Acerca de mim

A minha foto
Porto, Porto, Portugal
Rua de Santos Pousada, 441, DE Telefone: 225191703; Fax: 225191701; E-mail: cabecaisdecarvalho@gmail.com

terça-feira, 8 de novembro de 2011

REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - 20/09/2011


Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
704/09.2GDSTB-A.E1
Relator: ALBERTO JOÃO BORGES
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
FORMALIDADES
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO

Data do Acordão: 20-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO

Sumário: I – A alegação dos factos que integram o elemento subjectivo do tipo, elemento essencial da acusação - tão essencial quanto a factualidade objectiva – não pode deixar de constar da acusação/requerimento de abertura de instrução, sob pena de o Tribunal, admitindo a instrução, não poder pronunciar o arguido (por falta de um elemento essencial para se considerar preenchido o tipo) ou, averiguando tal facto e aditando-o à pronúncia, proceder a uma alteração substancial da acusação, geradora de nulidade de tal despacho, «ex vi» artigo 309/1 do CPP
II – Não releva que tal elemento se possa inferir, em sede de prova, com recurso às presunções naturais ou às regras da experiência comum, pois uma coisa é a prova de tal elemento em sede de julgamento – prova que pode deduzir-se em face dos demais factos provados - e outra, bem diferente, é a alegação dos pertinentes factos que o integram, sendo certo que o objecto da prova são os factos descritos na acusação/pronúncia e esta não pode ir além da factualidade alegada no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade.
III – No caso em apreço, para além dos factos concretos que os assistentes imputam ao arguido (que no despacho recorrido não foram questionados), alegado está, por um lado, que o arguido «com a conduta descrita» cometeu, «de forma consciente e voluntária, um crime de…» (isto quanto ao crime de violência doméstica contra cônjuge e sobre menor), por outro, quanto ao crime de violação de domicílio, que o arguido cometeu tal crime – com a factualidade antes descrita, «de forma deliberada e consciente…».
IV – Esta alegação integra os elementos essenciais do dolo/enquanto elemento subjectivo do tipo, ou seja: (i) por um lado, o elemento intelectual ou cognoscitivo (enquanto representação ou previsão pelo agente do facto ilícito e consciência da sua censurabilidade) - a alegação de que os factos foram praticados de forma consciente significa, em suma, que o agente sabe o que está a fazer, tem conhecimento dos elementos integrantes do tipo e sabe que a sua conduta é censurável; (ii) por outro lado, se agiu de forma voluntária (e deliberada) – como se alegou - agiu com uma vontade determinada, direccionada ao fim (ilícito) que previu e quis.
V – Saber se efectivamente estão indiciados factos suficientes para afirmar que o arguido praticou tais crimes ou se os factos indiciados integram os crimes que lhe são imputados é coisa diferente, que nada tem a ver com as razões que determinaram a rejeição do requerimento de abertura de instrução.


Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (JIC) correu termos o Proc. Inquérito n.º 704/09.2GDSTB-A, no qual, na sequência da instrução requerida pelos assistentes (…) e (…) foi decidido:
- rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução, “na parte respeitante aos factos descritos a fol.ªs 413-415 e 416, último parágrafo a fol.ªs 417…”;
- declarar aberta a instrução relativamente aos factos descritos nos primeiros cinco parágrafos de fol.ªs 416.

2. Recorreram os assistentes de tal despacho – na parte em que rejeitou o requerimento de abertura da instrução - concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 107 a 186 destes autos):
01) Entende-se que no requerimento de abertura de instrução apresentado foram invocados factos nos quais se verifica o elemento subjectivo de cada crime imputado ao arguido, nomeadamente no tocante aos factos descritos a fol.ªs 413-415 e 416, último parágrafo a fol.ª 417.
02) Resulta da leitura integral do requerimento de abertura de instrução que se mostram verificados todos os requisitos formais e processuais impostos, tanto pelo art.º 287 n.º 2, como pelo art.º 283 n.º 3 al.ªs b) e c), ambos do CPP.
03) De facto, não impõe a lei que – na avaliação da presença ou ausência dos elementos factuais necessários à verificação de um tipo de ilícito – se cinja o juiz àquilo que foi expressamente designado como acusação, antes atente na formulação integral do requerimento e em toda a factualidade que nele expressamente se invoque.
04) O agente comete o crime de violência doméstica se praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima
05) O bem jurídico tutelado com a incriminação das condutas abrangidas no art.º 152 n.º 2 do CP consubstancia a saúde física, psíquica ou mental, bem como a paz familiar; o bem jurídico, enquanto materialização da conduta directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos.
06) O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos físicos, considerados como aqueles que afectam a integridade física das pessoas aí mencionadas, os maus tratos psíquicos, considerados como aqueles que afectam a auto-estima e a competência funcional do dependente, entre os quais se incluem as humilhações, provocações e molestações, e ainda os tratamentos cruéis, estes considerados como aqueles que sejam desumanos, de forma inadmissível.
07) Não se exige, para o preenchimento deste crime, que os factos revelem uma especial falta de sensibilidade do agente nem qualquer outra expressão de carácter ou elemento da personalidade particularmente censurável; este ilícito pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo.
08) No tocante ao elemento subjectivo do tipo, este crime só pode ser punido enquanto cometido de forma dolosa; e se da descrição fáctica que infra se transcreve já decorre, necessária e inevitavelmente, o carácter doloso da conduta, a verdade é que neste crime em concreto o detalhe da alegação do elemento subjectivo não carece sequer de interpretação, pois que bastaria ter sido lido com atenção o RAI para nele se ter descortinado a presença desse elemento subjectivo, expressa, ritual e tabelarmente alegado, embora sem a secura de uma mera fórmula vazia.
09) Nos art.ºs 228 e 229 do requerimento de abertura de instrução afirma-se: “Sendo o arguido médico, pai, padrasto, e sendo uma pessoa, aparentemente, social e culturalmente bem formada, não podia ignorar que estava a lidar com crianças, completamente indefesas e incapazes de se defenderem e que a sua actuação lhes causaria necessariamente perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando sofrimentos que se traduziriam em alterações comportamentais graves susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento”.
10) “Efeito que se sentiu perversamente, em especial no caso do mais novo dos 5 filhos exclusivamente da requerente, no pequeno (…), que, tratando-se de uma criança particularmente indefesa, se viria a tornar apática, triste, chorosa, revoltada, com dificuldades de relacionamento com as outras crianças e com baixa auto-estima e confiança, que se viu compelida a mudar de residência, a mudar de cidade, a afastar-se dos seus irmãos e a ir viver para Viseu, com o seu pai e com a sua mulher, a mudar de escola e a ser sujeita a acompanhamento especial no ensino e a seguimento psicológico que ainda hoje mantém”.
11) Os comportamentos desumanos praticados sobre o (…) apresentam uma crueldade desmedida que colocaram em causa a sua integridade física e psíquica, bem como o seu normal desenvolvimento pessoal e social, que uma decisão meramente formal pretende deixar impunes e sem reparação.
12) Mas atente-se na gravidade desses comportamentos, por referência ao RAI, de onde é manifesta a presença do elemento subjectivo doloso, da prática pelo arguido do crime de maus tratos a menores:
“Artigo 185.º
O arguido fomentava a competição entre os irmãos, o seu espírito egoísta, enaltecendo uns em detrimento dos outros, comparando-os e recompensando os melhores e desprezando os mais fracos.
Artigo 186.º
Bem revelador deste comportamento é o facto das crianças no Verão de 2008, quando foram passar férias com o seu pai e madrasta, se encontrarem anormalmente agitados e multiplicando-se em acusações mútuas, imputações de culpas recíprocas e de responsabilidades pelos castigos que eram objecto por parte do padrasto”.
“Artigo 191.º
Entre os comportamentos mais graves imputados ao arguido e que hoje são plenamente conhecidos por toda a família encontra-se o hábito que o arguido tinha em maltratar, em humilhar e em diminuir as crianças às horas das refeições.
Artigo 192.º
Refira-se a este propósito o depoimento de (…), que refere claramente que se recorda de o arguido gritar tanto e tão alto com o (…), com as mãos levantadas sobre a criança como se lhe fosse bater e com a cara a milímetros de distância, dizendo-lhe que era um «burro», em frente de toda a gente, enquanto o (…) absolutamente aterrorizado, baixava os olhos, corava, permanecendo ali imóvel e sentado à mesa”.
“Artigo 197.º
Mas mais, relativamente ao pequeno (…), as suas atitude revelaram-se totalmente devastadoras para o seu desenvolvimento e crescimento equilibrado daquela criança, que se tornou um adolescente atemorizado, receoso e inseguro de si próprio, com falta de auto-estima e confiança, com graves problemas de concentração, que se repercutiram na sua capacidade de aprendizagem e sucesso escolar”.
“Artigo 199.º
Reitera-se que o menor numa ocasião foi buscar as suas notas de final de período juntamente com o padrasto, aqui arguido, e que o mesmo, na sequência de tais notas não serem boas, passeou-se com o menor pela cidade de Setúbal, comunicando às pessoas por quem passava que levava ali um «burro».
Artigo 200.º
Mas mais, numa outra ocasião obrigou o (…) a captar a imagem do pequeno (…) na casa de banho, sentado na sanita a chorar, filmagem com a qual humilhava, ameaçava e chacoteava a criança, como forma de o diminuir na sua pessoa e na sua personalidade”.
“Artigo 204.º
Noutra ocasião, em que o menor ia participar numa visita de estudo organizada pela escola que frequentava, em Setúbal, foi o arguido quem o levou ao autocarro.
Artigo 205.º
Ali chegados já lá estavam as professoras e todos os seus colegas.
Artigo 206.º
Ora, o arguido dirigiu-se à professora do menor e perguntou-lhe se a viagem era obrigatória, ao que a professora respondeu que, não sendo obrigatória, era uma viagem de todo conveniente e que era importante o (…) participar na mesma.
Artigo 207.º
Como resposta o arguido respondeu à professora em tom perfeitamente audível perante os presentes, que não pagava nada, que o (…) não estudava nada e que era um burro – o que muito envergonhou o menor.
Artigo 208.º
Aliás, no que se refere a pagamentos, especialmente ao (…), durante o período em que a mãe esteve de baixa médica o arguido era quem entregava diariamente dinheiro aos menores para o almoço, deixando muitas vezes de fora o (…), que passou alguns dias que nem sequer almoçava”.
“Artigo 210.º
Um outro bom exemplo diz respeito a umas análises ao sangue que o pequeno se viu constrangido a fazer por força de uma crise de epilepsia que teve e que o arguido entendeu estar relacionada com a obesidade que entendia padecer o menor.
Artigo 211.º
Tais análises corresponderam à primeira vez em que o (…) era sujeito a colheita de sangue, encontrando-se, por isso, extremamente ansioso.
Artigo 212.º
Nessa ocasião foi acompanhado pela mãe e pelo padrasto, ora arguido.
Artigo 213.º
Quando já estavam perto da clínica o arguido começou, infundadamente, a discutir com o pequeno em alta voz, gesticulando com os braços, por, aparentemente, a criança não ter feito a sua cama, captando a atenção de todos os que estavam na rua, o que envergonhou e enervou o menor, que se preparava para tirar sangue, a quem agarrou por um braço e arrastou para dentro da sua clínica.
Artigo 214.º
Do mesmo modo, era frequente às horas das refeições alertar a família para a debilidade do (…), para o facto de estar muito «gordo», de «não ter aproveitamento escolar» e de poder vir a tornar-se um peso na vida de cada um dos irmãos, na medida em que - referia o padrasto - «nunca será ninguém na vida» ”
“Artigo 218.º
Este, quando percebeu que tinha sido o (…) a contar o que ouvira, virou-se à criança, aos gritos, insultando-o de que ele era um anormal, um burro, um imbecil, aproximando-se dele, gesticulando com violência na sua direcção, dando a ideia de lhe querer bater
Artigo 219.º
A criança ficou totalmente apática e ao cabo de alguns minutos correu para a casa de banho e chorou convulsivamente durante horas, só acalmando pelo colo e consolo da mãe.
Artigo 220.º
Do mesmo modo, era frequente o arguido fazer desaparecer os objectos pessoais das crianças, atirando-os para um terreno existente na imediação da habitação, onde havia urtigas, por pura maldade e crueldade”
13) O arguido não podia deixar de saber que com os comportamentos supra descritos violentava, como violentou, o menor (…), tamanha a crueldade e malvadez dos mesmos, inflingindo-lhe um tratamento atroz, tanto mais que sabia ser pessoa com alguns problemas de saúde, nomeadamente, sofrer de epilepsia.
14) Estes comportamentos, levados a cabo pelo arguido, demonstram claramente a verificação do elemento subjectivo, traduzido no dolo directo, pois não se vislumbra qualquer outro objectivo relativamente ao qual a agressão funcionasse apenas como meio para tingir outros objectivos que não fossem o infligir sofrimento.
15) A que acresce a alegação expressa a que supra já se fez referência (ponto 09 e 10).
16) Não podem, por isso, os recorrentes conformar-se com o entendimento plasmado no douto despacho recorrido, de que não foram invocados factos que permitam aquilatar da verificação do elemento subjectivo.
17) Ao não considerar a presença do elemento subjectivo doloso em toda a actuação do arguido, que consubstanciam, objectivamente, um crime de maus tratos a menores, violou o Mm.º Juiz de Instrução o disposto no art.º 152 n.º 2 do CP.
18) Desta forma, o douto despacho recorrido violou, neste particular, entre outros, o disposto nos art.ºs 152 n.ºs 1 al.ª a) e 2 do CP, bem como o disposto nos art.ºs 187 n.º 2, 283 n.º 3 al.ªs b) e c) e 308, todos do CPP.
19) Comete o crime de violência doméstica “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privação da liberdade e ofensas sexuais:
b) Ao cônjuge ou ex-cônjuge”.
20) A ratio normativa deste preceito legal dirige-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sendo o bem jurídico protegido a saúde, enquanto bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade.
21) O tipo assim definido tanto consome uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar
22) Os maus tratos podem ser de natureza física, traduzindo-se em actos de ofensa à integridade física simples, ou psíquicos, consistindo este em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, tais como, crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúria, simples ou qualificadas.
23) Em qualquer caso, é sempre necessário o dolo, ou seja, o conhecimento da relação de protecção-subordinação e da menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo, o que, indubitavelmente, se verifica no presente caso.
24) Concretizando, resulta do art.º 34 do requerimento de abertura de instrução o seguinte:
“Antes, porém, não se coibiu de lançar uma autêntica guerra verbal, por meio de 14 mensagens escritas que naquela data e por volta daquela hora remeteu à aqui assistente e que se encontram já juntas aos autos, declarando, entre outros impropérios, que: “Não te envergonhas de viverem numa casa paga por outro? Chulice, predação. PARASITISMO” – expressão que utilizou repetidamente…”.
25) A expressão não se coibiu não pode ter outro significado que não seja quis lançar uma guerra verbal.
26) Mas os factos, na sua relevância objectiva e no conhecimento e vontade de amedrontar, amesquinhar, humilhar, ferir, maltratar, prosseguem:
“Artigo 37.º
Ali chegada, a assistente pegou no bebé ao colo para o trazer ao carro e ir-se embora, mas o arguido começou aos gritos com a requerente, acusando-a de querer fazer negócios com a pensão de alimentos do filho de ambos, que «era uma profissional disto», que «era uma burra».
Artigo 38.º
Acto contínuo, o arguido agarrou violentamente a requerente pelos braços, apertando-a e abanando-a, ao mesmo tempo que tentava arrancar-lhe a criança do colo.
Artigo 39.º
Tal comportamento causou hematomas nos braços da requerente, medicamente documentados e relatados em declaração médica junta aos autos, exarada logo no dia seguinte às ocorrências, 18 de Junho de 2009”.
“Artigo 69.º
Efectivamente, desde cedo que a assistente se apercebeu de que a sua vida na companhia do arguido não se pautaria pela harmonia, compreensão e respeito a que sempre esteve habituada, percebendo-se no seu companheiro traços e comportamentos manipuladores, egoístas, sobrevalorizadores da sua pessoa, personalidade e profissão, diminuindo a denunciante, sua família e os filhos.
Artigo 70.º
Sendo que, toda a relação foi pautada por variados episódios de violência psicológica do arguido, não apenas para com a assistente, que se traduziam em gritos despropositados, chamando a requerente de burra, de doente, depressiva, dirigindo-lhe expressões ordinárias e desvalorizando-a e retirando-lhe a auto-estima, mas também para com os seus filhos, apelidando-os de serem burros e de não estudarem nada.
Artigo 71.º
O arguido escolhia preferencialmente as horas das refeições, em que a família estivesse toda à mesa, para dar azo à sua crueldade, humilhando a família e repreendendo de forma totalmente infundada a assistente ou os seus filhos por qualquer facto que considerasse merecedor de censura”.
27) Factos que geraram consequências e que foram extensa e largamente imputados à vontade do arguido as provocar.
“Artigo 89.º
Mais refere, à semelhança do já declarado pela irmã (…) que a sua mãe sofreu uma depressão nervosa no ano de 2007, motivada pelos comportamentos do arguido sobre os quais não detinha qualquer capacidade de reacção e de oposição.
Artigo 90.º
Encontrando-se neste período muito debilitada emocional e fisicamente, tendo chegado a pesar 43 kg, período que só viria a ultrapassar mais tarde com recurso a ajuda médica.
Artigo 91.º
Efectivamente a assistente, durante a gravidez, e no período que se seguiu, encontrava-se cada vez mais isolada, mais deprimida e triste, na medida em que quase já não saía de casa, em que não tina meios financeiros para poder ajudar os seus filhos nem para poder equilibrar e colmatar as necessidades da casa.
Artigo 92.º
Por outro lado, o arguido não lhe prestava a atenção devida, votando-a ao isolamento, não querendo saber do seu estado, físico e emocional, gozando consigo, com as suas limitações e o estado a que chegara.
Artigo 93.º
Eram frequentes as guerras psicológicas a que o arguido sujeitava a requerente, as expressões diminuidoras da sua personalidade e o desprezo gritado alto e em viva voz por si e pelos seus filhos, que dizia nada valerem”.
28) Mais uma vez, afigura-se aos recorrentes clara a alegação do elemento subjectivo, embora sem recurso a uma fórmula compreensiva e ritual, a acção do arguido de sujeição da assistente a uma guerra psicológica e idêntico comportamento dirigido à diminuição da respectiva personalidade e dos filhos consubstancia um comportamento deliberado e querido de violação dos mais elementares direitos de personalidade da sua então mulher e mãe do seu filho.
29) Do mesmo modo, os factos descritos nos art.ºs 117 e 118 do requerimento de abertura de instrução demonstram a intencionalidade do arguido em praticar actos que consubstanciam em si ilícitos criminais. Vejamos:
“Essa dependência económica da requerente era frequentemente utilizada pelo arguido como forma de chantagear e manipular a requerente, brincando com essa situação e superiorizando-se uma vez mais em relação à requerente, que desta feita estava totalmente dependente do arguido.
Por outro lado, no convívio social o arguido demonstrava sem pudor um profundo desprezo pela requerente, chamando-a de burra à frente de toda a gente, humilhando-a, falando-lhe alto e agressivamente, manipulando as conversas com os amigos, por forma a remeter a requerente a um papel de mera espectadora”.
30) Os factos supra enunciados são reveladores da presença, em todas as actuações e comportamentos levados a cabo pelo arguido, do elemento subjectivo doloso, traduzido no propósito último de afectar a dignidade humana da assistente, humilhando-a, rebaixando-a e, por conseguinte, do seu bem estar físico e psíquico.
31) O que aparece ainda impressivamente estabelecido no seguinte excerto do RAI: “Efectivamente, a estratégia daí em diante adoptada pelo arguido foi a de perseguir e intimidar a requerente e os seus filhos, deslocando-se à casa em que tinha sido sua e batendo violentamente nas portas e janelas a fim de os atemorizar, situação que, de resto, foi muitas vezes testemunhada pelos filhos da requerente”.
32) É, a nosso ver, indubitável que seguir uma estratégia é um acto deliberado, querido, desejado, com dolo directo.
33) Nestes termos, o despacho recorrido violou, entre outros, o art.º 152 n.º 1 al.ª c) do CP, devendo o arguido ser pronunciado pela prática do crime de violência doméstica e maus tratos a cônjuge.
34) Comete o crime de violação de domicílio “quem, sem o consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se”.
35) O bem jurídico aqui protegido é a privacidade/intimidade, que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação.
36) A factualidade típica deste tipo de ilícito esgota-se na entrada ou permanência arbitrárias.
37) O que resulta claramente do requerimento de abertura de instrução. Vejamos:
“Artigo 127.º
E não é admissível, na medida em que todas as pessoas inquiridas e que, quer de forma presencial – como os filhos Gonçalo Simões de Almeida e Sofia Lara Simões de Almeida – assistiram a tal episódio, quer de forma não presencial – que nele tiveram uma participação, foram uníssonos na afirmação de que o arguido naquele final do dia entrou à força na casa que havia sido morada de família, que ali permaneceu contra a vontade da assistente e que se recusava a sair, ainda que directamente instado a fazê-lo.
Artigo 128.º
O que levou a que a própria assistente, por intermédio de seu filho, tivesse chamado a GNR ao local e tivesse tomado providências junto do corpo de segurança do condomínio onde se situa a habitação, com o intuito de proibir as futuras entradas do arguido naquele espaço”.
“Artigo 131.º
Das declarações prestadas pela assistente acerca deste episódio em concreto, quer em sede de auto de notícia lavrado a 17 de Junho de 2009, quer as prestadas no dia seguinte, 18 de Junho de 2009, constantes dos autos a fol.ªs 56 a 58, bem como as declarações prestadas, desta feita, na presença da digna magistrada do Ministério Público competente, a 21 de Outubro de 2009, pelas 10 horas, constantes dos autos a fol.ªs 20 e 21, resulta que:
«… De regresso a casa, e tendo alertado os seus filhos, (…), do que se havia passado e da iminência do padrasto ali regressar, começou a ouvir, por volta das 21h30m, batidas violentas nas portas e janelas da casa por parte do arguido, que insistia em entrar. Como a requerente não permitiu a sua entrada, o mesmo forçou a janela do quarto que havia sido de ambos, tendo entrado sem autorização da mesma, repetindo os mesmos gritos e insultos, ao que a requerente respondia para que ele se fosse embora e a deixasse em paz. Por fim, após longa troca de acusações, o arguido abandonou a casa de morada de família»”.
“Artigo 134.º
Tendo a mesma testemunha sido ainda inquirida a 20 de Junho de 2010, exarada em auto constante do processo a fol.ªs 281 e seguintes, foi pelo mesmo dito em esclarecimento que:
«Após a separação ocorreu um episódio ocorrido no mês de Junho de 2009, não se lembra em que dia. Pelo final da tarde a sua mãe entrou em casa com o (…) ao colo e muito exaltada. Pediu-lhe a si e à sua irmã (…) que subissem para o quarto do depoente… porque o arguido se dirigia para a casa contra a vontade dela.
O depoente foi de imediato para o exterior para fechar os portões e quando se preparava para fechar o segundo portão chamaram-no para entrar em casa porque o arguido estava a chegar. Levou o irmão (…) para o seu quarto e telefonou para a GNR conforme a mãe lhe tinha pedido. Nessa altura a mãe encontrava-se na sala de estar e deu conta do arguido ter entrado na residência porque passou a ouvir os seus gritos, bem como os da sua mãe, vindos da sala de estar. Recorda-se que a mãe dizia: «Larga-me! Sai da minha casa». … Tem a certeza de que o arguido entrou em sua casa e que se encontrava na sala de estar…Também tem a certeza de que o arguido entrou na habitação contra a vontade de sua mãe porque a viu trancar todas as portas por forma a impedir a entrada do arguido. … Depois de ouvir os gritos a sua irmã (…) dirigiu-se à sala de estar enquanto o depoente se refugiou com o irmão (…) na casa de banho do quarto. Voltou a ligar à GNR pedindo-lhe que se dirigissem ao local com urgência, pois tratava-se de uma situação de violência doméstica. Esclarece que se refugiou na casa de banho com o irmão (…) porque tinha medo que o arguido conseguisse entrar no seu quarto e levar consigo o irmão contra a vontade da sua mãe. …Soube pela irmã e pela mãe que o mesmo só se convenceu a sair quando lhe disseram que vinha ali a GNR»”
“Artigo 136.º
Confira-se que a testemunha refere ter tentado fechar os portões que dão acesso à residência, ter visto a sua mãe trancar todas as portas, que ligou para a GNR alertando para a visita indesejada, que se manteve junto do irmão (…), pois receava que o mesmo fosse levado pelo padrasto, que ouviu os gritos do arguido vindos da sala de estar, que ouviu a mãe a ordenar ao arguido que saísse da sua casa, que a largasse, que não tem dúvidas quanto à presença do mesmo no interior da habitação nem do facto de tal presença contrariar a vontade de sua mãe.
Artigo 137.º
A mesma testemunha refere ainda que voltou a contactar a GNR dando nota da urgência da intervenção e que o arguido só abandonou a casa por temer a intervenção da polícia”
“Artigo 140.º
Ora, tal circunstância é absolutamente indiferente ao facto inabalável e totalmente demonstrado de ter o arguido entrado contra a vontade da assistente na residência e de ali ter permanecido a despeito de ter sido mandado sair”.
“Artigo 144.º
Efectivamente, às 19h49m o arguido remete uma mensagem de telemóvel à assistente pela qual informa que «daqui a pouco vou aí ver o (…). Nem sequer quero falar contigo, os advogados que se entendam»
Artigo 145.º
Às 21h06m recebe a assistente nova mensagem, desta feita com o seguinte conteúdo: «5 min. Estou aí»
Artigo 146.º
Às 21h33m remete novo SMS, já depois de se ter introduzido na casa e de dali ser obrigado a sair dizendo que «obrigado. De qualquer modo amanhã vou buscar o Tomás e entrego-to sem qq problema. Não quero MESMO mais guerras»
Artigo 147.º
E às 21h37m pede desculpa à assistente dizendo-lhe, e passa-se a citar: «Desculpa. Só queria dar-te um beijo. Fica para amanhã».
Artigo 148.º
Donde decorre sem sombra de dúvidas que é o próprio arguido que anuncia a sua deslocação à casa que fora de morada de família naquela noite, quem ali se faz entrar e que, de saída, pede desculpa pelas confusões, pelo que deveria a douta decisão ter concluído pela sua presença ali e pela sua intromissão no domicílio da assistente sem o seu consentimento.
Artigo 149.º
Tivesse tal presença sido consentida e o pedido de desculpas do arguido ficaria desprovido de razão.
Artigo 150.º
Acresce que o douto despacho não ponderou um elemento de prova essencial para os factos relatados e que se traduz no auto de denúncia levantado naquele mesmo dia, pelas 23h30m, pela GNR de Palmela, que se deslocou à residência da assistente para acudir a uma situação de violência doméstica que, tal como acima se disse, foi provocada pelo contacto telefónico do filho da requerente (…).
Artigo 151.º
Da mesma resulta que «no dia 17 de Junho de 2009… cerca das 21h30m… o seu marido tentou entrar na residência, mas como a queixosa não lhe abriu a porta, este forçou a janela do quarto…».
Artigo 152.º
Mais se refere que se verificou a entrada do domicílio do denunciado”
“Artigo 164.º
Concomitantemente, e enquanto o filho (…) permanece no 1.º andar, refugiando-se com o irmão (…) e tentando a mobilização urgente da GNR, a assistente tentava demover o arguido da sua presença, gritando-lhe para que saísse da sua casa, para que a largasse, e a irmã (…) desce à sala de estar e, mantendo o contacto com o depoente, passa o telefone ao arguido”
“Artigo 169.º
“Donde é por demais evidente que no dia 17 de Junho de 2009 o arguido forçou a sua entrada na residência da assistente, o que conseguiu, ali permanecendo, aos gritos com a mesma, ainda que instado a dali sair pela própria requerente, pela sua filha, (…), e pelo seu filho (…), que, tal como se disse, falou ao telefone com o arguido, no momento em que o mesmo estava no interior de tal habitação, dizendo-lhe que saísse dali imediatamente”.

38) De todos os factos supra enunciados, e que constam do requerimento de abertura de instrução, verifica-se, notoriamente, a presença do elemento subjectivo.
39) O tipo subjectivo deste tipo de ilícito criminal pressupõe a verificação de dois elementos, a falta de consentimento e a intimação para se retirar.
40) Os factos supra descritos são demonstrativos de que o arguido se introduziu dentro da casa da assistente sabendo que o fazia sem o seu consentimento e que foi expressa e formalmente instado a retirar-se da referida habitação, não só pela assistente, mas também por (…), filho da assistente, a quem os seus irmãos ligaram, perante a verificação do arguido no interior da sua habitação (art.º162 do requerimento de abertura de instrução), o que só veio a fazer por ter sido chamada a GNR.
41) Ao considerar que – no que respeita a este crime em particular – as partes não alegaram factos que permitissem a verificação do elemento subjectivo, o despacho recorrido violou a norma constante do art.º 190 do CP.
42) Desta forma, o douto despacho recorrido violou, entre outros, o disposto nos art.ºs 287 n.º 2, 283 n.º 3 al.ªs b) e c) e 308, todos do CPP.
43) Nestes termos, deve julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, na parte em que considerou que não se detecta a alusão completa ao elemento subjectivo de qualquer crime no tocante aos factos descritos a fol.ªs 413-415 e 416, último parágrafo a 417.

3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
a) O requerimento de abertura de instrução não obedece aos requisitos previstos no art.º 287 n.º 2 do CPP, pois que dele não consta a descrição da factualidade integradora do elemento subjectivo relativamente aos crimes que entende estarem verificados.
b) Não obedecendo tal requerimento a tais requisitos, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida.
4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir – em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP) - tendo em atenção as questões colocadas pelos recorrentes acima enunciadas (nas conclusões da motivação do recurso), quais sejam: se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes contém todos os elementos necessários (e legalmente impostos) para ser admitido.
---
O Ministério Público, findas as diligências de investigação tidas por pertinentes, veio a ordenar o arquivamento dos autos.
Os assistentes (…) vieram então requerer a abertura de instrução, em requerimento que dividiram em quatro partes (fol.ªs 360 a 418 dos autos principais) com os seguintes títulos:
- Da sua constituição como assistentes (onde requerem a sua constituição como assistentes);
- Da abertura da fase de instrução (onde, em suma, manifestam a sua divergência quanto ao arquivamento dos autos e fundamentam o pedido de abertura de instrução);
- Da acusação (onde, em suma, descrevem os factos que imputam ao arguido e que, em seu entender, preenchem os elementos do tipo de crimes pelos quais pretendem que o arguido seja pronunciado e que, a final, concretizam).
- Da prova (onde indicam as provas que consideram relevantes para demonstrar a factualidade alegada).
Sob o título “Da acusação” (que constitui fol.ªs 413 a 417 dos autos principais), descrevem os factos que, em seu entender, integram os crimes que, a final, imputam ao arguido, concretamente:
- um crime de violência doméstica contra cônjuge, p. e p. pelo art.º 152 n.º 1 do CP, e um crime de violência doméstica sobre menor, p. e p. pelo art.º 152 n.º 2 do CP (fol.ªs 413 a 415);
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 n.º 1 do CP (cinco primeiros parágrafos de fol.ªs 416);
- um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190 n.ºs 1 e 2 do CP (último parágrafo de fol.ªs 416 e 417).
No despacho recorrido foi decidido:
- declarar aberta a instrução relativamente à factualidade que consta nos primeiros cinco parágrafos de fol.ªs 416 (onde se descreve a factualidade ocorrido em 17 de Junho de 2009, integradora de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152 n.º 1 do CP);
- rejeitar tal requerimento:
1) no que respeita à factualidade descrita a fol.ªs 413 a 415 (onde se descreve factualidade que os assistentes entendem integrar o crime de violência doméstica contra cônjuge – p. e p. pelo art.º 152 n.º 1 do CP – e um crime de violência doméstica sobre menor, p. e p. pelo art.º 152 n.º 2 do CP);
2) no que respeita ao crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190 n.ºs 1 e 2 do CP (factualidade descrita no último parágrafo de fol.ªs 416 e 417).
E fundamentou-se a recusa, em síntese, na “omissão de imputação de qualquer ilícito ao acusado por falta de menção do elemento subjectivo de um qualquer tipo criminal”.
E, a tal propósito, escreveu-se:
“… o agente tem que ter conhecimento das obrigações que a lei para si impõe, o que se traduz no elemento cognitivo… o agente há-de, dolosamente ou negligentemente, não ter conformado a sua vontade com as obrigações legais, o que se traduz no elemento volitivo…”.
São extensas as conclusões da motivação do recurso, desnecessariamente extensas, diga-se, pois o que está em causa é simples: é saber se o requerimento da abertura da instrução – máxime, a acusação deduzida pelos assistentes no final desse requerimento – contém o elemento subjectivo do tipo de crimes imputados ao arguido.

Vejamos:
O requerimento de abertura de instrução termina com o título “Da acusação” (fol.ªs 413 a 417), no final da qual se escreve (quanto à matéria rejeitada pelo despacho recorrido):
1) Quanto à factualidade descrita de fol.ªs 413 a 415:
Que o arguido, com a conduta descrita, cometeu, “de forma consciente e voluntária” os crimes de violência doméstica contra cônjuge e sobre menor, p. e p. pelo art.º 152 do CP, n.ºs 1 e 2, respectivamente;
2) Quanto à factualidade descrita no último parágrafo de fol.ªs 416 e 417:
Que o arguido cometeu, “de forma deliberada e consciente, um crime de violação de domicílio…”.
É pacífico o entendimento que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais - di-lo expressamente o art.º 287 n.º 2 do CPP – todavia, este “não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, onde constem os factos que se considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 41, e art.ºs 287 n.º 2 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP).
Do mesmo modo Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 9.ª edição, 541: “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.
E o acórdão do TC n.º 358/2004, de 19.05.2004, in DR, 2.ª Série, de 28.06.04, onde se escreve: “A estrutura acusatória do processo penal português... impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução... o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa... o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do artigo 283 do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.
Os elementos mencionados nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP são:
“b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis”.
E entre os “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” encontram-se – no caso concreto - para além dos factos objectivos que preenchem os elementos do tipo, os factos que consubstanciam o seu elemento subjectivo, ou seja, a imputação de tais factos ao agente, seja a título de dolo, seja a título de negligência, pois “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” (art.º 13 do CP), os factos que sustentam a autoria do crime e os factos reveladores de que o arguido actuou com a consciência da ilicitude, sendo certo que o dolo, a capacidade de acção e a consciência da ilicitude são pressupostos da punição, pelo que a sua falta implica a conclusão de que não estão reunidos os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido.
Consequentemente, a alegação dos factos que integram o elemento subjectivo do tipo, elemento essencial da acusação - tão essencial quanto a factualidade objectiva – não pode deixar de constar da acusação/requerimento de abertura de instrução, sob pena do tribunal, admitindo a instrução, não poder pronunciar o arguido (por falta de um elemento essencial para se considerar preenchido o tipo) ou, averiguando tal facto e aditando-o à pronúncia, proceder a uma alteração substancial da acusação, geradora de nulidade de tal despacho, ex vi art.º 309 n.º 1 do CPP (não releva que tal elemento se possa inferir, em sede de prova, com recurso às presunções naturais ou às regras da experiência comum, pois uma coisa é a prova de tal elemento em sede de julgamento – prova que pode deduzir-se em face dos demais factos provados - e outra, bem diferente, é a alegação dos pertinentes factos que o integram, sendo certo que o objecto da prova são os factos descritos na acusação/pronúncia e esta não pode ir além da factualidade alegada no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade - art.º 309 n.º 1 do CPP já acima mencionado).
Como se escreveu no acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.º 7/05, de 12 de Maio de 2005, “sem acusação formal o juiz está impedido de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar a falta de narração dos factos, enraizaria em si... a titularidade do exercício da acção penal”, raciocínio que vale para qualquer dos elementos essenciais que devem constar da acusação, nos termos do art.º 283 n.º 3 do CPP, aplicável ao requerimento de abertura da instrução por força do art.º 287 n.º 2 do mesmo diploma.
No caso em apreço, para além dos factos concretos que os assistentes imputam ao arguido (que no despacho recorrido não foram questionados), alegado está, por um lado, que o arguido “com a conduta descrita” cometeu, “de forma consciente e voluntária, um crime de…” (isto quanto ao crime de violência doméstica contra cônjuge e sobre menor, a que respeitam os factos descritos a fol.ªs 413 a 414), por outro, quanto ao crime de violação de domicílio, que o arguido cometeu tal crime – com a factualidade antes descrita - “de forma deliberada e consciente…”.
Ora, esta alegação integra – quanto a nós sem margem para dúvidas – os elementos essenciais do dolo/enquanto elemento subjectivo do tipo, ou seja:
Por um lado, o elemento intelectual ou cognoscitivo (enquanto representação ou previsão pelo agente do facto ilícito e consciência da sua censurabilidade) - a alegação de que os factos foram praticados de forma consciente significa, em suma, que o agente sabe o que está a fazer, tem conhecimento dos elementos integrantes do tipo e sabe que a sua conduta é censurável;
Por outro lado, se agiu de forma voluntária (e deliberada) – como se alegou - agiu com uma vontade determinada, direccionada ao fim (ilícito) que previu e quis.
Saber se efectivamente estão indiciados factos suficientes para afirmar que o arguido praticou tais crimes ou se os factos indiciados integram os crimes que lhe são imputados é coisa diferente, que nada tem a ver com as razões que determinaram a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Procede, por isso, o recurso, pois que a factualidade alegada – nos termos em que se apresenta o requerimento de abertura de instrução – contém, de forma bastante, os elementos integradores do elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido.
O mesmo é dizer que tal requerimento enumera de forma suficiente os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, ou seja, os factos indispensáveis para viabilizar a realização da instrução, com pleno respeito pelo princípio do contraditório, e elaboração da decisão instrutória.

6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido (na parte em que rejeitou a abertura de instrução), o qual deve ser substituído por outro que admita a abertura da instrução relativamente a tais factos.

Évora, 20 de Setembro de 2011

(Alberto João Borges – Maria Isabel Melo Gomes)

http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5ec7e176e1ed2fe08025791f00430061?OpenDocument

Pesquisar neste blogue