alienando todos os imóveis que possuía.
15. Fê-lo através da partilha por divórcio (em que atribuiu todos os bens do casal ao marido) e pela venda da quota –parte de cinco prédios à sociedade “C…”.
16. De notar que o marido não tinha qualquer obrigação para com os credores da recorrente, e de que a “C…” foi transformada em sociedade anónima e, depois da venda dos imóveis, a recorrente vendeu as suas acções deixando de ser sócia dessa sociedade.
17. Ao contrário do que alega a recorrente, na partilha por divórcio a mesma não ficou desonerada da sua obrigação de pagar os passivos que pendiam sobre os imóveis, uma vez que nenhum dos bancos beneficiários desses créditos participou na escritura de partilha, pelo que, o que aí ficou exarado apenas possui validade entre a recorrente e o marido.
18. Também não é verdade que a venda da quota-parte dos imóveis à “C…” se tenha devido a interesses desta sociedade, uma vez que não foi feita qualquer prova de que esta sociedade tenha utilizado os imóveis para realizar qualquer transacção imobiliária. Limitou-se a alienar as acções, logo que os imóveis foram inscritos a seu favor, transmitindo-as uma sociedade marroquina, e estando agora na mão de terceiros desconhecidos.
19. O património da recorrente foi assim completamente dissipado por esta em poucos meses, e logo que se apercebeu que iria responder a título pessoal pelas dívidas do “D…” que tinha avalizado.
20. Pelo exposto, bem andou a Ex.ª Juiz a quo ao qualificar como culposa a presente insolvência.
Nestes termos, deve manter-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Foram colhidos os vistos legais.

II – AS QUESTÕES DO RECURSO

Como resulta do disposto nos artºs 660º nº 2 e 684º nº 3 do CPC e vem sendo orientação da jurisprudência, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, sem embargo de haver outras questões que sejam de conhecimento oficioso.
Ora, tendo presentes essas conclusões, as questões colocadas no presente recurso são as seguintes:
1. Saber se os credores carecem de legitimidade para vir exigir da insolvente o pagamento dos seus créditos, por se tratarem de créditos derivados da sua qualidade de avalista de uma sociedade sobre a qual existe plano de insolvência aprovado.
2. Da reapreciação da prova.
3. Saber se a insolvência poderia ter sido classificada como culposa, como o fez a sentença recorrida ou se deve ser considerada fortuita como pretende a recorrente/insolvente.

III – FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância, provaram-se os seguintes factos:
a) O “Q…” requereu a declaração de insolvência de O… a 15 de Junho de 2010;
b) A requerida não deduziu oposição;
c) Foram considerados confessados os factos alegados na petição inicial e foi proferida sentença que declarou a insolvência a 4 de Janeiro de 2011;
d) A insolvente contraiu casamento católico com S… a 11 de Janeiro de 1992, o qual foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento a 16 de Junho de 2009;
e) A requerida foi sócia da sociedade “D…, Lda.”;
f) A Sr.ª Administradora da Insolvência incluiu na lista de créditos reconhecidos, créditos no valor global de 8.351.445,11 euros;
g) Tais créditos provêm de avais prestados a favor da sociedade “D…, Lda.”, com excepção do crédito da “N…, S.A.”, que reclamou um crédito no montante global de 136.786,98 euros, garantido por hipoteca voluntária constituída sobre a fracção autónoma designada pelas letras AJ descrita na CRP de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, com o número 994/19930721;
h) Foram apreendidos para a massa insolvente bens no valor de 395.419,89 euros, assim identificados: crédito de natureza privilegiada detido na insolvência da sociedade “D…, Lda.”, fracção autónoma identificada na alínea anterior e participação social na sociedade “T…, S.A.”;
i) A 26 de Janeiro de 2010 o “K…, S.A.” requereu a declaração de insolvência da sociedade “D…, Lda.”, sendo que, por sentença proferida a 8 de Julho de 2010, no processo n.º 462/10, do 4º Juízo Cível deste Tribunal, transitada em julgado a 25 de Agosto de 2010, foi tal sociedade declarada insolvente;
j) A própria sociedade apresentou-se à insolvência no dia anterior àquele em que juntou oposição no processo referido na alínea anterior, acção especial que correu termos pelo 1º Juízo Cível deste Tribunal, com o número 2601/10;
k) Por escritura pública outorgada no dia 1 de Junho de 2009, no Cartório Notarial de Matosinhos, de U…, V…, W…, B… e marido, S…, O…, X…, Y… e mulher, Z…, e AB… e mulher, AC…, intervindo os outorgantes maridos por si e ainda na qualidade de sócios-gerentes, em representação da sociedade “C…, Lda.”, declararam que no dia 18 de Abril de 2001 faleceu P…, no estado de casado com V…, em únicas núpcias de ambos e no regime da comunhão geral de bens, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe como herdeiros, além da referida mulher, os filhos Y…, W…, à data casada com AD…, sob o regime da comunhão de adquiridos, B…, AB…, O… e X…, sendo donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos cinco imóveis ali identificados (dois urbanos e três rústicos), que faziam parte integrante da herança aberta e indivisa por óbito de P…, declarando ainda vender tais imóveis à aludida sociedade, representada por Y… e AB…, os quais, nessa qualidade, declararam comprar para a sua representada;
l) Por escritura pública outorgada a 5 de Junho de 2009, no Cartório Notarial de Matosinhos, de U…, V…, W…, B… e marido, S…, O…, X…, Y… e mulher, Z…, e AB… e mulher, AC…, e F…, na qualidade de administrador único e em representação da sociedade “C…, S.A.”, declararam que por manifesto erro na declaração na escritura pública referida na alínea anterior foi indevidamente alienado o imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo 711º, quando na verdade o que pretendiam vender, além dos ali identificados nas verbas um, três, quatro e cinco, era o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, com o número 59363, assim rectificando a aludida escritura;
m) Por escritura pública de partilha por divórcio celebrada a 19 de Junho de 2009, no Notário de AE…, em …, Santa Maria da Feira, S… e B… declararam que foram casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, que por decisão de 16 de Junho de 2009, transitada em julgado na mesma data, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento, foi entre eles decretado o divórcio, pretendendo proceder à partilha do património comum constituído pela fracção autónoma designada pelas letras AJ descrita na CRP de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, com o número 994/19930721, com o valor patrimonial de 196.620,00 euros, sobre a qual recai hipoteca a favor da “N…, S.A.”, para garantia do capital inicial de 210.000,00 euros, e pela fracção autónoma designada pela letra K, descrita CRP de Santa Maria da Feira, freguesia de …, com o número 863/19960404-K, com o valor patrimonial de 49.295,12 euros, adjudicando ao primeiro tais imóveis, que assume também o passivo junto da referida instituição financeira no montante, à data, de 144.027,53 euros, encontrando-se pagas as tornas devidas à segunda, no montante de 50.943,80 euros, em dinheiro;
n) Por escritura pública outorgada no dia 10 de Julho de 2009, no Cartório Notarial de Matosinhos, de U…, V…, B…, por si e na qualidade de procuradora de W…, O…, X…, Y… e mulher, Z…, e AB… e mulher, AC…, declararam que no dia 18 de Abril de 2001 faleceu P…, no estado de casado com V…, em únicas núpcias de ambos e no regime da comunhão geral de bens, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe como herdeiros, além da referida mulher, os filhos Y…, B…, à data casada com S…, sob o regime da comunhão de adquiridos, W…, à data casada com AD…, sob o regime da comunhão de adquiridos, AB…, O…, hoje divorciada de AF…, e X…, sendo donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa de 3 pavimentos, dependência, garagem e quintal, sito na Rua …, n.º .., …, Vila Nova de Gaia, não descrito na CRP e inscrito na matriz predial com o artigo 711, que fazia parte integrante da herança aberta e indivisa por óbito de P…, declarando ainda vender tal prédio à sociedade referida na alínea m), representada por F…, na qualidade de administrador único, que, nessa qualidade, declarou comprar para a sua representada;
o) A sociedade “C…, Lda.” foi transformada em sociedade anónima por registo de 8 de Junho de 2009;
p) Eram seus sócios V…, Y…, W…, B…, AB…, O… e X…;
q) A sociedade “C…, S.A.” não assumiu qualquer responsabilidade ou garantia perante os credores da aqui insolvente;
r) O “AG…, S.A.” instaurou contra a insolvente, entre outros, acção executiva, pedindo o pagamento da quantia de 1.248.876,02 euros, a qual corre termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho com o número 952/09, no âmbito da qual não se logrou o pagamento ou a penhora de bens da insolvente;
s) O “Q…” reclamou um crédito no montante de 1.673.078,75 euros;
t) Tal crédito encontra-se vencido desde 29 de Maio de 2009;
u) O “AG…, S.A.” reclamou um crédito no montante de 1.311.220,59 euros;
v) Nos últimos três anos, a insolvente exerceu funções de administrativa na sociedade “D…, Lda.”;
w) A insolvente é titular de uma participação social de 50 acções na sociedade “T…, S.A.”;
x) Através da inscrição 5, ap. 13, de 8 de Junho de 2009, encontra-se registado o aumento de capital e a transformação da sociedade “C…, Lda.”, em 63.000,00 euros, passando o capital social a ser de 70.000,00 euros e a quota da insolvente a ter o valor de 10.000,00 euros, quando antes era de 1.000.00 euros;
y) A 21 de Novembro de 2009, o capital social de 70.000,00 euros, titulado por 700 acções, estava distribuído entre a sociedade AH…, com sede em Marrocos, com 630 acções, e V…, com 70 acções;
z) Nos anos de 2007 e 2008, S… declarou, em sede de IRS, um rendimento de, respectivamente, 520.806,92 euros e 28.039,78 euros.
aa) O…, irmã da aqui insolvente, foi declarada insolvente por sentença proferida a 29 de Outubro de 2010, na sequência do requerimento inicial apresentado pelo “Q…” a 15 de Junho de 2010;
bb) Contraiu casamento católico com AF…, o qual foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento por decisão de 29 de Maio de 2009, sendo que, a 19 de Junho de 2009, foi celebrada a escritura pública de partilha do património comum.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Saber se os credores carecem de legitimidade para vir exigir da insolvente o pagamento dos seus créditos, por se tratar de créditos derivados da sua qualidade de avalista de uma sociedade sobre a qual existe plano de insolvência aprovado.

A recorrente veio suscitar esta questão nesta sede recursiva, apelidando-a de questão prévia, recurso este da sentença recorrida em que se discute, primacialmente a questão da classificação da insolvência.
Na sentença recorrida não se abordou a questão da legitimidade da requerente da insolvência.
Ora, o âmbito do conhecimento do recurso de apelação está limitado, às questões suscitadas pelo recorrente perante o Tribunal a quo, ou seja, àquelas questões em que este se pronunciou de modo desfavorável para ele, estando-lhe vedado conhecer de matéria nova, ainda não proposta para discussão. [1]
Os recursos são, assim, meios instrumentais de reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para proferir decisões sobre matéria nova, isto é, que não tenha sido submetida à apreciação do tribunal de que se recorre (artºs 676º n.º 1 e 690º n.º 1, do CPC).
Em consequência, questões novas são aquelas que não foram apreciadas pelo tribunal recorrido por lá não terem sido suscitadas nem serem de conhecimento oficioso.
Pelo que, este Tribunal da Relação não pode conhecer em recurso de questões não suscitadas pelas partes no tribunal a quo, salvo na hipótese de se tratar de questões de conhecimento oficioso e houver factos assentes ou conhecidos em razão, além do mais, de notoriedade geral que o permita.
Perante o que acima deixámos expresso, não restam dúvidas de que a recorrente/insolvente suscitou perante este Tribunal da Relação, questão jurídica nova, com o sentido acima referido, que não pode ser conhecida, sob pena de estarmos a decidir ex novo.
Na verdade, como bem referem nas suas contra-alegações a massa insolvente de B…, representada pela administradora da insolvência e o Mº Pº, trata-se de questão perfeitamente extemporânea e descontextualizada, uma vez que a mesma nunca foi suscitada nestes autos, nem no processo principal.
De resto, a ora recorrente nem sequer se opôs à insolvência ou recorreu da sentença que a decretou.
Por isso, a sentença de 04/01/2011 que decretou a insolvência da ora recorrente, transitou em julgado.
Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões de recurso.

2. Da reapreciação da prova.

A recorrente entende que os factos por si vertidos nos artºs 31º, 34º, 36º, 37º, 38º e 39º da oposição deveriam ter sido dados como provados, face à prova produzida em audiência de julgamento.
Mais entende dever ser rectificada a al. a) dos factos provados porquanto a presente acção tem como objecto a insolvência de B… e não de O….
Insurge-se ainda contra os factos contidos nas als. aa) e bb) da sentença recorrida, alegando que tais factos não foram alegados por nenhuma das partes.
Começando pela abordagem deste último ponto.
É certo que nos presentes auto não foi alegada tal matéria por nenhuma das partes intervenientes, mas conforme decorre da fundamentação da matéria dada como provada, o Mmº Juiz a quo teve como fundamento para a sua decisão, entre outros, os elementos que resultaram do Pº de Insolvência nº 3071/10.8TBVFR, a correr termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, relativo à irmã da ora recorrente, conforme resulta, aliás, da acta de audiência de julgamento de fls. 110 e segs. em que se refere expressamente que a audiência teve lugar simultaneamente nos presentes autos e naqueles outros supra assinalados.
De qualquer modo, de acordo com o disposto no artº 11º do CIRE, no incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
O Tribunal pode, assim, recolher oficiosamente todos os elementos que considere pertinentes para a boa decisão da causa.
Como tal, devem manter-se os factos dados como provados sob as als. aa) e bb) na sentença recorrida.

Entende ainda a recorrente que deve ser rectificada a al. a) dos factos provados porquanto a presente acção tem como objecto a insolvência de B… e não de O….
Assiste inteira razão à recorrente.
De facto, os presentes autos dizem respeito à declaração de insolvência de B… e não a sua irmã O…, conforme decorre, aliás, da sentença de declaração de insolvência junta aos autos a fls. 277/280, datada de 04/01/2011.
Assim, dado tratar-se de um lapso material, decide-se operar a respectiva correção ao abrigo do disposto nos artºs 666º/2 e 667º/1 ambos do CPCivil, devendo passar a ler-se na al. a) da matéria dada como provada na sentença recorrida, o seguinte:
a) O “Q…” requereu a declaração de insolvência de B… a 15 de Junho de 2010.

Por último, requer a insolvente/recorrente o aditamento de factos da oposição que, em seu entender, deveriam ter sido dados como provados, atentos os depoimentos prestados quer pelas testemunhas arroladas pela AI, quer pelas testemunhas arroladas pela oponente, ora recorrente.
A sentença recorrida deu como não provados os factos vertidos nos artigos 31, 34, 36, 37, 38 e 39 da oposição.
Para assim decidir, o Mmº Juiz a quo teve em consideração, o teor dos documentos juntos aos autos principais e respectivos apensos, incluindo o presente; o relatório apresentado pela AI nos termos do disposto no artº 155º do CIRE; os elementos que resultaram do Pº de insolvência nº 3071/10 relativo à irmã da aqui insolvente, bem como no depoimento das testemunhas inquiridas, com destaque positivo para o depoimento da testemunha E… e destaque negativo para o depoimento da testemunha F….
Mas, analisemos cada um dos factos cujo aditamento à matéria de facto provada se requer:
Artº 31º da oposição:
Pretende a recorrente que da sentença recorrida passe a constar como facto provado que «a compra e venda dos imóveis constantes da escritura de 01.06.2009 prendeu-se unicamente com razões de gestão e fiscais, pois era mais eficiente do ponto de vista daqueles critérios gerir o património imobiliário procedente da herança de P… através de uma sociedade do que directamente através dos diversos herdeiros».
A recorrente fundamenta esta sua tomada de posição face ao depoimento prestado pela testemunha F…, economista e que exerceu funções na área administrativa e de informática na D… desde 2005 a 2009, o qual não foi contrariado por nenhuma da restante prova produzida nem pela prova documental.
De facto, a referida testemunha disse que “Em relação a esse tipo de compras que foi feito pela C…, isso tinha em vista o desenvolvimento da actividade imobiliária da C…” acrescentando ainda que “Porque tinha já construído 2 vivendas em …, penso eu, que tinha corrido bem e então como a empresa também pertencia às mesmas pessoas nessa data então decidiu-se pôr, aquilo que fosse património na C… para dotar a C… de meios para chegar junto da banca e facilitar mais os financiamentos à construção, para poder desenvolver a actividade da construção para aquilo que estava vocacionada. Portanto, foram esses os pressupostos da passagem do património porque o património dividido por 6 ou 7 não tem o mesmo valor que estando numa empresa imobiliária que também pertencia a eles e, portanto que poderia potenciar o desenvolvimento da actividade. Já se tinha arranjado uma pessoa que sabia de imobiliária e, tinha-se avaliado os prédios de acordo com, o que eram as condições do mercado na altura. E, atribui-se um valor para que não fosse nem muito alto nem muito baixo, mas de acordo com aquilo que estava a ser feito no mercado na hora”.
Contudo, esta testemunha, apesar de administrador da sociedade C…, não soube elencar um único investimento imobiliário feito na sequência das compras dos quinhões hereditários que cada um dos sócios desta sociedade detinha naqueles bens (que não eram outros senão os vendedores daqueles bens imobiliários) e quais os resultados dessa sociedade.
Como tal, bem andou o Tribunal a quo ao ter desvalorizado o depoimento desta testemunha neste aspecto como noutros que adiante abordaremos, porque se percebeu perfeitamente da audição do seu depoimento que sabia mais do que aquilo que disse em Tribunal, não o pretendendo elucidar.
Mantêm-se, por isso, tal matéria como não provada.

Artº 34º da oposição:
Pretende igualmente a recorrente que se dê como provado que «é absolutamente falso que a insolvente tivesse consciência de estar iminente qualquer insolvência da D… em Junho de 2009, ou sequer que fosse previsível o pedido de insolvência que foi apresentado contra a D… em inícios de 2010».
Resulta do depoimento prestado pela testemunha E… que foi secretária da D… durante 12 anos que “Em 2009 já se sabia que a empresa estava com dificuldades” a que acresce o facto de a ora insolvente trabalhar na própria empresa e ser sócia da mesma.
No mesmo sentido depôs a testemunha G…, bancário no K… e presidente da comissão de credores no Pº de Insolvência da D… ao dizer que “Em Maio/Abril de 2009, o processo da D… passou para a gestão e recuperação de crédito, porque existia um incumprimento reiterado por parte da empresa para com a banca”. Disse ainda que “conhece a insolvente e a sua irmã O… porque estas tinham avalizado todas as operações de crédito junto do banco”. Acrescentou ainda esta testemunha que “o último pagamento à banca foi realizado em Abril de 2009 e em Maio do mesmo ano todos os créditos estavam vencidos e não mostravam vontade de os solver”.
Esta testemunha acrescentou ainda que “era notório que a D… se encontrava naquela data, numa situação de insolvência, sendo tal facto do conhecimento generalizado de toda a banca”, sendo também realçado por esta testemunha que houve por parte dos sócios da D… uma clara intenção de dissipação do património e para não fazer intervir o património pessoal de cada um deles nas dívidas da D…, dado que todos os sócios se divorciaram na mesma altura, à excepção de um dos irmãos/sócios, acabando depois todos por vender os seus quinhões hereditários à C… de que todos eram sócios.
Esta situação é, também confirmada pela testemunha E… que referiu que a insolvente lhe desabafou que se divorciou para salvaguardar os bens próprios, mas que continuou a fazer a sua vida normal, vivendo, em conjunto com o agora ex-marido.
Toda esta situação contrasta, aliás, com o depoimento prestado pela testemunha F… que disse que “até Maio de 2009 tudo estava a funcionar normalmente na D…” quando é sabido que já em 2009 existiam acções executivas instauradas contra a ora insolvente, mas que esta testemunha disse desconhecer.
Isto mesmo foi confirmado pelo depoimento da testemunha L…, gerente do M… de …, quando disse que “desde Maio de 2009, diversas obrigações venceram-se, originando a instauração de acções executivas.
Disto mesmo é exemplo o que consta da al. r) dos factos provados na sentença recorrida.
Por todas estas razões, o credor K… entendeu não existir outra solução senão requerer a insolvência da D….
Em face de todos estes depoimentos e atendendo também à prova documental, é por demais evidente não poder ser desconhecida da insolvente, ora recorrente, a situação de insolvência iminente da D…, Lda.
Como tal, nunca poderia ser dada como provada matéria em que se assegurasse não ter a insolvente consciência de estar iminente qualquer insolvência da D… em Junho de 2009 ou ser previsível o pedido de insolvência que acabou por ser apresentado contra aquela sociedade em inícios de 2010.

Aos artºs 36º e 37º da oposição:
Pretende ainda a recorrente que se dê como provado que «era espectável que tais dificuldades da D… fossem superadas no curto prazo, tendo a sociedade, através dos seus Administradores, desenvolvido um plano de reestruturação nesse sentido, dado que a D… era e é viável – basta ver o plano de insolvência proposto pela mesma Srª Administradora de Insolvência» e que «a partir de Outubro de 2009 foram inclusivamente negociados acordos de regularização com os Bancos, com base num Plano desenvolvido com o apoio da H…, prevendo a constituição de um sindicato bancário».
Também relativamente a esta matéria não pode a mesma ser dada como provada, face ao depoimento da testemunha E… que referiu que o problema da D… era todo com a banca e chegaram até a “contratar a empresa H… para um plano de recuperação, mas o mesmo não foi avante”.
Igualmente a testemunha G… foi peremptória em referir que “o projecto da H… não tinha sustentabilidade absolutamente nenhuma, na opinião do K…”.
Mantêm-se, por isso, tal matéria, como não provada.

Artº 38º da oposição:
Requer a insolvente/recorrente que se dê como provado que «inesperadamente e com total surpresa, um dos bancos que iria constituir o sindicato entendeu romper repentinamente as negociações, em Março de 2010, tendo-se depois precipitado o pedido de insolvência da D…».
Não é possível dar esta matéria como provada, como pretende a recorrente/insolvente, por três razões:
1ª- A D… já se encontrava em situação de insolvência iminente desde Maio de 2009, uma vez que desde essa data se encontravam vencidas todas as obrigações junto do K…, de acordo com os já mencionados depoimentos das testemunhas G… e L…;
2ª- Tal como decorre da matéria de facto ínsita na al. i) da matéria dada como provada (que não foi impugnada) a declaração de insolvência da D…, Lda. foi requerida não depois de Março de 2010, como pretende fazer crer a recorrente, mas em 26 de Janeiro de 2010, sendo que, por sentença datada de 8 de Julho de 2010, transitada em julgado, foi tal sociedade declarada insolvente e,
3ª- De acordo com o teor da al. j) da matéria dada como provada, foi a própria D… que se apresentou à insolvência, no dia anterior àquele em que juntou oposição ao pedido de insolvência requerido pelo K….
Como tal, não constituía qualquer surpresa a insolvência da D… uma vez que tal situação já era iminente desde Maio/2009, razão pela qual não pode, de todo, tal matéria ser dada como provada.

Artº 39º da oposição:
Por último, segundo a recorrente deveria ter-se dado como provado que «Os bancos credores sempre haviam concedido crédito à D… unicamente pelo valor da D… e respectivas participações sociais e nunca por causa do restante património pessoal dos sócios, pois bem sabiam os Bancos ser manifestamente insuficiente para garantir só por si o pagamento dos avales prestados».
Esta foi a versão defendida pela testemunha F…, cujo depoimento, como já vimos, não tem a mínima contextualização factual.
Ao invés, os depoimentos unânimes e coerentes das testemunhas G… e L…, ambos funcionários bancários do K… e M… respectivamente, foram no sentido de que os avais prestados pelos sócios da D… era factores importantes e tinham como fim assegurar o pagamento dos créditos na eventualidade da empresa não os poder pagar. Com a alienação do património pessoal dos sócios ficaram aquelas instituições bancárias desprotegidas no que concerne aos seus créditos, por via de terem deixado de existir bens pessoais dos avalistas que assegurassem os avais prestados.
Caso os avais não tivessem importância para garantir os créditos concedidos, nem se perceberia por que razão eles foram constituídos.
Resulta, assim, que também quanto a esta matéria, não pode a mesma ser dada como provada.
Improcedem, por isso, também, neste segmento recursivo, as conclusões do recurso.

3. Saber se a insolvência poderia ter sido classificada como culposa, como o fez a sentença recorrida ou se deve ser considerada fortuita como pretende a recorrente/insolvente.

Na sentença recorrida classificou-se a insolvência da insolvente/recorrente como culposa, com os seguintes fundamentos:
- Na intenção da insolvente querer prejudicar os seus credores com a partilha de bens após o divórcio e com a venda à C… do seu quinhão hereditário e,
- na consciência da insolvência iminente da D….
A ser assim, estes comportamentos da insolvente/recorrente, o que iremos abordar de seguida, subsumem-se, tal como o fez a sentença recorrida, no disposto no artº 186º nº 2 al. d) do CIRE, aplicável por força do nº 4 do mesmo normativo.
Vejamos se assim é.
A insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita (art. 185º, do CIRE) estando os pressupostos da sua qualificação como culposa enunciados no art. 186º, nos seguintes termos: [2]
“1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2- Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido um contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º
3- Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
Por sua vez, dispõe-se no nº 4, daquele artigo que «os nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessária adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso se não opuser a diversidade de situações».
Além disso, conforme preceitua o nº 5, do mesmo normativo, «se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente».
É precisamente esta a situação do caso em apreço, dado que a insolvente, sendo uma pessoa singular, não titular de empresa (cf. art. 5º, do CIRE), não estava obrigada a apresentar-se à insolvência (cf. art. 18º, nº 2, do CIRE). Nesta conformidade, a qualificação da insolvência como culposa ou fortuita apenas depende da verificação de um comportamento enquadrável na noção geral contida no nº 1 do art. 186º, do CIRE e/ou das presunções do nº 2, atendendo às circunstâncias do caso.
Importa, pois, apurar se, in casu, é possível imputar à insolvente uma actuação dolosa ou com culpa grave, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra (segundo o critério plasmado no nº 1, do art. 186º, do CIRE) ou, ainda, se a situação é enquadrável em alguma das alíneas do nº 2, daquele artigo.
Note-se, porém, que, embora as presunções do nº2 do art. 186º se apliquem às pessoas singulares (com as devidas adaptações – cf. nº4, do art. 186º), nem todas as hipóteses ali contempladas são susceptíveis de aplicação a devedores que sejam pessoas singulares, como parece ser o caso, desde logo, das alíneas e) e f).
Vejamos, então.
Desde logo, os factos provados e as circunstâncias do caso, como bem se refere na sentença recorrida, “não são susceptíveis de demonstrar objectivamente as situações indicadas no artº 186º nº 2 als. a) e b) do CIRE.
Trata-se de uma pessoa singular, é conhecido o percurso dos bens identificados nos factos provados, não há notícia de que existissem outros e não resulta dos autos que os valores dos negócios jurídicos descritos sejam inferiores aos valores de mercado”.
Mas, será o comportamento da insolvente enquadrável na al. d) do nº 2 do artº 186º do CIRE, aplicável por força do nº 4 do mesmo preceito?
O nº 2 do artº 186º do CIRE estabelece nas suas diversas alíneas, presunções de insolvência culposa, devendo entender-se tais presunções como de “juris et de jure”, ou seja, nestas diferentes alíneas enumera-se os casos em que a insolvência é sempre culposa.
Está, pois, consagrada uma presunção de culpa, não sendo necessário prová-la e não sendo admissível prova em contrário.
Será, então, que a insolvente dispôs de bens em proveito pessoal ou de terceiros.
Foi dado como provado que foi efectuada a transmissão do património comum do casal constituído até então pela insolvente e por seu marido S…, por partilha, após o divórcio para o cônjuge marido, não avalista (cfr. al. m) dos factos provados).
A recorrente sustenta que com este circunstancialismo não prejudicou os seus credores, já que ao partilhar os imóveis em questão, a ora recorrente deixou de ter um encargo (pagamento do empréstimo) sobre um bem que não seria de utilidade para os credores, dada a hipoteca que sobre o mesmo recaía a favor da N… e ainda recebeu tornas em quantia superior ao outro imóvel partilhado, assim enriquecendo o património da insolvente.
A ser assim, não se percebe por que razão tendo a partilha por divórcio ocorrido em 19/06/2009, o AG…, SA não logrou o pagamento (ou, pelo menos, parte dele) ou a penhora de bens da insolvente no âmbito do pª executivo em que pedia o pagamento à insolvente de € 1.248.876.02 (cfr. al. r) dos factos provados).
Por outro lado, conforme decorre da matéria de facto provada, também o Q… reclamou um crédito no montante de € 1.673.078,75, o qual se encontra vencido desde 29 de Maio de 2009 (cfr. als. s) e t) da matéria de facto provada).
Daqui decorre que, ou a insolvente não recebeu quaisquer tornas, (o que nos parece ser a hipótese mais plausível de ter acontecido) ou não quis solver, pelo menos, em parte as suas dívidas. Com este comportamento, a insolvente quis salvaguardar o seu património pessoal transmitindo-o para o seu cônjuge que não era avalista da D…, assim colocando a salvo esses seus bens.
Isto mesmo decorre, como vimos, do depoimento da testemunha E….
Ora, estes factos prejudicaram, sem qualquer dúvida, os credores da insolvente B….
Por outro lado, a insolvente vendeu em Junho/Julho de 2009 à sociedade C…, da qual era sócia, o seu quinhão hereditário em cinco imóveis dos quais era titular desde 2001 (cfr. als. k), l) e n) da matéria dada como provada).
Com esta conduta, a insolvente quis, mais uma vez, ludibriar os seus credores, desfazendo-se do seu património que poderia garantir parte da dívida para com aqueles. Veja-se que, estas vendas e a partilha por divórcio ocorreram após o vencimento das suas obrigações perante os credores.
Sendo ainda de realçar que a C…, SA não assumiu qualquer responsabilidade ou garantia perante os credores da ora insolvente e aqui recorrente (cfr. al. q) da mat. provada) e inclusive foi transformada em sociedade anónima por registo de 8 de Junho de 2009 (cfr. al. o) da matéria provada), estando as respectivas acções distribuídas entre uma sociedade com sede em Marrocos e V…, mãe da ora insolvente (cfr. al. y) da mat. provada), pelo que, não se percebe como é que os credores saíram beneficiados com tal negócio, como, absurdamente alega a recorrente.
É que tal como ficou demonstrado, a C… não procedeu a qualquer actividade imobiliária com os imóveis em causa nem os utilizou tendo em vista a realização de qualquer investimento, designadamente imobiliário. Antes vendeu o maior quinhão das suas acções a uma sociedade com sede em Marrocos.
E, assim, perante este evidente descaminho de bens, a insolvente ainda alega que os credores não saíram lesados nos seus interesses, tanto assim que a AI não resolveu tais negócios de compra e venda.
Esquece-se a recorrente/insolvente que, estando provavelmente os bens já na posse de um terceiro, não será fácil proceder, na prática, à resolução de tais negócios.
Por último, resta abordar a questão de saber se a insolvente tinha consciência da insolvência da D….
Resulta dos factos dados como provados (cfr. als. r), s), t) e v) da mat. provada), a plena consciência da insolvente da situação de insolvência em que a D… se encontrava quando celebrou os negócios acima mencionados.
Veja-se que, se uma testemunha, mera funcionária administrativa E…, tinha consciência que, desde o início de 2009 a D… se encontrava em dificuldades financeiras e económicas, como não pode a insolvente que trabalhava também na sociedade D… não ter consciência disso também, ainda por cima tendo uma especial relação de proximidade com a empresa e seus familiares, todos eles sócios da mesma.
Também já referimos, aquando da abordagem da questão anterior que a testemunha G…, funcionário do K…, referiu que “em Abril/Maio de 2009, o processo da D… passou para a gestão e recuperação de crédito, porque existia um incumprimento reiterado por parte da empresa para com a banca”, acrescentando que “quer a insolvente quer a sua irmã O… haviam avalizado todas as operações de crédito junto do banco”.
Desta forma, a actuação da insolvente é susceptível de integrar os pressupostos enunciados na al. d) do nº 2 do art. 186º, do CIRE, onde se estabelece uma presunção “juris et de jure”, e em que a sentença recorrida se apoiou para qualificar a insolvência.
Improcedem, pois, in totum, as conclusões do recurso da apelante.

V – DECISÃO

Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Porto, 04/06/2012
Maria José Rato da Silva Antunes Simões
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto de Carvalho
______________
[1] Vide, por todos os Acs. do STJ de 03/11/2005 (relator Ferreira Girão) e de 15/12/2005 (relator Salvador da Costa), consultáveis em www.dgsi.pt.
[2] Trata-se de instituto novo, introduzido no CIRE – cf. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, p. 61. e também, Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p. 201 e Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, p. 13.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/c982bb074610a5ed80257a1e0051e811?OpenDocument

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