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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - NEGÓCIO JURÍDICO VALIDADE IMPOSSIBILIDADE ORIGINÁRIA SUBJECTIVA DA PRESTAÇÃO - 06/09/2011


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1480/10.1TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
VALIDADE
IMPOSSIBILIDADE ORIGINÁRIA SUBJECTIVA DA PRESTAÇÃO

Data do Acordão: 06-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA - 1ª SECÇÃO
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 401º, Nº 3 DO CC

Sumário: I – A impossibilidade originária subjectiva da prestação é, de acordo com o preceituado pelo artigo 401º, nº 3 do Código Civil, irrelevante, não afectando a validade do negócio jurídico.
II – É manifestamente improcedente a oposição à execução em que a oponente alega factualidade tendente a demonstrar a sua impossibilidade originária subjectiva para cumprir a obrigação que assumiu ao avalizar as livranças apresentadas como títulos executivos.


Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução nº 1480/10.1TJCBR, a correr termos pela 1ª Secção da Vara Mista de Coimbra, em que o exequente, Banco …, S.A., apresentado como títulos executivos quatro livranças, visa a cobrança coerciva da quantia de € 2.863.378,22, foi pela executada, R…, deduzida oposição em que, para além de outros fundamentos que para este recurso não relevam, alegou que “… existe por parte da Executada impossibilidade originária e subjectiva para o cumprimento da obrigação que aqui lhe é exigida, nos termos do disposto nos artigos 401º e 791º do Código Civil”[1].

Pelo despacho constante de fls. 28 a 32 dos autos foi a oposição considerada manifestamente improcedente e, por isso, liminarmente indeferida[2].

No que concerne ao fundamento atrás indicado, escreveu-se no mencionado despacho: “O segundo fundamento que invoca - impossibilidade originária e subjectiva para o cumprimento da obrigação que aqui lhe é exigida – não encontra apoio na factualidade que alegou. O facto de não dispor de meios de subsistência não constitui fundamento para oposição à execução, podendo apenas ser valorado em sede executiva no contexto do disposto pelo artº 824º do CPC.”

A oponente recorreu, restringindo o objecto do recurso à parte do despacho que julgou manifestamente improcedente o fundamento mencionado[3].

Na alegação apresentada formulou as conclusões seguintes:



Foi proferido despacho de admissão do recurso[4].

Não consta dos autos qualquer resposta do recorrido.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[5], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:
a) Violação do princípio do contraditório;

b) Excesso de pronúncia;

c) Deficiência da fundamentação;

d) Desconsideração do disposto nos artºs 401º e 791º do Código Civil.



***

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto

A factualidade e incidências processuais relevantes para a decisão do recurso são as que decorrem do antecedente relatório, aqui dado como reproduzido, e ainda o seguinte:

a) No que concerne ao fundamento de cujo indeferimento liminar a oponente recorre, a factualidade alegada no articulado inicial da oposição com relevância para a apreciação do mesmo é a seguinte[6]:

- Nunca (a recorrente) teve qualquer intervenção directa ou indirecta na vida da empresa - art.º 4º da oposição;

- É certo que assinou as livranças, mas assinou apenas porque lhe transmitiram que o teria que fazer atendendo à sua condição de casada - art.º 5º da oposição;

- A dívida nunca foi contraída em proveito comum do casal - art.º 6º da oposição;

- A própria executada nunca retirou qualquer proveito económico da dívida - art.º 7º da oposição;

- É pessoa sem qualquer formação académica e com pouca instrução literária (apenas a 4ª classe) - art.º 8º da oposição;

- Se soubesse as implicações e responsabilidade não teria assinado as livranças - art.º 9º da oposição;

- De todo o modo, a Exequente sempre soube com quem estava a contratar – art.º 10º da oposição;

- A executada é doméstica - art.º 11º da oposição;

- A executada é inválida e aufere uma pequena pensão de invalidez - artigos 12º e 13º da oposição;

- Tem a seu cargo um filho menor de idade - art.º 14º da oposição.



***

2.2. De direito
Como foi oportunamente referido, a oponente esgrimiu no articulado inicial da oposição, entre outros que aqui não relevam, o argumento de que existe da sua parte impossibilidade originária e subjectiva para o cumprimento da obrigação que lhe é exigida, nos termos do disposto nos artigos 401º e 791º do Código Civil.

Sob a epígrafe «Impossibilidade originária da prestação», o artigo 401º do Código Civil preceitua:

1. A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico.

2. O negócio é, porém, válido, se a obrigação for assumida para o caso de a prestação se tornar possível, ou se, estando o negócio dependente de condição suspensiva ou de termo inicial, a prestação se tornar possível até à verificação da condição ou até ao vencimento do termo.

3. Só se considera impossível a prestação que o seja relativamente ao objecto, e não apenas à pessoa do devedor.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[7], no nº 3 do artigo 401º esclarece-se o significado da impossibilidade em matéria de obrigações. E exemplificam: “É impossível a obrigação de entregar um objecto que foi anteriormente consumido por um incêndio; mas não é impossível a obrigação assumida por um cego de vigiar uma casa, nem a obrigação assumida por uma fábrica quanto a um fornecimento que exceda a sua capacidade de laboração. Nestes últimos casos, não há impossibilidade em relação ao objecto (impossibilidade objectiva), mas em relação à pessoa que se obriga (impossibilidade subjectiva).

Ou seja, em matéria de impossibilidade originária da prestação, a impossibilidade subjectiva é irrelevante. Só a objectiva – e nem sempre, como resulta das excepções consagradas no nº 2 do artigo 401º – produz a nulidade do negócio jurídico.

A recorrente invocou impossibilidade originária subjectiva e alegou factualidade tendente a provar tal impossibilidade. Viesse ou não essa factualidade a provar-se a consequência jurídica a extrair seria sempre a mesma: a impossibilidade originária subjectiva não tem quaisquer efeitos sobre a validade do negócio[8] e [9].


Mas a oponente aludiu também ao artigo 791º do Código Civil que, com a epígrafe «Impossibilidade subjectiva», estabelece que “A impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa igualmente a extinção da obrigação se o devedor, no cumprimento desta, não puder fazer-se substituir por terceiro”.

Trata-se de norma relativa ao cumprimento das obrigações, daí decorrendo que a impossibilidade referida é a impossibilidade superveniente e não a impossibilidade originária.

Recorremos de novo ao ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela[10], Mestres que, em anotação ao artº 791º, afirmam: “A impossibilidade subjectiva do cumprimento da obrigação, isto é, a relativa à pessoa do devedor, precisa também de ser superveniente, tal como a impossibilidade objectiva prevista no artigo anterior[11], para que fique sob a alçada desta disposição.” E no parágrafo seguinte esclarecem: “Outro é o regime da impossibilidade originária. Nos termos do nº 3 do artigo 401º, a simples impossibilidade subjectiva não torna a obrigação nula. Sendo, pois, a obrigação válida, e não sendo ela fungível, sujeita-se o devedor às consequências do não cumprimento culposo.”

No caso que nos ocupa, a oponente, apesar da alusão ao artigo 791º do Cód. Civil, teve em mente, na oposição à execução, não qualquer impossibilidade subsequente, mas tão só uma invocada impossibilidade originária. Tal resulta directamente da alegação feita no artigo 15º do articulado inicial da oposição e indirectamente da restante factualidade ali exposta. De resto, tal factualidade, ainda que, prosseguindo os autos a sua tramitação, viesse a provar-se, não seria nunca susceptível de integrar impossibilidade superveniente subjectiva, tal como a desenha o mencionado artigo 791º do Cód. Civil[12].

E, com todo o respeito por diferente opinião, não se vê como poderia a oponente, que ao avalizar as livranças assumiu perante o respectivo portador a obrigação de as pagar no seu vencimento (artºs 77º, 78º, 32º e 28º da LULL), encontrar fundamento válido para, com base em pretensa impossibilidade, se esquivar ao cumprimento. É que estamos perante uma obrigação de resultado – pagamento da importância titulada pelas livranças – e a falta de disponibilidade de tal importância não integra, manifestamente, impossibilidade seja da prestação, seja do respectivo cumprimento.


Do que fica dito resulta já com clareza que soçobram todas as conclusões da alegação da recorrente.

Com efeito, o indeferimento liminar baseado na manifesta improcedência da oposição, designadamente no que respeita ao fundamento que vem sendo analisado, está previsto no artº 817º, nº 1, al. c) e o proferimento do respectivo despacho não necessita de ser precedido de qualquer audição prévia do oponente, que manifestou a sua posição no articulado inicial, não podendo, pois, ser considerado decisão-surpresa; nem integra qualquer impedimento ilícito de o oponente “produzir prova sobre a factualidade que invocou para se defender”, já que, como é lógico, sendo a oposição manifestamente improcedente, a produção de prova sobre a factualidade alegada redundaria em pura inutilidade, proibida pelo artº 137º.

Não foi, portanto, violado o princípio do contraditório, consagrado no artº 3º, nº 3.

É também claro que, contra o defendido pela recorrente, o tribunal estava na posse de elementos suficientes, constantes do articulado inicial da oposição, para fazer um juízo ponderado e fundamentado sobre a manifesta improcedência da oposição, porquanto, como se deixou demonstrado, caso os autos prosseguissem a sua tramitação, viesse ou não a provar-se a factualidade alegada, sempre a oposição teria de improceder.

E não há dúvida que ao proferir o despacho que indeferiu liminarmente a oposição por manifesta improcedência a 1ª instância não conheceu de questão de que não pudesse tomar conhecimento, isto é, não incorreu em excesso de pronúncia [artº 668º, nº 1, al. d)]. Efectivamente, o juiz deve, de acordo com o artº 660º, nº 2, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. E não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

O artº 817º, nº 1, al. c) impõe ao juiz que indefira liminarmente a oposição que seja manifestamente improcedente. Ao proferir o pertinente despacho liminar de indeferimento o juiz não está, obviamente, a conhecer de questão subtraída ao seu conhecimento.

É certo que, de acordo com o artº 205º, nº 1 da Constituição e 158º do Cód. Proc. Civil, o despacho de indeferimento, nomeadamente no que concerne ao fundamento que a recorrente entende que não deveria ter sido considerado manifestamente improcedente, necessita de ser devidamente fundamentado.

E, a nosso ver, ainda que de forma sucinta[13], foi-o.

No que a esse fundamento tange, o julgador começou por afirmar que o mesmo – impossibilidade originária e subjectiva para o cumprimento da obrigação que à oponente é exigida na execução – não encontra apoio na factualidade alegada. O que, como acima se deixou demonstrado, constitui afirmação correcta e justificada.

Acrescentou ainda o julgador que o facto de a oponente não dispor de meios de subsistência – factualidade por ela alegada – não constitui fundamento para a oposição à execução, podendo apenas ser valorado em sede executiva no contexto do disposto pelo artº 824º do CPC, ou seja, aquando da realização da eventual penhora. Também esta afirmação nos parece não merecer qualquer censura.

Reconhecendo que à recorrente era lícito opor à exequente qualquer causa extintiva da obrigação, conforme estabelece o artº 814º, nº 1, al. g) e, sobretudo, o artº 816º, entende-se, contudo, como acima se deixou dito, que a factualidade alegada, ainda que viesse a ser provada, não conduziria á conclusão de que a obrigação se extinguira.

Repetindo-nos, temos como certo que soçobram todas as conclusões da alegação da recorrente, o que importa a improcedência da apelação e a manutenção da decisão sob recurso.


Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7, elabora-se o seguinte sumário:

I – A impossibilidade originária subjectiva da prestação é, de acordo com o preceituado pelo artigo 401º, nº 3 do Código Civil, irrelevante, não afectando a validade do negócio jurídico.

II – É manifestamente improcedente a oposição à execução em que a oponente alega factualidade tendente a demonstrar a sua impossibilidade originária subjectiva para cumprir a obrigação que assumiu ao avalizar as livranças apresentadas como títulos executivos.



***

3. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

As custas são a cargo da recorrente.


Relator: Artur Dias;
Desembargadores Adjuntos: Jaime Ferreira e Jorge Arcanjo


[1] Cfr. artigo 15º do articulado inicial da oposição.
[2] Na parte final do despacho alude-se ao artigo 817º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Civil mas, se bem vemos, houve lapso em tal alusão, pretendendo-se antes invocar o artigo 817º, nº 1, al. c) do Código referido.
[3] Cfr. artº 684º, nºs 2 e 3 do Cód. Proc. Civil.
[4] Em que foi ordenada a notificação do requerido para os termos da causa e do recurso.
[5] Na versão aplicável, que é, no tocante à matéria de recursos, a conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08 e, no que respeita à matéria de processo executivo, a decorrente do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20/11. São desse diploma as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[6] É a própria recorrente que na parte expositiva da sua alegação a indica.
[7] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 349.
[8] Nem, consequentemente, integra fundamento pertinente de oposição à execução (artºs 814º a 816º).
[9] Deixar prosseguir os autos para ser feita prova da factualidade alegada seria, nestas circunstâncias, permitir a prática de actos inúteis, o que, como resulta do artº 137º, não é lícito.
[10] Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, pág. 39.
[11] Em anotação ao artigo 790º, relativo à impossibilidade objectiva, ensinam os referidos Mestres: “Regula-se neste artigo e nos subsequentes o caso de a obrigação se tornar impossível, caso muito diferente de a obrigação ser já impossível no momento em que se constituiu. A impossibilidade originária tem como consequência a nulidade do negócio jurídico (arts. 280º d 401º), (…)”.
[12] Cfr. anterior nota 10.
[13] O Prof. Antunes Varela ensina, em Manual de Processo civil, 2ª edição, pág. 687, que “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, (…)”.


http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/9fe06b104229a5b38025791000542d13?OpenDocument

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - CRÉDITO AO CONSUMO ENTREGA DE CÓPIA DO CONTRATO ABUSO DE DIREITO - 08/09/2011


Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1277/09.1TBBJA
Relator: JOÃO GONÇALVES MARQUES
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
ENTREGA DE CÓPIA DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO

Data do Acordão: 08-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: BEJA-2º JUÍZO
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO

Sumário:
1 - A obrigação de entrega ao consumidor de um exemplar do contrato estabelecida no artº 6º, nº 1 do DL 351/91 está claramente relacionada com o que, depois, dispõe o artº 8 nº 1, nos termos do qual, com excepção dos casos previstos no nº 5, a declaração negocial do consumidor relativa à celebração do contrato só se torna eficaz se este o não revogar em declaração enviada ao credor por carta registada com aviso de recepção a expedir no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do contrato ou em declaração notificada ao credor, por qualquer meio, no mesmo prazo, porquanto, só dispondo de uma cópia do texto, o consumidor estará em condições de ponderar e reflectir sobre a natureza e consequências das obrigações assumidas.
2 - A alegação no sentido de que posteriormente à aposição nos dois exemplares do contrato de mútuo dos autos da assinatura de um seu representante, o A. (credor) enviou ao R. (consumidor) um exemplar do referido contrato redunda, afinal, na confissão de que não procedeu à sua entrega no momento da assinatura por parte dos RR., sendo este o momento em que a cópia deve ser entregue, já que é a partir daí que se inicia o prazo de reflexão e eventual revogação pelo consumidor.
3 - Na ponderação do abuso de direito por parte do consumidor que invoca vícios do contrato, após o início da execução, “deve o Tribunal actuar com particular prudência já que, na relação de financiamento à aquisição de bens de consumo, é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos serviços e do consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a entidade financiadora da aquisição, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, não infringiu, ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma os princípios da boa fé”, caso em que não deve ser paralisado o direito do consumidor a invocar a nulidade.


Decisão Texto Integral:
Acordam no tribunal da Relação de Évora:
BANCO… SA, propôs acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra M… e mulher C…, todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe a quantia de € 9.924,56, acrescida de € 1.787,66 de juros vencidos até 27 de Novembro de 2009, de € 71,51 de imposto de selo sobre os juros vencidos, dos juros que sobre a aludida quantia de 9.924,56 se vencerem, à taxa anual de 27,394, desde 28 de Novembro de 2009 até integral pagamento e do imposto de selo que à taxa de 4% sobre estes juros recair.
Alega, resumidamente, que por contrato constante de título particular, de 17 de Julho de 2007, emprestou ao R. marido a quantia de € 8.125,00 para aquisição de automóvel de marca BMW, matrícula 09-67-FQ, a pagar em 60 prestações mensais, no valor de € 238,68, cada uma, tendo acordado regime diferente do definido no artº 781º do C. Civil, porquanto expressamente foi acordado que “A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes” e que “No valor das prestações estão incluídos o capital e os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a cláusula 13º das Condições Gerais”, sendo certo que o Réu marido não pagou a 17ª prestação e seguintes e que, instado a pagar, fez entrega ao A. do referido veículo, que o vendeu por € 1.528,23, quantia que ficou por conta das importâncias que então devia, ficando ainda a dever aquela quantia de 9.924,56, relativamente às prestações em dívida.
Justifica a demanda da Ré mulher alegando destinar-se o veículo ao património da casal e ter ela dado o seu consentimento ao empréstimo dos autos.
Os RR. contestaram separadamente, alegando o R. M…, resumidamente, que foram fiadores do filho de ambos na compra do veículo tendo-se limitado a assinar os papéis que lhes puseram na frente sem que nada lhes tivesse sido explicado, nem lhes tendo sido entregue qualquer exemplar do contrato, sendo certo que pelo seu grau de literacia (são pessoas humildes e analfabetas) não tinham conhecimentos para afastar o regime do artº 781º do C. Civil, desconhecendo, aliás, que tinham celebrado um contrato de mútuo com o A. Por outro lado atento o que foi pago e o produto da venda do veículo, o crédito remanescente do A. seria de apenas € 5. 058,83.
Por sua vez, a R. C…, para além de confirmar a versão do R. marido alegou que a dívida não foi contraída em proveito comum pelo que, também por esse motivo deve ser absolvida do pedido.
O A., que na petição se quedara por 27 artigos, respondeu às contestações em articulado de nada menos do que 102, com as habituais e extensíssimas citações de doutrina e jurisprudência, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pelos Réus e invocando, de qualquer forma, a figura do abuso de direito por parte dos RR.
Teve oportunamente lugar a audiência de julgamento vindo a ser proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente, declarando nulo o contrato e condenando os RR. a restituírem ao Autor a quantia de € 2.652,89, a título de capital, acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.
Inconformado, interpôs o A. o presente recurso em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
I. Como melhor se explicitou em sede de alegações a se pode verificar pela audição dos depoimentos das testemunhas, não foi produzida nos autos prova de que não foi entregue ao R. um exemplar do contrato (como foi, ou seja, foi enviado pelo A. para a morada dos RR. um exemplar do contrato), pelo que tal suposto “facto”, cujo ónus da prova era dos RR. não se provou nos autos, devendo, por isso, eliminar-se da matéria de facto considerada provada na sentença a respectiva alínea K).
II. Ao contrario do que consta da sentença, o A. não violou os deveres de comunicação e informação previstos nos artigos 5º e 6º do Decreto Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, pois que os cumpriu inteiramente, sendo certo que não estava sequer em causa nos autos o dever de comunicação, pois o que o R. alega é a suposta falta de explicação das cláusulas gerais e isso prende-se com o dever de informação.
III. Na verdade, tal como se explicitou em sede de resposta à contestação e como da análise doa autos ressalta à saciedade, aquando da assinatura pelos RR. do contrato, já todas as suas cláusulas, específicas e gerais, se encontravam integralmente impressas (como inequivocamente tinham de estar, pois o A. já as enviou assim para que o R. assinasse o contrato dos autos), pelo que foram, sem dúvida, efectivamente comunicadas (sendo até certo que as condições específicas do contrato tinham sido previamente acordadas), sendo que ambas as folhas que compõem o contrato mostram-se assinadas pelos RR. (embora para efeitos do referido dever de comunicação tal apenas seja relevante relativamente ao R. mutuário), pelo que, evidentemente, todas as cláusulas (específicas e gerais) lhe foram comunicadas e delas o R. tomou conhecimento.
IV. Acresce que estava à disposição do R. para lhe prestar todos os esclarecimentos e informações particulares que este eventualmente reputasse necessários relativamente ao contrato dos autos, quer anteriormente a este o ter subscrito, quer posteriormente, sendo certo que o R. não solicitou ao A. que este lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento anterior à aposição da sua assinatura no dito contrato, ou sequer posteriormente, não obstante os contactos posteriormente havidos.
V. O A. cumpriu, pois, inteiramente os deveres de comunicação e de informação das cláusulas contratuais gerais, nos termos e de harmonia com o disposto nos artºs 5º e 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, sendo certo que não estava sequer em causa nos autos o dever de comunicação pois o que o R. alega é a suposta falta de explicação das cláusulas gerais ao mutuário e isso prende-se com o dever de informação.
VI. Não só o contrato dos autos é perfeitamente claro e explicito – para quem tiver o mínimo de diligência para o ler – pelo que não justifica qualquer aclaração especial – a não ser, evidentemente que tivesse sido pedido qualquer esclarecimento, o que não sucedeu – como sendo o contrato dos autos um contrato celebrado entre ausentes – como ressalta do processo de elaboração antes descrito – sempre se teria de atender “às circunstâncias” que no nº 1 do referido artigo 6º do decreto lei 445/85 de 25 de Outubro se ressalvam.
VII. Não houve, pois, qualquer violação dos referidos deveres de comunicação e informação, que foram cumpridos por parte do A. e nem o que consta da alínea N) da matéria de facto considerada como provada obsta a que o A. tenha cumprido com tais deveres, pois que o dever do A. em prestar os esclarecimentos apenas existe na medida em que os mesmos sejam solicitados pelos mutuários, e tal nunca foi solicitado pelo R.
VIII. É que o A. não tem obrigatoriamente que ler e explicar aos seus clientes os termos dos contratos que com eles celebra – excepto, evidentemente, se estes não souberem ler e lho comunicarem ou se lhe solicitarem o esclarecimento sobre eventuais dúvidas acerca do conteúdo do contrato – o que o A. tem de fazer – e fez – é assegurar que as condições contratuais acordadas constam dos contratos antes de estes serem assinados, precisamente para permitir a quem use de “comum diligência” possa ler a analisar o contrato, e estar à disposição dos seus clientes para prestar quaisquer esclarecimentos que estes lhe solicitem sobre os contratos que celebra.
IX. Acresce que, para além daquilo que expressamente consta do contrato assinado pelos RR. foi ainda dada ao R. a informação pré contratual que consta do documento que adiante se junta como doc. nº 1 de onde ressalta, mais uma vez, que foi expressamente comunicado ao R., para além do mais, qual a cláusula penal acordada para o caso de incumprimento do contrato e vários outros elementos do contrato dos autos.
X. O R. que, aliás assinou o contrato em sua casa, teve todo o tempo que entendeu para o ler a analisar e que confessadamente assinou sendo que o A. não lhe impôs qualquer prazo para que o fizesse e se porventura não o fez foi porque não se interessou em fazê-lo.
XI. Deve, pois, revogar-se a sentença recorrida também na parte em que considera que o A. violou os referidos deveres de comunicação e informação.
XII. Acresce que, mesmo que porventura se entendesse não revogar a referida alínea K) da matéria de facto “provada” (o que se refere a título meramente académico e por mero dever de patrocínio) e que a A. violou qualquer dos referidos deveres (o que não sucedeu) sempre se deveria (como deve, se for esse o caso) entender e decidir que a invocação pelos RR. da pretensa falta de entrega de exemplar do contrato, quer da pretensa violação do dever de informação (quando foram os RR. que nunca quiseram sequer indagar sobre o contrato nem esclarecer junto do A. quaisquer eventuais dúvidas que porventura tivessem sobre o mesmo) constitui um manifesto e descarado abuso de direito da sua parte.
XIII. Na verdade, a invocação pelos R. da pretensa invalidade do contrato dos autos por suposta falta de entrega de um exemplar do mesmo – que lhe foi entregue – e da pretensa violação do referido dever de informação (que, tal como o dever de comunicação, não foi violado, mas antes cumprido), nos termos, pelo “motivo”, no momento (ou seja, depois do R. há mais de 2 anos e meio ter celebrado com o A. o contrato nas precisas condições que dele constam; depois de o A. lhe ter emprestado, a pedido do R. a quantia mutuada de que há muito usufruiu e utilizou; depois de o R. ter começado a cumpri o contrato, o que fez durante mais de um ano, pagando as 16 primeiras prestações) e com a finalidade com que são feitos (o tentar agora fugir às suas responsabilidades) e tudo isto sem que nunca antes tenha invocado qualquer pretenso desconhecimento do contrato que celebrou e começou a cumprir ou invocado qualquer falta ou atraso na entrega de um exemplar nem qualquer suposta violação do referido dever – apesar dos vários contactos havidos entre o A e os RR. – configura não só um manifesto “venire contra factum proprium”, como constitui a invocação de excepção contra a boa fé e uma manifesta e irrefutável quebra de confiança objectiva em que, perante tudo o que se referiu e na realidade se passou e dos autos consta, o A., de boa fé e em função da conduta do R. sempre investiu e confiou.
XIV. Um manifesto e evidente abuso de direito, portanto, que implicaria, sempre, a paralisação do direito invocado, tornaria inócuas tais invocações e incólome a validade e efeitos do contrato dos autos e o direito do A. de ver satisfeito o seu direito de crédito que constitui o pedido dos autos.
XV. Saliente-se, aliás, que os RR. vieram aos autos mentir descaradamente alegando que ao assinarem o contrato pensavam estar apenas a constituírem-se fiadores de seu filho (quando dos autos ressalta à saciedade que isso é completamente falso), mas que, tal como as apenas agora invocadas supostas invalidades, nunca os impediu de pagarem as 16 primeiras prestações e de nos vários contactos que entretanto tiveram com o A. sempre se assumiram como os responsáveis pelo contrato dos autos e jamais questionaram a validade do mesmo, o que tudo diz bem da “forma de estar” dos RR. que, apenas depois de incumprido o contrato e face à acção dos autos, tudo vêm questionar e pôr em causa, quando antes tudo era válido e conforme o acordado. É demais!
XVI. É, pois, errada a decisão proferida na sentença que, ao decidir como o fez, interpretou e aplicou erradamente, o disposto nos artigos 334º e 342º, nº 2 do C. Civil, 6º do Dec. Lei nº 359/91, de 21 de Setembro e 5º e 6º do Decreto Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, artigos que, assim, violou.
Termina no sentido da revogação da sentença e da sua substituição por acórdão que julgue a acção inteiramente procedente e condene os RR. solidariamente nos pedidos.
Não foi oferecida contra-alegação.
Dispensados os vistos, de acordo com os Exmos Desembargadores Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
Na sentença impugnada considerou-se provada a seguinte factualidade:
A. Por documento datado de 17 de Julho de 2010 sob a epígrafe “Contrato de Mútuo nº 831474”, que se encontra a fls. 14 dos autos, o Autor B… e o Réu M… ajustaram, designadamente, o seguinte:
Entre
1. Banco Mais, S.A. (…)
e
2. Como mutuário e como tal ao diante designado, M… (…)
É celebrado o contrato de mútuo constante das Condições Específicas Gerais seguintes:
CONDIÇÕES ESPECÍFICAS
OBJECTO DO FINANCIAMENTO E IDENTIFICAÇÃO DO FORNECEDOR
Viatura marca BMW, com modelo 318 TDS Exclusive matrícula …FQ fornecida por A… (…)
Condições do financiamento
Preço a contado: € 8.000,00
Desembolso inicial: € 0,00
(…)
Comissão de gestão: € 125,00
(…)
Montante total do financiamento: € 8.125,00
Imposto de selo de abertura: € 48,75
Data de vencimento da 1ª prestação: 05/08/2007
Data de vencimento da última prestação: 05/07 2012
Número de prestações: 60
Periodicidade: Mensal
Montante de cada prestação € 238,68
(Ao montante indicado acresce € 1,50 por cada cobrança realizada)
Valor total das prestações € 14.328,80
Taxa nominal de juros, fixa ao longo de todo o período do contrato:
23,94%
TAEG: 29,108%
(…)
Autorização de Débito
O 1º Mutuário autoriza que, para pagamento das prestações acima indicadas, bem como de quaisquer outras verbas decorrentes deste contrato, designadamente juros de mora e despesas de cobrança, a sua conta, do banco Santander Totta com o NIB… seja debitada, por contrapartida de uma conta de que o Banco Mais seja titular (…)
CONDIÇÕES GERAIS
1. Montante do Financiamento
O banco Mais concede ao Mutuário um financiamento no montante estabelecido nas condições específicas deste Contrato.
2. Finalidade do Financiamento
O financiamento objecto do presente contrato destina-se à aquisição a crédito pelo Mutuário do bem referido nas condições específicas.
(…)
Reembolso e Pagamentos
a) O financiamento será reembolsado em prestações cujo número, periodicidade, valor e datas de vencimento se encontram estabelecidas nas condições específicas.
(…)
c)No valor da prestação estão incluídos o capital, os juros do financiamento, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a cláusula 13 destas Condições Gerais.
(…)
8. Mora e Cláusula Penal
a) O Mutuário ficará constituído em mora no caso de não efectuar, aquando do respectivo vencimento, o pagamento de qualquer prestação
b)A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento, implicam o imediato vencimento de todas
c) Em caso de mora, e sem prejuízo do disposto no número anterior, incidirá sobre o montante em débito e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação da mora
9. Período de Reflexão
a) O presente contrato só se torna eficaz se o Mutuário não o revogar no prazo de sete dias úteis a contar da sua assinatura.
b)Para efeitos da revogação referida na alínea anterior, o Mutuário deverá enviar, no prazo referido, ao Banco Mais, sob registo e com aviso de recepção, uma declaração conforme a minuta que, nos termos legais, se anexa, ou no mesmo prazo notificar o Banco Mais, por qualquer outro meio, de declaração idêntica.
c) Caso o Mutuário tenha já recebido o bem mencionado nas Condições Específicas, poderá, nos termos da lei, renunciar ao período de reflexão.
d) Para informações, o B… disponibiliza a linha de apoio ao cliente com o número de telefone 210000555
10. Rescisão do Contrato
Sem prejuízo de outros casos previstos na lei e neste Contrato, o B… poderá considerar o presente Contrato rescindido, sendo consideradas então imediatamente vencidas todas as obrigações decorrentes para o Mutuário do mesmo, exigindo o cumprimento imediato de todos os valores em dívida, sempre que se verifique alguma das seguintes situações:
a) Falta de pagamento pontual de qualquer prestação de capital, juros ou outros encargos previstos neste contrato.
(…)
B. O documento descrito na alínea a) dos factos provados encontra-se, por igual forma, assinado pela Ré C….
C. Por conta do acordo descrito em A., o Réu entregou ao Autor 16 prestações na importância unitária de € 238,68.
D. Não tendo, no entanto, entregue ao Autor, em 5 de Dezembro de 2008 ou em momento posterior a 17ª prestação.
E. na sequência da falta de liquidação da prestação referida na alínea em D. dos factos provados, o Autor peticionou ao Réu o pagamento do montante global de € 10.501,92.
F. tendo o Réu, nesse seguimento, entregue ao Autor o veículo 09-67-FQ por forma a que este concretizasse a correspondente venda e creditasse o valor obtido na importância em dívida.
G. O Autor procedeu à alienação do mesmo automóvel pelo preço de € 1.528,23, ajustando, paralelamente, com o Réu, que tal montante seria imputado às quantias em débito.
H. Os Réus subscreveram o documento de fls. 15 na sua residência e na presença exclusiva do seu filho e de A… na qualidade de vendedor do veículo.
I. Sendo que, recolhida que foi a assinatura dos Réus, remeteu o mesmo A… para o Autor o indicado documento de fls. 15.
J. Tendo então o representante legal do Autor aposto a sua assinatura no mesmo documento.
K. Não foi remetido pelo Autor aos Réus cópia do documento de fls. 15 no seguimento da assinatura concretizada pelo seu legal representante ou em qualquer momento posterior.
L. O indicado A… não comunicou verbalmente ao Réu, por ocasião da subscrição descrita em H dos factos provados, o conteúdo das cláusulas ínsitas no documento de fls. 15.
M. Não tendo, por outra via, prestado qualquer informação ou elucidação sobre o correspondente teor.
N. Comunicação e informação que não foram, por igual forma, concretizadas pelo Autor em momento posterior.
O. Os Réus têm dificuldade em ler e escrever.
Vejamos então.
Como se alcança das respectivas contestações, os RR. invocaram, além do mais, a nulidade do contrato de crédito por não lhes ter sido entregue um exemplar do mesmo, como o impunha o nº 1 do art 6º do Dec-Lei nº 359/91, de 15 de Setembro e, ainda, não lhes terem sido comunicadas as cláusulas do contrato nem terem sido informados do respectivo conteúdo, designadamente quanto às letras pequeninas que figuravam no papel que assinaram.
Na sua resposta o A. pronunciou-se no sentido de não ocorrer a apontada nulidade nem ter havido violação dos deveres de comunicação e informação, ao mesmo tempo que sustentou que a respectiva invocação, designadamente depois de terem pago 16 prestações, se traduz em abuso de direito.
Perante a factualidade dada como provada, a discussão jurídica da causa centrou-se, pois, à volta das referidas questões em confronto com as disposições do apontado diploma e do Dec. Lei nº 446/85, de 25 de Outubro (regime jurídico das cláusulas contratuais gerais), na redacção do Dec-Lei nº 244/99, de 7 de Julho, designadamente os artºs 5º e 6º.
Tendo vindo a concluir pela ocorrência da nulidade em causa, nem assim a douta sentença deixou de se debruçar sobre o cumprimento dos deveres de comunicação e informação, concluindo pela negativa, transparecendo porém, claramente, de tão brilhante peça processual, que a questão nuclear para a solução da controvérsia girava em torno da nulidade, o que bem ilustrado está na seguinte passagem: “Por outro lado, atento o regime dos deveres previstos no Decreto-Lei 359/91 e no Decreto-Lei nº 445/85, dívidas não há que é a nulidade daquele primeiro diploma que deverá, atento o seu alcance mais lato e a viciar todo o negócio, prevalecer” (itálico da responsabilidade do presente relator).
Porque efectivamente assim é, por aqui se iniciará a nossa apreciação, na medida em que, para o caso de serem de acolher os fundamentos da decisão recorrida, prejudicada ficará qualquer indagação acerca do cumprimento ou não dos falados deveres de comunicação e informação. Com efeito, a conclusão no sentido da nulidade do contrato acarretará que todas as respectivas cláusulas sejam arredadas da ordem jurídica, contexto em que não faria qualquer sentido voltar a analisá-las à luz do Dec. Lei nº 446/85. É o que, aliás, resulta do disposto no nº 2 do artº 660º do C. P. Civil, quando exclui do dever de apreciação as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Não se oferecendo dúvidas de que o contrato em causa está sujeito à disciplina do já citado Dec-Lei nº 351/91, esclarece o respectivo preâmbulo que o mesmo surgiu da constatação de um significativo desenvolvimento do fenómeno do crédito ao consumo e de que não raro certas das suas modalidades têm associadas condições abusivas o que determinou necessidade de instituir regras mínimas no sentido da protecção dos direitos dos consumidores, concretizadas na garantia de informação completa e verdadeira no sentido de uma correcta formação da vontade de contratar e na definição dos requisitos do contrato constituintes de um conjunto de garantias adicionais para o consumidor.
O respectivo articulado veio a acolher as aludidas preocupações, designadamente no artº 6º, nº 1, impondo que o contrato seja reduzida a escrito e assinado pelos contraentes e que seja entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura, e no arº 7º, cominando, no nº1, que o contrato é nulo, designadamente, quando não for observado o prescrito no nº 1 do artº 6º e, dispondo, no nº 2, que a inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e que a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
A obrigação de entrega ao consumidor de um exemplar do contrato está claramente relacionada com o que, depois, dispõe o artº 8 nº 1, nos termos do qual, com excepção dos casos previstos no nº 5, que para aqui não relevam, a declaração negocial do consumidor relativa à celebração do contrato só se torna eficaz se este o não revogar em declaração enviada ao credor por carta registada com aviso de recepção a expedir no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do contrato ou em declaração notificada ao credor, por qualquer meio, no mesmo prazo.
Com efeito, como se escreve no Acórdão do STJ de 01,06.1999, a obrigação de entrega ao consumidor de um exemplar do contrato, imperativamente imposta ao credor, na 2ª parte do nº 1 do artº 6º do Dec-lei nº 359/91 está intimamente relacionada com o termo inicial do período de reflexão consignado no nº 1 do artº 8º do mesmo diploma, na medida em que se a revogação da declaração negocial, direito reconhecido ao consumidor, deve ser declarada, no prazo de sete dias a contar da assinatura do contrato, precisa de ter em seu poder um exemplar do mesmo. A não ser assim, o imperativo período de reflexão ficaria prejudicado posto não poder o consumidor ponderar sobre um texto que não tinha á mão. Com efeito, na ausência do respectivo exemplar, fica o consumidor privado da necessária reflexão sobre a natureza e consequências das obrigações assumidas.
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da Relação de Lisboa de 22-10-09 (rec. 12153.03.1YXLSB.L1.8), como aquele, disponível em www.dgsi.pt.
Não se mostra, por outro lado, defensável que, designadamente, nos chamados contratos entre ausentes, em que, como no caso (ver al. j) do elenco dos factos provados) a assinatura do credor foi aposta em momento posterior à do consumidor, o dever de entrega do exemplar do contrato pudesse ser cumprido aquando da última assinatura. Com efeito o momento relevante é o da assinatura do consumidor, pois é a partir dele que se conta o prazo para a revogação, na medida em que, como se acentua no Acórdão da Relação de Coimbra de 04.05.2010 (rec. Nº 338/094TBGRD.), a previsão do nº1 do art 6º é indubitavelmente de natureza imperativa, não admitindo desvios ou concessões, pois, admitir o contrário, privaria o consumidor, no momento da assinatura, dos elementos necessários a uma ponderada reflexão sobre os compromissos que assumira.
Ou seja, pese embora a lei lhe conceda um período de reflexão de sete dias a contar da assinatura, deve, logo no momento desta, proporcionar-se ao consumidor, os elementos necessários a atingir o significado e consequências das obrigações que vai assumir num contrato em que, a par das cláusulas que exprimem as particularidade de cada caso, estão inseridas cláusulas pré-determinadas pelo credor não passíveis de negociação. Repare-se, com efeito, que o preceito situa o momento da entrega no da assinatura e não depois dela.
Por isso, ainda que, como sustenta na conclusão (i) o apelante tivesse remetido aos RR um exemplar do contrato quando, depois de por eles assinado, o veio a ser pelo seu representante legal, não teria cumprido o disposto no referido preceito.
Daí a irrelevância da sua pretensão de ver arredada da factualidade dada como provada a al. K) do elenco constante da sentença, ou seja que “Não foi remetida pelo autor aos Réus cópia do documento de fls. 15 no seguimento da assinatura concretizada pelo seu legal representante ou em qualquer momento posterior”.
De qualquer forma, a alegação constante do artigo 15 da resposta à contestação no sentido de que “Posteriormente à aposição nos dois exemplares do contrato de mútuo dos autos da assinatura de um seu representante, o A. enviou ao R. um exemplar do referido contrato doa autos para a morada dos RR. que não veio devolvido”, redunda, afinal , na confissão de que não procedeu à sua entrega no momento da assinatura por parte dos RR.
Ora, nos termos do nº 4 do artº 7º do diploma em apreço, a inobservância dos requisitos (todos) constantes do artigo 6º presume-se imputável ao credor.
Assim, posto que a omissão de entrega do exemplar determina a nulidade do contrato e que a única especificidade de respectivo regime em relação ao regime geral consagrado nos artºs 285º e segs do C. Civil reside em que a mesma só pode ser invocada pelo consumidor, podiam os RR. fazê-lo a todo o tempo, mesmo no caso de ter sido parcialmente cumprido.
Restando, pois, analisar a questão de saber se a arguição se traduziu, no caso, em abuso de direito, figura que o apelante retira das circunstâncias de o contrato ter sido celebrado há mais de dois anos e meio, de o A. ter emprestado a quantia mutuada, de o R. ter dela usufruído, de ter adquirido o veículo, de ter pago as 16 primeiras prestações, etc., “Sem que antes nunca tenha invocado qualquer pretenso desconhecimento do contrato que celebrou e começou por cumprir ou invocado qualquer falta ou atraso na entrega de um exemplar do contrato de mútuo nem qualquer suposta violação do referido dever …”. Tal configuraria, pois, um manifesto “venire contra factum proprium”e invocação de excepção contra a boa fé, em “manifesta e irrefutável quebra da confiança objectiva em que, perante tudo o que se referiu, e na realidade se passou e dos autos consta, o A. de boa fé, e em função da conduta do R. sempre investiu e confiou”.
Como se sabe, o excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico de determinado direito que nos termos do artº 334º do C. Civil conduz à ilegitimidade do respectivo exercício, segundo a lição de diversos autores, sintetizada em Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol I, 4ª edição, pag. 298-299, tem de ser manifesto, e clamorosamente ofensivos da justiça, ou na afirmação de Vaz Serra, constituir “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.
A douta sentença, dando conta de diversa jurisprudência sobre a questão, e sem deixar de admitir a intervenção do instituto perante a invocação da nulidade em causa, por isso que “não é pela circunstância de estarmos perante um consumidor que deverá o Tribunal tratá-lo, sem mais, numa postura paternalista, como incapaz de ponderação, raciocínio ou compreensão do contrato e seus direitos”, observou, porém, pertinentemente, que o caso sub judicio não se mostra equiparável às situações que serviram de base à jurisprudência invocada pelo ora apelante como tradutoras de deslealdade ou de má fé.
Acolheu assim, o apelo ínsito no Acórdão do STJ de 30-10.2007, a que na ponderação do abuso de direito por parte do consumidor que invoca vícios do contrato, após o início da execução, “deve o Tribunal actuar com particular prudência já que, na relação de financiamento à aquisição de bens de consumo, é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos serviços e do consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a entidade financiadora da aquisição, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, não infringiu, ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma os princípios da boa fé”, caso em que não deve ser paralisado o direito do consumidor a invocar a nulidade.
Ora, no presente caso, por isso mesmo que, de acordo com a factualidade dada como demonstrada, se tratava de pessoas (os RR) que têm dificuldade em ler e escrever, mais premente surgia a necessidade de lhe ser dada a possibilidade de, nos sete dias posteriores à respectiva assinatura, disporem de um exemplar do contrato e de se socorrerem de pessoas mais esclarecidas para os elucidarem do verdadeiro conteúdo das obrigações dele constantes, não sendo até de afastar a hipótese de o terem começado a cumprir precisamente porque desconheciam a faculdade de o revogar.
Assim, perante a omissão cometida pelo A., instituição experiente no comércio bancário e parafraseando o citado acórdão, em caso semelhante, “com um arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade”, não pode a invocação da nulidade por parte dos RR. considerar-se clamorosamente ofensiva da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Improcedentes se mostrando assim as conclusões da alegação, também improcedente resulta o recurso.
Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, confirmam a brilhante sentença impugnada.
Custas pelo apelante.
Évora, 8.09.11
João Gonçalves Marques
Eduardo José Caetano Tenazinha
António Manuel Ribeiro Cardoso

http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/6017194cd9a826568025790c003703fd?OpenDocument

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - ACIDENTE DE TRABALHO PEDIDO GENÉRICO - 14/09/2011


Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
839/07.6TTSNT.L1-4
Relator: LEOPOLDO SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PEDIDO GENÉRICO

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 14-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA

Sumário: Em processo especial de acidente de trabalho não é admissível pedido genérico

Decisão Texto Parcial: A, natural do Brasil, (…), veio propor acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra B – CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA, (…).
Alega , em síntese , que (vide fls. 166) trabalhou por conta da R. e sob a sua autoridade, direcção e fiscalização , desde 04.01.2006, exercendo as funções de ajudante de carpintaria, auferindo desde Outubro de 2006 a quantia de € 40,00 por dia de trabalho e sendo o seu dia semanal de descanso o Domingo, pelo que o seu salário médio mensal era
de € 1.040,00.
Em 08.05.2007, encontrava-se a laborar por conta da R., numa obra
sita em Odivelas, (…), a terminar as cofragens de um pilar, sem que existissem protecções laterais ou qualquer outro meio de protecção de trabalhos em altura, o que levou a que caísse duma altura correspondente ao 3.º andar.
A R. não tinha transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho, no que lhe diz respeito, para qualquer seguradora.
Como consequência directa e necessária do acidente de trabalho,
sofreu as lesões descritas nos presentes autos, conforme teor de exame médico realizado , em 20/10/2008, que lhe determinaram incapacidade permanente parcial de 19,41%, a partir daquela data, e ITA durante 533 dias.
Como consequência do acidente de trabalho que sofreu no período
pós-operatório, foi obrigado a permanecer em repouso absoluto, por não poder andar, durante dois meses, tendo sido assistido pela Sra. D. C, a quem pagou € 500,00 € / mês, num total de € 1000,00.
Igualmente como consequência directa do acidente de trabalho sofrido,
despendeu € 110,03 em medicamentos, € 129,98 em transportes públicos e € 263,53 em táxis, para se deslocar entre sua casa e o Hospital e entre sua casa e o Tribunal, tudo perfazendo a quantia de € 503,54.
Termina, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:
a) pensão anual e vitalícia calculada com base na retribuição anual de €1.040 X 14 = € 14.560 e com base na incapacidade que lhe for atribuída por Junta Médica;
b) a quantia de € 18.404,46, a título de indemnização por ITA, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, al. a) da Lei 100/97, de 13 de Setembro;
c) caso se entenda ser de aplicar o artigo 17.º, n.º 1, al. e) do mesmo diploma, a quantia de € 12.883,12, a título de indemnização por ITA;
d) a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de reembolso do montante despendido para pagamento a terceira pessoa, que o acompanhou enquanto se encontrava acamado;
e) a quantia de € 503,54 a título de reembolso dos montantes dispendidos em medicamentos e transportes;
f) os tratamentos necessários à sua recuperação que venham a ser
determinados por decisão médica;
g) Juros sobre as quantias em que for condenada e até integral pagamento.
A R. contestou.
(…)
Termina pedindo a absolvição do pedido.
Mais requereu a realização de junta médica.
Proferiu-se despacho saneador e seleccionou-se a matéria de facto assente e controvertida (fls. 327 e ss.), sem reclamações.
Por apenso, foi fixada a incapacidade do A. para o trabalho.
Procedeu-se a julgamento.
Foi proferida decisão sobre a matéria de facto, sem reclamações (fls. 544 e ss.).
Veio a ser proferida sentença que na parte decisória teve o seguinte teor :
“Por todo o exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em
consequência, condeno a R. a pagar ao A.:
- A pensão anual e vitalícia de € 3.232,87, devida desde 21/10/2008;
- A indemnização pela incapacidade temporária absoluta, no valor de €
5.011,98;
- O subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, no valor de € 4.836,00;
- A quantia de € 503,54 a título de reembolso de despesas com
transportes, consultas e tratamentos;
- Juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias anteriores, desde os
respectivos vencimentos até integral pagamento.
Absolvo a R. do restante pedido.
Custas pela R.
Valor da acção: € 64.266,09.
Registe e notifique” - fim de transcrição.
Inconformado o Autor apelou.
Concluiu que:
(…)
Não foram produzidas contra alegações.
O recurso foi admitido.
O MºPº lavrou douto parecer , nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3º do artigo 87º do CPT – vide fls. 590/591.
Foi produzida resposta – fls. 594 a 496.
Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.

*****

A 1ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto (que não foi impugnada e se aceita) :
(…)

****

É sabido que o objecto do recurso apresenta-se delimitado pelas conclusões da respectiva alegação (artigos 684º nº 3º e 690º nº 1º ambos do CPC ex vi do artigo 87º do CPT).[i]
Analisados os autos constata-se que no recurso se suscita uma única questão que consiste em saber se a Ré devia ter sido condenada a pagar ao Autor os tratamentos necessários à sua recuperação que venham a ser determinados por decisão médica, tal como foi peticionado.
O Autor , além de outra argumentação , sustenta , a tal título, que a sentença nesse particular absolveu a Ré do pedido de forma sumária, sem fundamentar minimamente tal decisão.
Todavia cumpre salientar que não procedeu à arguição , nos termos do disposto no artigo 77º do CPT, de qualquer nulidade de sentença, pelo a tal respeito nada há a dilucidar.
Cabe ,agora , mencionar , tal como o recorrente refere , que o artigo 10º da Lei 100/97 , de 13/09, estatui que :
“O direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações:
a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa”.
Por sua vez, o nº1º do artigo 15º, do aludido diploma legal estabelece:
“1 – O fornecimento ou o pagamento dos transportes e estada abrange as deslocações e permanência necessárias à observação e tratamento, e as exigidas pela comparência a actos judiciais, salvo, quanto a estas, se for consequência de pedidos dos sinistrados que vierem a ser julgados totalmente improcedentes.“
Quanto ao nº 1º do artigo 16.º da Lei em causa preceitua :
“1 – Nos casos de recidiva ou agravamento, o direito às prestações previstas na alínea a) do artigo 10.º mantém-se após a alta, seja qual for a situação nesta definida, e abrange as doenças relacionadas com as consequências do acidente”.
Nas palavras de Carlos Alegre “ é evidente que as prestações em espécie a que se refere o artigo 16º, nº 1º , não são todas aquelas que têm a ver com o restabelecimento do estado de saúde do sinistrado , únicas que , em princípio , cessam com a alta.
De facto, depois da cura clínica (portanto, depois da alta), mais ou menos tempo depois de decorrido um período de saúde completa (embora relativa) , pode acontecer a reaparição da doença (recidiva) ou o agravamento da lesão tida como curada ou, ainda, a sobrevinda de doenças relacionadas com as consequências do acidente.
Em todas estas situações , se mantém o direito àquelas prestações em espécie de que temos vindo a falar , sendo certo que o direito às restantes prestações em espécie não depende de nenhuma das condições definidas no artigo 16º , o mesmo acontecendo com as prestações em dinheiro que podem , pelo contrário, ser revistas, aumentadas, reduzidas ou extintas “ – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, regime jurídico Anotado, 2ª edição, pág 91
Deve relembrar-se que a problemática em exame versa sobre a condenação da Ré a pagar ao Autor os tratamentos necessários à sua recuperação que venham a ser determinados por decisão médica, nos moldes peticionados, sendo certo que sobre a verificação do acidente de trabalho , e demais prestações decorrentes do mesmo, nada mais cumpre discutir, mostrando-se transitada a sentença na parte em que o reputou verificado.
Ora , em face do disposto nestas normas , dir-se-á que assiste razão ao recorrente.
Todavia , a nosso ver, o fulcro da questão situa-se em saber se a pretensão em causa configura - ou não - um pedido genérico admissível nos termos previstos no artigo 471º do CPC.
Segundo esta norma (pedidos genéricos):
“1- É permitido formular pedidos genéricos nos casos seguintes:
a )Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade , de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar , de modo definitivo , as consequências do facto ilícito , ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569º do Código Civil;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu.
2 – Nos casos das alíneas a) e b) do número anterior o podido pode concretizar-se em prestação determinada por meio de incidente de liquidação, quando para o efeito não caiba processo de inventário.
Não sendo liquidado na acção declarativa, observar-se-á o disposto no nº 3º do artigo 661”.
Por sua vez, o artigo 569º do Código Civil (indicação do montante dos danos) estabelece que:
“ Quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia o dano , nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção , de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos”.
In casu, é evidente que as alíneas a) e c) do artigo 471º do CPC aqui não logram aplicação.
Mas e quanto à alínea b) ?
Em nosso entender , a resposta é idêntica.
É que o acidente de trabalho em exame não configura qualquer facto ilícito.
Como tal cumpre considerar que o pedido em causa não encontra acolhimento nesta norma.
Assim sendo , afigura-se que a dedução do pedido genérico em causa não era admissível.
Porém, a consequência dessa inadmissibilidade não é a absolvição do pedido ( até porque assiste ao Autor o direito em causa, tal como já se viu…), mas a absolvição da Ré da instância , em consequência da situação em análise constituir excepção inominada, no que lhe diz respeito.( em sentido diverso contudo aponta Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, evista e actualizada, Vol III, , 3ª edição, pág , pág 22).
Neste sentido aponta , aliás, ac. do STJ de 8.2.1994, in CJSTJ, T I, pág 95, que cita a tal título abalizada doutrina.
Desta forma, nem sequer o Autor fica impedido de em qualquer altura , sendo caso disso, solicitar a condenação da Ré, nomeadamente em incidente de revisão, ou mesmo fora dele , a pagar-lhe as prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar ou outras, que se mostrem necessárias e adequadas ao restabelecimento do seu estado de saúde e da capacidade de trabalho e de ganho , bem como à sua recuperação para a vida activa.
Procede, pois, embora de forma parcial o presente recurso.

****


Nestes termos, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso , absolvendo-se, assim a Ré da instância no tocante ao pedido do Autor na sua condenação a pagar-lhe os tratamentos necessários à sua recuperação que venham a ser determinados por decisão médica.
Custas pela Ré em ambas as instâncias.

DN (processado e revisto pelo relator - artigo 138º nº 5º do CPC)


Lisboa 14 de Setembro de 2011,

Leopoldo Soares
Ferreira Marques
Maria João Romba

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/c68030a0cc97e8b680257911005405a7?OpenDocument

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE PSICOTRÓPICOS - 07/09/2011


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
153/10.OGCVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: COELHO VIEIRA
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE PSICOTRÓPICOS

Nº do Documento: RP20110907153/10.0GCVRL.P1
Data do Acordão: 07-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: A presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, sem que resulte comprovada que aquela é perturbadora da aptidão física mental ou psicológica para a condução, não preenche o tipo de crime do artigo 292º/2 do C. Penal, antes e apenas os elementos da contra-ordenação prevista no artº 81º do C. da Estrada.

Reclamações:

Decisão Texto Integral: Proc. Nº 153/10.0GCVRL.P1

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

No Tribunal Judicial de Vila Real - 1º Juízo – foi exarada a seguinte:-

(…)

SENTENÇA

I. Relatório:
Para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, O Ministério Público acusa:

B…, solteiro, empregado da construção civil, nascido a 17.03.1986, em França, filho de C… e de D…, antes e actualmente a residir em …, …, Suíça,

Imputando-lhe, pela prática dos factos descritos na acusação pública de fls. 36 e sgs., o cometimento, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sob efeito de substâncias psicotrópicas, p. e p. pelos art.ºs 69.º e 292.º, n.º2, do Código Penal.
*
A acusação pública foi recebida.
*
O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos, e indicou prova testemunhal.
*
Realizou-se a audiência de julgamento, na ausência do arguido e com a sua anuência, tendo-se observado nela as formalidades legais, conforme se alcança da respectiva acta.
*
Mantém-se a validade e regularidade da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.
**
II. Fundamentação:
II.A. Dos Factos:
II.A.1. Factos Provados:
Discutida a causa e com relevo para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 25.01.2010, pelas17h45, na …, em Vila Real, o arguido seguia ao volante do veículo ligeiro de passageiros de marca “Fiat” modelo “…” e de matrícula ..-..-DL.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., o arguido foi submetido a análises para pesquisa de consumo de substância psicotrópicas no sangue, vindo as mesmas a indicar a presença de 22,68ng/ml de opiáceos e canabinóides e de 101,41 ng/ml de morfina.
3. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
4. O arguido sabia que não podia conduzir veículo automóvel sob a influência de substâncias psicotrópicas.
5. O arguido sabia que o consumo de substâncias psicotrópicas põe em causa a segurança no exercício da condução e que tal é proibido e punido por lei.
Do julgamento:
6. A condução do arguido não apresentava à data referida em 1. sintomas ou sinais de este poder estar influenciado por marijuana, cocaína, opiáceos, anfetaminas ou outra substância psicotrópica.
Da situação pessoal e económica do arguido:
7. O arguido trabalha, actualmente, como estucador da construção civil na Suíça, para a
“E…”, auferindo Fr 3’900 + Fr 250.
8. O arguido, através da empresa referida em 11., desloca-se várias vezes e por longos períodos a França.
9. O arguido tem o 11.º Ano de Escolaridade.
10. O arguido encontra-se a viver na Suíça com familiares.
11. O arguido é conhecido como consumidor de drogas, tendo sido acompanhado pelo CRI de Vila Real até à sua ida para a Suíça.
12. O arguido esteve em Portugal pelo Natal e pelo funeral de um familiar e não apresentou sinais de consumo de produto estupefacientes.
13. O arguido tem o apoio da família.
14. O arguido tem pendente o processo crime n.º 169/10.6TBLMG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, sendo-lhe imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º1, al. d), do RJAM, praticados entre Setembro de 2009 e Março de 2010.
15. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
II.A.2. Factos Não Provados:
Discutida a causa e com relevo para a boa decisão da causa, não ficaram por demonstrar factos alegados pela acusação e-ou pela defesa ou até resultantes do próprio julgamento.
*
II.A.3. Da motivação do Tribunal acerca dos factos:
………………………………………
………………………………………
………………………………………
*
II.B. Do Direito:
………………………………………
………………………………………
………………………………………
*
III. Da Decisão:
Face a todo o exposto, julga-se improcedente a acusação pública e, em consequência, decide-se:

a) Absolver o arguido B… do crime de condução de veículo sob influência de substâncias estupefacientes, previsto e punível pelos art.ºs 292.º, n.º 2, e 69.º, n.º 1, a), ambos do Código Penal de que vinha acusado.

b) Absolver o arguido B… do pagamento das custas devidas pelo presente processo crime, atento o disposto nos art.ºs 513º e 514º a contrario do Código de Processo Penal.
*
Mais se declara, nos termos dos artigos 214º, 1, al. e) e 376º do C.P.P., a cessação imediata da medida de coação prestada pelo arguido.
*
Notifique.
Deposite a presente sentença na secretaria deste tribunal – art. 372.º, n.º 5, do CPP.
*
Vila Real, 24.03.2011.

(…)

XXX

Inconformada com esta decisão absolutória, o Digno Magistrado do MP veio interpor recurso, o qual motivou, aduzindo as seguintes:-

CONCLUSÕES:-
………………………………………
………………………………………
………………………………………
XXX

O Recorrente veio responder ao recurso do MP, defendendo a bondade da decisão e a consequente improcedência do recurso.

XXX

O Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer, por via do qual entende que o recurso merece provimento.

Cumprido que se mostra o disposto no art. 417º nº 2, do CPP, verifica-se que não foi deduzida qualquer resposta.

XXX

COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR:-

O TRP tem poderes de cognição de facto e de direito – art. 428º, do CPP.

As nulidades principais (art. 118º, do CPP) e os vícios da decisão enumerados nas als. a), b) e c) do nº 2, do art. 410º, do CPP são de conhecimento oficioso na 2ª instância.

A decisão recorrida não enferma de umas ou outros, nem tal vem suscitado pelo Digna Recorrente.

A questão nuclear que vem invocada é a de saber se existem, no caso, preenchidos todos os elementos essenciais do crime, ou não.

Desde já devemos referir que concordamos com a decisão recorrida e usamos, também da faculdade a que alude o disposto no art. 425º nº 5, do CPP.

Mas entendemos por útil e oportuno referir mais o seguinte:-

Deu-se como provado (cfr. ponto 6 dos factos provados na sentença) que:-

6. A condução do arguido não apresentava à data referida em 1. sintomas ou sinais de este poder estar influenciado por marijuana, cocaína, opiáceos, anfetaminas ou outra substância psicotrópica.

O Digno Recorrente não recorreu da matéria de facto na vertente do disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do CPP o que facilmente se recolhe da atenta leitura das conclusões da motivação do recurso; e assim, não sendo caso de existência dos vícios da decisão acima aludidos, designadamente erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável entre fundamentação (o que na aparência poderia resultar da comparação entre os factos provados em “2” e “6” e adiante também demonstramos, tal facto (para além da restante factualidade) está assente; aliás, a matéria de facto encontra-se devidamente fundamentada e motivada, com fundamentação jurídica, concisa, mas bem elaborada.

(…)

A tipificação do crime de condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas ocorreu com a alteração legislativa ao art. 292 introduzida pelo art. único da L. 77/01.
No entanto e como contra-ordenação já a versão original do C. da Estrada, DL n.º 114/94, de 03 de Maio, no art. 87 previa e punia a “Condução sob o efeito do álcool ou de estupefacientes”, embora remetendo para diploma próprio a regulamentação do que era conduzir naqueles termos.
Também agora e no que respeita ao crime em causa temos de recorrer a diplomas próprios donde se possa retirar se o condutor se encontra sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas e, se está em condições de exercer a condução com segurança ou não.
Assim, que a Lei 18/2007 de 17 de Maio aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas e, a Portaria 902-B/2007 de 13 de Agosto regula o material a utilizar na recolha e transporte de amostras biológicas destinadas a determinar a presença de substâncias psicotrópicas e os procedimentos a aplicar na realização das análises e os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou por substância psicotrópica.
A L. 18/2007, nos arts. 10 a 13, inseridos no capitulo “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas” prevê um exame prévio de rastreio e em caso de resultado positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.
Sendo que, nos termos do nº 5 do art. 12, “só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação”.
A Portaria 902-B/2007 no Capitulo II regulamenta a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas.
O exame de confirmação considera-se positivo sempre que revele a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no quadro 1 do anexo V, ou qualquer outra com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança. Sendo que o quadro 2 prevê os valores de concentração para exame de rastreio de urina.
Efectuado o exame, indicando a secção III como deve ser feito, o médico deve preencher o relatório do exame modelo do anexo VII, sendo que do resultado desse exame, respondendo aos itens de: Observação geral; Estado mental; Provas de equilíbrio; Coordenação dos movimentos; Provas oculares; Reflexos; Sensibilidade e quaisquer outros dados que possam ter interesse para comprovar o estado do observado.

Só o relatório médico com esses itens preenchidos permitirá ao tribunal concluir se o examinado estava em condições de fazer o exercício da condução em segurança.
Para além da questão quantitativa abordada na sentença, tais requisitos essenciais não constam do competente relatório pericial ( cfr. fls. 26-27 ).

Que o arguido não estava “em condições de o fazer em segurança”, (relativamente ao exercício da condução) este exercício da condução, tem de ser facto apurado e, por conseguinte, constar da matéria de facto da acusação (“negrito nosso”).

No caso apenas se alegam e provam os factos dos itens 4 e 5.

Ora, também no entender deste TRP, aquela factualidade tem que ser “cirurgicamente” alegada, sob pena de a acusação não poder vingar.

Tal não ocorre no caso “sub-judice”.

Assim, também entendemos que a presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, a mesma tem de ser “perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica” para a condução.
Não se apurando tal facto, apenas fica demonstrado que o arguido se encontra sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o que não preenche o tipo de crime do art. 292 nº 2 do CP, mas preenche os elementos da contra-ordenação prevista no art. 81 do C. Estrada, porque, para tal, basta conduzir sob a influência de produtos psicotrópicos, “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”.

(…)

O art. 292 nº 2 do CP não prevê o típico crime de perigo comum. Não basta a presença de substância psicotrópica no corpo, é necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz no caso concreto - e com o devido respaldo pericial -, de conduzir com segurança (e também independente do resultado danoso que possa haver). Diferente é a previsão do nº 1, em que basta a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, independentemente da influência que essa taxa de álcool exerça no condutor, ou mesmo que não afecte as condições de condução com segurança.
Face ao exposto, entendemos não merecer provimento o recurso, antes se mantém a decisão recorrida.

(cfr. Ac. da RC, de 6/04/2011 (pesquisa “Google”).

(…)

Daqui se conclui que a decisão absolutória é de manter.
XXX
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão absolutória recorrida.

Sem tributação.

PORTO, 7/09/2011
José João Teixeira Coelho Vieira
José Carlos Borges Martins

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/93dfeffa02fa39ef80257910004660a9?OpenDocument

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO PRAZO DE CADUCIDADE INCONSTITUCIONALIDADE - 06/09/2011


Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1167/10.5TBPTL.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE

Data do Acordão: 06-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMILIA - FILIAÇÃO - RECONHECIMENTO JUDICIAL
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS
Doutrina:
- Cristina Queiroz, in “Direitos Fundamentais. Teoria Geral”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, pág. 250.
- Gomes Canotilho, José Joaquim, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Almedina, 6.ª edição, págs. 1247, 1255, 1257.
- Gomes Canotilho, J. J. e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa. Anotada.”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 a 457, 463, 464, 467.
- Oliveira, Guilherme, In “Caducidade das Acções de Investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, “Direito da família e das Sucessões”, Coimbra Editora, 2004, págs. 51, 52, 53, 54, 55.
- Reis Novais, Jorge, in “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa”, Coimbra Editora, 2011 (reimpressão), pág. 183.
- Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, págs. 277, 288, 289, 291, 311, 312, 314, 316, 317.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817.º, N.º1 (NA REDACÇÃO DADA PELA LEI 14/2009 DE 1-4), 1873.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 26.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-03-2010;
-DE 08-06-2010;
-DE 21-09-2010, TODOS EM WWW.STJ.PT .

Sumário :

I - Mostra-se inconstitucional o estabelecimento ou estatuição, pelo art. 1817.º, n.º 1, do CC, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 01-04, de um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação.

II - Na ponderação da equação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se, do lado do filho-investigante, o “direito à identidade pessoal”, o “direito à integridade pessoal” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade” e, do lado do pretenso pai-investigado, os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade”.

III - Estando em causa direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa.

IV - Há que indagar quais os factores de ponderação que, no caso concreto, podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa e, nesta ponderação, terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados.

V - No conspecto dos valores em confronto, deve privilegiar-se aqueles que abonam e exornam a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias, pelo que o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 14/2009, de 01-04, deve ser considerado inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.


Decisão Texto Integral: Recorrente: AA
Recorrido: BB

I. – RELATÓRIO.

Em dissidência com o decidido no despacho saneador/sentença que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção para investigação da paternidade formulado pela demandante contra o pretenso pai, BB, recorre, per saltum, a demandante, AA, do havendo a considerar para a decisão a proferir, os sequentes:

I.1. - Antecedentes Processuais.

Elenca-se a súmula dos factos alegados nos articulados produzidos.

Na petição, donde faz emergir o pedido reconhecimento como filha do Réu, BB, e que fosse averbado ao seu registo de nascimento o apelido "M....., aduz a demandante, em síntese apertada, a sequente factologia:

“a. A Autora nasceu em ........., na freguesia da Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949. (vi de fls....), tendo sido na Conservatória do Registo Civil de........... como filha de CC, sem qualquer menção da paternidade (vide fls...)

b. Que a sua mãe manteve relações sexuais de cópula com o Réu, nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, nada obstando à perfilhação.

c. Que a sua mãe e o Réu, em meados da década de 40 começaram a estreitar laços de amizade, que posteriormente evoluíram para outro tipo de relação, e que tal namoro, apesar de não assumido plenamente, era do conhecimento de toda a freguesia, situação que até era muito comentada na época; de tal modo que, quando na freguesia se descobriu a gravidez da mãe da Autora, aqui Recorrente, toda a gente teve a convicção que a filha seria do Réu, por ter sido o único homem com quem viram a mãe da Autora. Que essa Relação durou anos, sempre com promessas adiadas, tendo mesmo continuado depois do nascimento da Autora.

d. Alegando ainda a Autora que, quando pequena a mãe lhe teria indicado que aquele era o seu pai mas que este nunca permitiu uma tentativa de aproximação, o que a impediu de ter acesso ao mesmo, nomeadamente ao seu nome completo ou morada, até porque a Autora foi viver para o Porto ainda muito jovem, tendo perdido contacto com os familiares mais próximos e com vizinhos que lhe pudessem dar mais informações.

e. E que, o facto de só agora ter intentado a respectiva acção de investigação de paternidade se prende com a circunstância de só posteriormente ao falecimento da mãe e do seu marido (este em 24 de Setembro de 2009, vide fls....) a Autora ter voltado para a sua terra Natal e ter feito uma investigação mais cuidada acerca das suas raízes, o que lhe permitiu obter dados mais concretos sobre o Réu.”

Na contestação que apresentou, o demandado defende-se, por excepção, apelando para a nova redacção do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que preceitua que “a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”.

Tendo a Autora 61 anos de idade há muito que está ultrapassado o prazo de dez anos previsto no indicado preceito, cuja vigência se tem desde 2 de Abril de 2009.

Para além da excepção de caducidade induz a figura de abuso de direito por reputar estarem a ser excedidos os limites da boa fé, dos bons costumes, do fim social e económico do direito que pretende exercitar. Na verdade a mãe da Autora faleceu há mais de 12 anos, sendo que é a própria Autora que afirma saber que o seu pai biológico é o demandado. Apesar de ter conhecimento dessa realidade pessoal nunca a fez saber ao demandado nem curou de saber da sua situação pessoal. Tendo neste momento a idade de 90 anos, o demandado esteve doente há quatro anos e a Autora não procurou inteirar-se da sua situação de saúde. Sendo relevante o direito à identidade, também o é o direito de personalidade e do de reserva à intimidade da vida privada, constituindo-se como abuso de direito a pretensão de exercitar o direito de ver investigada a paternidade relativamente ao demandado com a consequente devassa da suas relações pessoais, familiares e patrimoniais.

Por impugnação contramina os factos constitutivos do direito da Autora, nomeadamente que alguma vez tivesse tido relações com a mãe da Autora, mais velha do que ele cinco anos. A ser verdade o que a Autora refere, à data em que deverão ser situadas as relações sexuais geradoras da concepção a sua mãe teria 33 anos e será pouco crível, como a autora refere, que se deixasse embair nas “falas” do demandado. Do mesmo passo não é verdade que o demandado tenha mantido um namoro com a mãe da autora nem esta consegue localizar o momento exacto em que essas relações terão ocorrido, tendo-se limitado a fazer apelo ao período legal estabelecido – os primeiros 120 dias do 300 que precederam o nascimento da autora.

Em sede de réplica a autora refuta a argumentação aduzida para a veia exceptiva suscitada, esgrimindo com o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de 10-01-2006, publicado no DR, I Série, de 08-02-2006, bem como jurisprudência deste supremo Tribunal em que estriba a posição adversa por que propugna.

No atinente ao abuso de direito, a autora repristina jurisprudência que já tinha impelido para contraminar a excepção de caducidade e outra em que se escora para abonar a posição de lidimidade do direito a que se arroga.

Em sucinto e parcimonioso despacho, o Tribunal de Ponte de Lima julgou procedente a excepção de caducidade, tendo absolvido o Réu do pedido.

È deste despacho que vem interposto o presente recurso de revista, per saltum, em que a autora pretende que venha a ser revogado o despacho saneador/sentença em que se julgou o direito á acção de investigação caduco.

I.2. – Quadro Conclusivo.

Para o pedido que requesta, a recorrente formula o quadro conclusivo que a seguir se deixa transcrito.

“1 - No douto Despacho Saneador Sentença recorrido entendeu-se julgar procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de intentar a acção de investigação de paternidade, invocado pelo Réu e, em consequência decidiu-se absolver o Réu do pedido.

2. A Recorrente não se conforma com a aplicação do direito aos factos, já que, salvo melhor opinião, entendemos que não se verifica no presente caso os pressupostos da caducidade.

3. E, por tal motivo se recorre somente de direito.

4. Assim, pretendia a Recorrente/Autora:

a) - Que a acção de reconhecimento de paternidade fosse julgada provada e procedente;

b) - Ser reconhecida como filha do Réu para todos os efeitos legais;

c) - Que fosse averbado ao seu registo de nascimento o apelido "M........"

5. Para tanto, a Autora, aqui Recorrente intentou Acção de Investigação de Paternidade contra o Réu, tendo, em suma, alegado que:

a. A Autora nasceu em .........., na freguesia da Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949. (vi de fls....), tendo sido na Conservatória do Registo Civil de Ponte de Lima como filha de CC, sem qualquer menção da paternidade (vide fls...)

b. Que a sua mãe manteve relações sexuais de cópula com o Réu, nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, nada obstando à perfilhação.

c. Que a sua mãe e o Réu, em meados da década de 40 começaram a estreitar laços de amizade, que posteriormente evoluíram para outro tipo de relação, e que tal namoro, apesar de não assumido plenamente, era do conhecimento de toda a freguesia, situação que até era muito comentada na época; de tal modo que, quando na freguesia se descobriu a gravidez da mãe da Autora, aqui Recorrente, toda a gente teve a convicção que a filha seria do Réu, por ter sido o único homem com quem viram a mãe da Autora. Que essa Relação durou anos, sempre com promessas adiadas, tendo mesmo continuado depois do nascimento da Autora.

d. Alegando ainda a Autora que, quando pequena a mãe lhe teria indicado que aquele era o seu pai mas que este nunca permitiu uma tentativa de aproximação, o que a impediu de ter acesso ao mesmo, nomeadamente ao seu nome completo ou morada, até porque a Autora foi viver para o Porto ainda muito jovem, tendo perdido contacto com os familiares mais próximos e com vizinhos que lhe pudessem dar mais informações.

e. E que, o facto de só agora ter intentado a respectiva acção de investigação de paternidade se prende com a circunstância de só posteriormente ao falecimento da mãe e do seu marido (este em 24 de Setembro de 2009, vide fls....) a Autora ter voltado para a sua terra Natal e ter feito uma investigação mais cuidada acerca das suas raízes, o que lhe permitiu obter dados mais concretos sobre o Réu.

6. Porém, o Tribunal "a quo" entendeu que, "o prazo para a A. intentar a presente acção está ultrapassado por força da Lei 14/2009 de 1 de Abril que procedeu à alteração do art.1817.º do Código Civil ". (itálico nosso).

7. Tendo julgado procedente a excepção peremptória de caducidade invocada pela Ré.

8. Tendo o tribunal "a quo" fundamentado que "Atento o disposto no artigo 1. o da referida Lei, o artigo 1817.º n.º 1do Código ... e que como o "artigo 2.º da referida Lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, no dia 2 de Abril de 2009.", "Está assente que o artigo 1817.º n.º 1 do CC ­com a nova redacção - aplica-se à presente acção por força do art. 1873.º do mesmo Código." (itálico nosso).

9. Entendendo assim o Tribunal "a quo" que "... tendo a A. 61 anos de idade, há muito que está ultrapassado o prazo de 10 anos previsto no art. 1817.º n.º 1 do CC com a redacção dada pela nova Lei 14/2009 de 1 de Abril, a qual se aplica ao presente processo. " (itálico nosso).

10. Acrescentando ainda o Tribunal" a quo" que "... é verdade que o n.º 1 do artigo 1817.º CC na sua redacção anterior à referida Lei 14/2009 de 1 de Abril, foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral. Daí não se pode concluir que a referida inconstitucionalidade abrange a actual redacção da referida disposição legal. ". Para concluir que " Por tudo isto entendemos que o n.º 1 do art. 1817.º do C. Civil na sua actual redacção não é inconstitucional. " (itálico nosso)

11. A Recorrente não pode concordar com tal entendimento!

12. Com efeito, a Autora tem 61 anos de idade e como prescreve o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, "A acção de investigação da maternidade só pode ser proposta ... nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

13. No entanto, o nosso entendimento vai no sentido de que o prazo para a Autora intentar a acção não caducou, tendo em conta o consagrado no "Acórdão do Tribunal Constitucional 23/2006 de 10.1.2006. publicado no DR de 8.2.2006 I Série. pags. 1026 1034", o qual se decidiu pela inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo de caducidade do n.º 1 do art. 1817.º do CC; implicando tal declaração a remoção da norma do ordenamento jurídico, não podendo, portanto, a mesma ser aplicada pelos Tribunais (art. 204.º da CRP).

14. É verdade que o referido Acórdão se pronunciou sobre o art. 1817.º do CC, na sua redacção anterior à Lei 14/2009; no entanto, também não é menos verdade, que as razões que estão subjacentes à declaração de inconstitucionalidade referidas no citado acórdão do TC se mantêm inteiramente válidas.

15. Deste modo, não podemos concordar com a douta sentença recorrida de que a referida inconstitucionalidade não abrange a actual redacção da referida disposição legal; nem podemos concordar com o entendimento do Tribunal "a quo" de que o legislador actual ao aumentar o prazo da caducidade sanou a referida inconstitucionalidade.

16. No nosso entender, e salvo melhor opinião, a estipulação de um prazo mais alargado do actual 1817.0 n.º 1, não deixa de constituir uma restrição ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental.

17. Pelo que, e na esteira da mais recente doutrina e jurisprudência deve-se aceitar a imprescribi1idade do direito de investigar a paternidade.

18. O direito ao conhecimento da ascendência biológica é um valor social, pessoal e moral da maior relevância, tratando-se de um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, como de identidade pessoal (art. 26.0 1 da CRP).

19. Neste sentido o Acórdão do STJ de 21-09-2010, processo n.0 495/04 ­3TBOR.C.l.S.l, in www.dgsi.pt. diz-nos que "O direito a investigar a paternidade é imprescritível sendo injustificada qualquer limitação temporal que equivaleria à limitação de um direito de personalidade. ".

20. Acrescentando ainda “É este o resultado que se alcança do Acórdão do Tribunal Constitucional ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n. 1 do artigo 1817.º do Código Civil, declaração que não pode deixar de ser extensível a todo o preceito" (Negrito, itálico e Sublinhado nosso).

21. O que contraria o douto despacho saneador do Tribunal "a quo" quando afirma que a " ... não se pode concluir que a referida inconstitucionalidade abrange a actual redacção da referida disposição legal".

22. É esta ideia de imprescribilidade que colhemos da leitura do referido Acórdão do STJ de 21-09-2010, processo n.º 495/04.3TBOR.C.1.S.1, que consagra ainda que " ... o Estado não pode limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, com limitações de prazos independentemente da sua duração, extensão e "terminus ad quem"." (negrito e itálico nosso).

23. No mesmo sentido Ac. do STJ de 7/7109 - proc. n.º 1124/05.3TBLGS.Sl ­disponível na internet, em www.dgsi.pt - diz-nos que "a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação". (Negrito e Sublinhado nosso).

24. Também na esteira do consagrado neste mesmo Acórdão "As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advêm de um quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social" (Negrito e itálico nosso), não podemos concordar, salvo o devido respeito, com a fundamentação do Tribunal "a quo" que faz prevalecer os princípios de certeza e segurança jurídica sobre a verdade biológica, dispondo "Ex abundante, os princípios da certeza e segurança do direito também terão de ser respeitados." (itálico nosso).

25. O tribunal constitucional ao declarar no seu Acórdão 23/2006 de 10 de Janeiro de 2006 inconstitucional a norma constante do art. 1817 do CC teve como motivação o direito à identidade e historicidade pessoal e ao conhecimento das próprias raízes, enquanto direito fundamental "Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade" (Negrito e Sublinhado nosso).

26. A doutrina maioritária, designadamente a doutrina mais citada pelo Tribunal Constitucional pende hoje para a inconstitucionalidade da existência de prazos nas acções de investigação de paternidade.

27. "Caducidade das acções de investigação". Revista Lex Familae, cito n.º 1, 2004, pp.7-13, concluindo ser sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos artigos 1817. ° e 1873. ° do Código Civil, tornando o regime inaplicável pelos tribunais, e devendo então o direito dos filhos poder ser exercitado a todo o tempo, durante toda a vida ... (...)’’ (negrito, itálico e sublinhado nosso)

28. Deste modo, não obstante o Tribunal Constitucional se ter pronunciado sobre o art. 1817.º do CC, na sua redacção anterior à lei 14/2009, entendemos, salvo o devido respeito, que as razões subjacentes à declaração de inconstitucionalidade se mantém válidas.

29. Tal como é defendido no Acórdão do STJ publicado no site www.dgsi.pt. processo n.º 4/07.2TBEPS.Gl.Sl, de 21-09-2010 "As razões que estão subjacentes àquela declaração de inconstitucionalidade mantêm-se inteiramente válidas, dado que, estando em causa o estabelecimento da paternidade da autora, o prazo previsto no ar! 1817.º, n.º 1, na redacção da nova lei, é também materialmente inconstitucional, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo, o estabelecimento do mesmo (...) uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito do filho saber em vida de quem descende. " (Negrito, itálico e Sublinhado nosso).

30. No mesmo Acórdão referem-se à doutrina do Dr. Jorge Miranda e do Dr. Rui Medeiros para reforçar a ideia de que “A estipulação de prazo de caducidade mais alargado constante do artigo 1817.º, na redacção da nova lei não deixa, por isso, de constituir uma restrição do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental,... " (Negrito e Sublinhado nosso).

31. Ainda no mesmo sentido diz-nos o Acórdão do STJ, in www.dgsi.pt. processo n.oI847/08.5TVLSB-A.L1.S1, de 8-06-2010 "Tal direito fundamental, do conhecimento da ascendência biológica, por banda do investigante, é um direito personalíssimo e imprescritível (....) Configurando os prazos de caducidade - sejam eles quais forem - uma restrição desproporcionada de tal citado direito à identidade pessoal ou à historicidade pessoal, violadora da Constituição da República. ( ... ) Sendo, assim, também inconstitucional, o novo prazo de investi1!ação estabelecido pela actual Lei 14/2009, de 1 de Abril" (Negrito e Sublinhado nosso).

32. Fazendo urna resenha pelo direito comparado, verificamos que apesar de a solução adoptada na ordem jurídica portuguesa (no que diz respeito ao estabelecimento de prazos de caducidade para intentar acções de investigação de paternidade) não ser inédita, afasta-se daquela que é adoptada na grande maioria das ordens jurídicas que nos são mais próximas.

33. O Código Civil Italiano, no seu art. 270.º dispõe que a acção para obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade "é imprescritível para o filho." Também o artigo 1606.º do Código Civil brasileiro dispõe que a " acção de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver... ". Por sua vez, o Código Civil espanhol, nos termos do art. 133.º dispõe "acção de reclamação de filiação não matrimonial, quando falte a respectiva posse de estado, cabe ao filho durante toda a sua vida. Esta regra da imprescritibilidade foi também adoptada pelo legislador alemão e até pelo Código Civil de Macau.

34. O Tribunal "a quo" defendeu uma tese contrária à defendida pela maioria da jurisprudência e doutrina.

35. O prazo para intentar a acção não caducou, sendo que se deve considerar que o Acórdão 23/2006 do TC declarou obrigatoriamente inconstitucional o art. 1817 do CC ao estabelecer prazos de caducidade para intentar acções de investigação de paternidade, sendo irrelevante "por conduzir ao mesmo resultado, reflectir sobre a aplicação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, uma vez que esta alteração legislativa continua a manter um prazo, embora mais alargado, para este tipo de acções.

36. Assim, se apesar de alargado continua a existir um prazo, tal artigo na sua nova redacção também se deve considerar inconstitucional, uma vez que a existência de um prazo não se coaduna com o direito a investigar por parte da Autora, enquanto direito fundamental de conhecimento da sua ascendência biológica.

37. Assim, e pelas razões supra expostas, não podemos concordar com Despacho Saneador Sentença do Tribunal, a quo" que ao julgar procedente a excepção peremptória invocada pelo Réu obsta ao direito da Autora ao conhecimento e reconhecimento da paternidade.

38. Sendo certo que, a Autora durante toda a sua vida tentou descobrir a sua ascendência biológica e que só recentemente teve acesso a dados mais concretos sobre o Réu que lhe permitissem intentar a respectiva acção.

39. Resta acrescentar que o argumento da certeza e segurança do direito, enquanto razão para a previsão de um prazo limitativo da acção de investigação não pode colher, não devendo sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia da "segurança jurídica".

40. Neste sentido diz-nos o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional "Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde logo, deixar de observar-se que, se o que esta em questão é realmente a incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar teste genético de paternidade." (negrito e itálico nosso).

41. O Réu tem direito à reserva da intimidade da vida privada e à segurança jurídica das suas relações familiares, no entanto esta não merece uma protecção superior àquela que deve ser conferida à Autora, que é o direito de conhecimento da identidade dos seus progenitores.

42. Face ao exposto, não pode considerar-se que o prazo para a Autora intentar a acção de investigação de paternidade se encontra ultrapassado, não devendo ser julgada procedente a excepção de caducidade invocada pelo Réu.

43. Devendo o deve o presente recurso ser julgado procedente, e consequentemente a douta sentença recorrida ser substituída por outra que julgue a acção procedente.

44. Ao ter julgado procedente a excepção da caducidade invocada pelo Réu, a douta sentença recorrida vai contra o entendimento da doutrina e jurisprudência maioritária, não tendo em conta os fundamentos subjacentes à declaração de inconstitucionalidade do art. 1817.º do Cód. Civil, fundamentos esses que se mantém, apesar da actual versão do artigo.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, julgando-o procedente e provado, deve o douto despacho saneador sentença recorrido ser revogado de modo a permitir a continuidade da acção, não sendo o Réu absolvido do pedido permitindo a Autora avançar com a acção de investigação de paternidade; com todas as legais consequências, fazendo assim, inteira Justiça.

Em resposta, contramina o recorrido a argumentação da recorrente, tendo dessumido o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

“1 - O direito ao conhecimento das origens biológicas não é um direito absoluto nem ilimitado, aliás, como não o são quaisquer outros direitos.

2 - O legislador não está, pois, impedido de intervir, regulando o exercício deste direito, conforme deixou bem claro o Acórdão 23/06 do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. 28/06 série I-A de 8/2.

3 - Deixando em aberto a possibilidade de o legislador vir a estabelecer um outro prazo de caducidade que não ofendesse o princípio da proporcionalidade.

4 - A nova redacção do artigo 1817.º do CC. da pela Lei 14/2009 de 1 de Abril, não afecta o conteúdo principal do direito ao conhecimento das origens genéticas.

5 - O Princípio da Concordância Prática ou da Harmonização, deve estar presente na interpretação e aplicação das normas constitucionais, conforme ensina o Prof. Doutor Gomes Canotilho in "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 73 edição, pago 1225: "O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens."

6 - A nova redacção daquele artigo harmoniza de forma proporcional o direito ao conhecimento das origens genéticas e do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, e da certeza e segurança jurídica.

7 - Porquanto estabelece um prazo suficientemente longo de 10 anos para investigar judicialmente a maternidade/paternidade e até a possibilidade para intentar a respectiva acção judicial para além desse prazo.

8 - A actual redacção do artigo 1817.º apenas não deixa ao arbítrio do interessado o modo e o grau do exercício do seu direito, disciplinando, antes, o modo pelo qual deve ser exercido, harmonizando-o de forma proporcionada com outros direitos constitucionalmente consagrados.

9 - A constituição não consagra expressamente um direito ao conhecimento das origens genéticas, residindo o seu fundamento no direito ao desenvolvimento da personalidade - direitos pessoais - consagrados no artigo 26.º n.º 1 da constituição.

10 - No caso concreto, a personalidade da recorrente não fica minimamente afectada pelo facto de não poder exercer o direito de investigar a sua paternidade.

11 - Com efeito, tendo a recorrente 61 anos de idade, tem a sua personalidade completamente formada, como está perfeitamente localizada e identificada a sua identidade cultural, geográfica e familiar.

12 - Sem conceder, o facto da Recorrente ter, eventualmente, ido viver para o Porto ainda muito jovem, não justifica minimamente que só agora tenha vindo instaurar a presente acção, porquanto, as afirmações da recorrente no presente recurso são incompreensíveis e descabidas por sofrerem de uma contradição insanável com os factos que ela própria alega na Petição Inicial.

13 - Sem conceder, a ser verdade que toda a freguesia comentava e ainda hoje comenta que a D. Julinha (recorrente) é filha do Carteiro (Recorrido), se o carteiro sempre foi pessoa bastante conhecida na freguesia, se até a mulher do vice-presidente da Câmara, D. DD sabia de tudo isto, como é que vem afirmar no presente recurso que durante toda a sua vida tentou descobrir a sua ascendência biológica?

14 - A verdade é que a recorrente nunca esteve interessada em determinar e ver reconhecida e sua paternidade até à instauração da presente acção. Só agora. em 2010, sabe-se lá porquê, quando o recorrido, sem filhos, tem mais de 90 anos e ela mais de 61 é que está preocupada em determinar a sua paternidade.

15 - Pelos fundamentos expostos, a actual redacção do artigo 1817° do Código Civil não sofre de nenhuma inconstituciona1idade que o afecte, devendo em consequência ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o douto saneador sentença recorrido.

16 - Não obstante a recorrente na sua motivação de recurso e nas respectivas conclusões, ponto 38, ter abordado alguma matéria de facto, das mesmas se conclui que só pretende ver reapreciada matéria de direito, mais concretamente a inconstitucionalidade da actual redacção do artigo 1817.º do CC.. Por outro lado, tendo o douto saneador sentença julgado e decidido matéria de direito, o recorrido não se opõe a que o presente recurso suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 725.º do CPC.”

I.3. – Questão a decidir.

A questão nuclear e axial que vem suscitada pelo recurso interposto atina com a caducidade do direito de acção de investigação de paternidade e eventual constitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil na redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2009 de 1 de Abril.

Ancilarmente poder-se-á equacionar a questão do abuso do direito.

II. – Fundamentação.

II.A. – De Facto.

- A Autora, AA nasceu, em ........, freguesia de Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949;

- A Autora foi registada na Conservatória do Registo Civil de ......... como filha de CC, sem menção de paternidade;

- A acção ordinária (investigação de paternidade) n.º 1167/10.5TBPTL foi proposta, em 25 de Novembro de 2010.

II.1. – Caducidade do direito de acção de investigação de paternidade – artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril.

Tendo a acção sido proposta já no domínio da nova redacção do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, ex vi do artigo 1873.º do mesmo livro de leis, a questão adquire contornos diversos que tiveram por tela de juízo os casos decididos nos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2010; 08-06-2010 e o mais recente de 21-09-2010. [[1]]

Para a opção legislativa da Reforma de 1977 “podia afirmar-se, também, que o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” estavam implicados nesta questão. Saber quem sou exige saber de onde venho, quais são os meus antecedentes genéticos, onde estão as minhas raízes familiares, geográficas e culturais. Esta faceta da pessoa – a historicidade pessoal – tinha de ser satisfeita através dos meios legais para demonstrar os vínculos biológicos e constituir as relações jurídicas correspondentes. Também isto sem restrição aparente na lei fundamental. Creio, ainda, que devia implicar-se nesta discussão o “direito à não discriminação” dos filhos nascidos fora do casamento. É certo que não se podia pretender que os regimes de estabelecimento da paternidade fossem iguais, quer os filhos tenham nascido dentro ou fora do casamento. De facto, as circunstâncias do nascimento são diversas e, portanto, os modos de estabelecimento da paternidade não podem ser iguais: a existência de um marido e de um dever de coabitação exclusiva, habitualmente cumprido, no caso dos filhos nascidos dentro do casamento, é o fundamento das diferenças inevitáveis. Mas, se é verdade que os regimes têm de ser diferentes, eles não precisam de discriminar, desfavorecer, os filhos nascidos fora do casamento – nem podem fazê-lo, sob pena de inconstitucionalidade (art. 36.º, n.º 4, CRep). Nestas condições, poderíamos afirmar que o reconhecimento dos meios para estabelecer a paternidade tem de ter a maior abertura, tendencialmente; estes filhos não podem beneficiar de uma presunção de paternidade do marido… simplesmente porque não há marido; mas podem ser admitidos, com a maior largueza, a provar o vínculo biológico.

Do ponto de vista do suposto pai, deve ter sido considerado o seu “direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar”. De facto, a revelação de um filho desconhecido pode ser perturbadora, sobretudo quando, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai, ou pelo decurso do tempo, a revelação é muito surpreendente. Além de surpreendente, pode provocar danos efectivos no agregado familiar do interessado.” [[2]]

Foi o suposto direito fundamental, na opinião deste Professor, que terá orientado a Comissão da Reforma de 1977 a estimar que o prazo estatuído na lei para possibilidade do investigando propor ou intentar acção para averiguação da sua paternidade constituía uma “restrição proporcional” do direito de investigar a paternidade “para defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a “segurança jurídica”, a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais – porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir “segurança” aos pretensos pais, do perigo de “envelhecimento das provas” e do uso do direito de investigar só para obter heranças. A Comissão terá pensado que a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de intentar a acção – aliás em condições de passar a beneficiar, muitas vezes, de uma presunção legal – de tal modo que não se podia dizer que essa restrição afectava o conteúdo essencial do direito fundamental.”

Tendo defendido esta posição há cerca de vinte anos, este Distinto Professor admite no artigo em questão que hoje, em face das circunstâncias vivenciais, sociológicas e histórico-pessoais os pratos da balança se desequilibraram ou deverão pender para a banda do filho-investigante. A justificação encontra-a “[desde] logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica. Nestas condições, o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” ganharam “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pesssoal”.

Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pela revisão constitucional de 1997 – um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. E certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar tanto o pretenso filho corno o suposto progenitor têm o direito de invocar do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua fanu1ia, numa palavra, a sua “localização” no sistema de parentesco.” [[3]]

O valor da asseverada “segurança jurídica”, que terá escorado a opção assumida pelo legislador não parece impressionar este Ilustre Professor, nem tão pouco a nequícia, torpe e cavilosa motivação socavada para a demanda de patrimónios avultados dos pretensos progenitores ou o envelhecimento das provas. Quanto aos dois primeiros atribui-lhe factores ou efeitos patrimoniais que, por razões que seria aqui e agora ocioso elencar, não deveriam interferir com um direito mais pujante, qual seja o de reconhecimento da identidade pessoal do filho e do seu livre e consolidado desenvolvimento pessoal, do mesmo passo que o argumento do “envelhecimento das provas” “[perdeu] quase todo o valor, com a eficácia e generalização das provas cientificas” [[4]] Para de seguida afirmar que entre “o direito fundamental à reserva da intimidade privada e familiar, que poderá ser afectada pela revelação de factos comprometedores” confere maior relevância ao direito do filho a investigar a filiação “[ao] direito do progenitor a esquivar-se à sua responsabilidade inalienável; diria também que não podemos exagerar o direito à reserva da intimidade da farru1ia do suposto progenitor, sob pena de se estabelecerem outras limitações do direito de agir contra supostos progenitores casados – casados ao tempo do nascimento ou casados no momento do reconhecimento – que foram conhecidas do nosso sistema jurídico e, obviamente, foram consideradas discriminatórias contra os filhos adulterinos. Por outro lado, o pretenso pai talvez possa também invocar o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida. Porém, nesta matéria, atribuo pouco ou nenhum valor a este direito do suposto pai, pelas mesmas razões que me levaram, há muitos anos, a defender que o pai biológico tem um dever jurídico de perfilhar. De facto, não dou relevância à liberdade-de-não-ser-considerado-pai, só pelo facto de terem passado muitos anos sobre a concepção; pai e filho estão inexoravelmente ligados e tanto o “princípio da verdade biológica” que inspira o nosso direito da filiação quanto as noções sobre responsabilidade individual a que adiro não reconhecem uma faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente.”

A questão, atenta a data da propositura da acção – 25 de Novembro de 2010 –, colima, tão só, com a constitucionalidade do artigo 1871.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela citada Lei n.º 14//2009, de 1 de Abril, ou seja, posta a questão em termos directos, se continua a ser inconstitucional o estabelecimento ou estatuição de um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação, postergando ou subalternizando o direito fundamental do pretenso pai aos direitos fundamentais de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” ou mesmo o “direito ao desenvolvimento da personalidade”.

Antes, porém, de aquilatarmos da eventual colisão ou conflito de direitos fundamentais de carácter ou feição individual, isto é, radicados e ancorados na esfera jurídica subjectiva de cada um dos sujeitos em lide, vejamos se o ordenamento permite a restrição de direitos fundamentais, maxime o direito fundamental de “direito à identidade pessoal” e “direito à integridade pessoal”. Isto porque prévia a qualquer tentativa para procurar estabelecer um ponto de colisão ou uma área de resistência de acção ou de exercício dos direitos fundamentais importará reter “[em] primeiro lugar, o problema dos limites do direito no que toca à delimitação do respectivo âmbito de protecção constitucional, para definir o seu objecto e conteúdo principal. Trata-se de determinar os bens ou esferas da acção abrangidos e protegidos pelo preceito que prevê o direito e de os distinguir de figuras e zonas adjacentes, para saber, em abstracto e a priori, também em função de outros preceitos constitucionais, se inclui, não inclui ou exclui em termos absolutos as várias situações, formas ou modos pensáveis do exercício do direito – está em causa um problema de interpretação das normas constitucionais, que compreende o problema da determinação dos limites imanentes ou intrínsecos de um direito fundamental.

Depois, tem de considerar-se o problema da restrição do conteúdo do direito – depois de este ter sido previamente delimitado por interpretação ao nível constitucional, operada através de uma intervenção normativa abstracta do legislador ordinário, para salvarguarda de outros valores constitucionais, nos termos autorizados e nos casos previstos pela Constituição – põe-se aqui o problema das leis restritivas de direitos fundamentais.

E há ainda que pôr o problema da limitação ou harmonização dos direitos, liberdades e garantias, em face dos compromissos naturais e inevitáveis entre os direitos e valores constitucionais que conflituam ou podem conflituar directamente em determinadas situações ou tipos de situações concretas, e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam – estamos perante os problemas das colisões de direitos ou dos conflitos entre direitos e valores constitucionais comunitários.” [[5]]

Assim, o direito à integridade pessoal previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa abarca duas componentes: “a integridade moral” e “a integridade física”. Em qualquer das dimensões jusconstitucionais por que se analise este direito fundamental ele atina com uma reserva absoluta de salvaguarda da integridade física e moral de um individuo, proibindo ou vedando qualquer espécie de ofensa ou agressão do corpo ou do espírito da pessoa humana. [[6]] O n.º 3 do mesmo preceito constitucional garante o direito à dignidade pessoal que, no entendimento dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, se trata de uma dimensão imanente do conceito mais lato do direito à dignidade da pessoa humana, por ser esta a dimensão fundante da ordem dos direitos fundamentais.

Já o direito ao desenvolvimento da personalidade “[recolhe], assim, no seu âmbito normativo de protecção, duas dimensões: (a) formação livre da personalidade, sem planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade; (b) protecção da liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias e (c) protecção da integridade da pessoa para além de protecção do art. 25°, tendo sobretudo, em vista a garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento.” “A densificação do direito ao desenvolvimento da personalidade pressupõe, como elementos nucleares: (l) a possibilidade de «interiorização autónoma» da pessoa ou o direito a «auto-afirmação» em relação a si mesmo, contra quaisquer imposições heterónomas (de terceiros ou dos poderes públicos); (2) o direito a auto-exposição na interacção com · os outros, o que terá especial relevo na exposição não autorizada do indivíduo nos espaços públicos (na imprensa, nos media, nos filmes, na publicidade); (3) o direito à criação ou aperfeiçoamento de pressupostos indispensáveis ao desenvolvimento da personalidade (ex.: direito à educação pensáveis ao desenvolvimento da personalidade (ex.: direito à educação ao conhecimento da paternidade e maternidade biológica.” [[7]]

Por seu turno o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar “[analisa-se] principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações I que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Ccivil, art. 80°).” [[8]]

Na ponderação da equação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se ou planteiam-se do lado do filho-investigante os direitos fundamentais dos “direito à identidade pessoal”, “direito à integridade pessoal” e “direito ao desenvolvimento da personalidade” e do lado do pretenso pai-investigado os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e “direito ao desenvolvimento da personalidade”. Erigir, na constelação dos direitos fundamentais, aquele ou aqueles que, numa dimensão axiológica e metajurídica, devem sobrepujar na validação do quadro normativo para tutela de direitos de acção e de reconhecimento dos direitos subjectivos que o ordenamento ordinário confere e institui a cada sujeito jurídico apresenta-se como tarefa a desbravar para o caso que nos ocupa.

Uma primeira questão atina com a possibilidade de a norma constitucional prever a sua “regulamentação” a nível legislativo. “Nalguns preceitos, a Constituição autorizou a lei ordinária a restringir determinados direitos em alguns aspectos ou para determinadas finalidades, ou então atribuiu-lhe expressamente uma competência de regulação geral da matéria que pode ser interpretada competência de regulação geral da material No entanto, há muitos preceitos constitucionais – como, por exemplo, os relativos ao direito à vida, à integridade pessoal e outros direitos pessoais (artigos 24.º a 26.º), mas também os relativos às liberdades de criação cultural (artigo 42.°), de aprender e de ensinar (artigo 43.°), aos direitos de deslocação e emigração (artigo 44.°), de reunião e manifestação (artigo 45.º) – que não prevêem expressamente quaisquer restrições legislativas.”

Para este autor “[o] poder de restrição é um poder excepcional no plano normativo, não apenas porque necessita de ser autorizado, mas também porque não se justifica em regra (como regra). O legislador tem, por isso, de se basear – nas situações ou casos em que a restrição se · tome necessária – num outro valor constitucional que imponha o sacrifício do direito fundamental. Se esse valor não existir ou não exigir tanto quanto o legislador alega, então a restrição não é legítima e viola o preceito constitucional que prevê o direito fundamental em causa. Não se trata aqui de um limite abstracto fixo, de uma proibição absoluta. Mas de uma proibição relativa, referida a um conteúdo constitucional elástico e só em concreto determinável. Neste sentido, o conteúdo inatacável dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias começa onde acaba a possibilidade e a legitimidade da sua restrição.” [[9]]

Estando em causa direitos fundamentais como os “direito à identidade pessoal”, “direito à integridade pessoal” ou ainda o “direito ao desenvolvimento da personalidade” ou de “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, todos direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa.

Em nosso juízo, e permitindo-nos tomar as razões alinhadas pelo Ilustre Professor Guilherme de Oliveira no artigo supra citado, não se nos afigura que razões de “segurança jurídica”, “envelhecimento das provas” ou de “caça fortuna” possam estribar razões de sentido restritivo, por via legislativa, para limitação dos direitos fundamentais “absolutos” que competem neste confronto. Na verdade, e aqui alinhando com a posição do Professor Vieira Andrade – cfr. nota infra – não se afigura que possam ser invocadas razões de segurança jurídica para limitar por via legislativa o direito de qualquer pessoa ao reconhecimento da sua identidade e integridade pessoal ou ainda o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Do mesmo passo as razões de ordem prático—processual como o envelhecimento das provas não conferem dignidade para poderem ser invocadas como razões idóneas, válidas e consistentes quando postas em confronto com os direitos fundamentais fundantes da pessoa humana. (Valem aqui, data vénia, os argumentos adiantados pelo Professor Guilherme de Oliveira no já citado artigo quanto à objectividade e cientificidade das provas que hoje estão disponíveis para prova da filiação, maxime o ADN dos sujeitos envolvidos que pode ser colhido mesmo após o respectivo decesso.) O motivo de ordem patrimonial que poderia estar presente na opção do legislador constitui-se perverso e de frágil consistência estrutural e sistémica para poder ser esgrimido contra valores e princípios essenciais da pessoa humana. [[10]]

Ainda, porém, que concedamos poder o legislador actuar por via legislativa na restrição dos direitos fundamentais anunciados, e nos orientássemos para um conflito ou confronto de direitos fundamentais de feição individual, a sorte não seria diversa.

“Um dos pontos mais complexos da dogmática jurídica dos direitos fundamentais prende-se com o problema das relações entre as normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais e as normas legais que, a vários títulos, com elas se relacionam.” [[11]]

A doutrina trata a questão de colisão de direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e bens jurídicos, considerando que “de um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.” [[12]] No entanto, “os direitos consideram-se direitos prima facie e não direitos definitivos, dependendo a sua radicação subjectiva da ponderação e da concordância feita em face de determinadas circunstâncias concretas. O Tatbestand (o domínio normativo) de um direito é também sempre, em primeiro lugar, “um domínio potencial”, só se tornando um domínio actual, depois de averiguação das condições concretamente existentes. A conversão de um direito prima facie em direito definitivo poderá, desde logo, ser objecto de lei restritiva, que, nos termos autorizados pela Constituição, representará um primeiro instrumento de solução de conflitos”. [[13]/[14]]

Para Vieira de Andrade “[haverá] colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional.” É ainda este autor que adverte para que “[a] solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com I o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais”, não devendo erigir-se o principio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos “ser aceite ou entendido como um regulador automático”. [[15]]

Na metodologia para a resolução de conflitos entre direitos “[deve] atender-se, desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito – trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional.

Deve ter-se em consideração, obviamente, a natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objectivas do facto conflitual, isto é, os aspectos relevantes da I situação concreta em que se tem de tomar uma decisão jurídica – em vista da finalidade e a função dessa mesma decisão.

Deve ainda ter-se em atenção, porque estão em jogo bens pessoais, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções específicas, sobretudo quando o conflito respeite a conflitos entre direitos sobre bens e liberdades.” [[16]]

Tendo como linha de orientação o que vem ensinado, haverá que indagar quais os factores de ponderação que no caso concreto podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa. Nesta ponderação terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados.

O controlo da proporcionalidade passa por averiguar se o meio restritivo escolhido deva ser o mais proporcional ou não deva ser desproporcionado. “Aquilo que deve ser indisponível são os direitos fundamentais, pelo que a decisão de restrição, essa sim, é sindicável em toda a extensão e com toda a intensidade; o meio restritivo escolhido, pressuposto que seja apto e indispensável, só tem que ser não desproporcional. Existe inconstitucionalidade se a restrição for desproporcionada, não já se houver um outro meio que, no entender do órgão de controlo, seja, não menos restritivo, mas simplesmente mais adequado ou mais oportuno.”

“Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, a doutrina tende a seleccionar como critérios orientadores da intensidade do controlo de proporcionalidade: a gravidade da restrição e a importância e a premência dos interesses que justificam a restrição (no sentido de que a quantidade admissível desses dois termos se determina recíproca e proporcionalmente condicionando a adequação da relação em apreço e o correspondente controlo), bem como a relevância dos interesses de liberdade protegidos pelo direito fundamental restringido (no sentido de que quanto mais elementares e vitais forem as manifestações da liberdade pessoal directamente afectadas pela restrição maior exigência se deve colocar no seu controlo). Se aqueles primeiros critérios se identificam com a própria natureza do controlo de proporcionalidade, já este último remete para uma diferenciação dentro da protecção garantida pelos direitos fundamentais, seja em termos de zonas de resistência diferenciada consoante a liberdade afectada está mais ou menos próxima do núcleo de autonomia e dignidade da pessoa humana, seja em função do alcance diferenciado com que os diversos grupos de direitos fundamentais representam formas mais ou menos elementares de desenvolvimento da personalidade, na · medida em que estejam mais directamente relacionados com a protecção de esferas pessoais ou com a integração social do indivíduo (por exemplo, as liberdades pessoais ou os direitos económicos).” [[17]]

Já a razoabilidade deve ser colimada pela ponderação dos valores socialmente prevalentes, porque historicamente aceites numa comunidade societária estabelecida e organizada, que regem e geram os vectores de pensamento por que um indivíduo historicamente situado se orienta e conduz em ordem a conformar a sua vivência sentido comum racional e intelectualmente sedimentado. Vale por dizer que na ponderação do que deve ser entendido por razoável intervêm valores sociais que se projectam na interioridade racional do indivíduo e lhe ditam o agir pessoal e o actuar social.

Os critérios de adequação comportam na sua fisionomia societária uma isonomia entre um amplexo de regras cooptadas entre o vivenciar pessoal e o sentir comum que se congraçam e completam de forma a criar um conjunto harmónico e plausível dos indivíduos socialmente engolfados e donde emerge um fio condutor assumido e adoptado como forma mais apta para colimar o vivenciar pessoal e social. Na adequação social converge uma conformação do sentir pessoal com o entorno axiológico-social que potencia uma convivência socialmente adquirida e historicamente assumida. Daí que para que se possa aferir da conformidade entre dois vectores haja que indagar dos valores prevalentes em cada momento. Para o caso em análise afigura-se-nos que a sociedade tenderá a privilegiar o conhecimento das origens que permita a assunção de uma identidade completa e integrada em detrimento de valores de estabilidade familiar e/ou pessoal.

Nos critérios de integração pessoal e social e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal dos sujeitos engolfados deverão tomar-se em consideração a necessidade de quem quer ter o direito a conhecer a sua origem familiar, por forma a propiciar um desenvolvimento pessoal em que não faleça uma referência essencial e axial da constituição do individuo, a saber donde provém e por quem foi gerado. Não se constitui uma individualidade harmoniosa se não se conhecerem ou não estiverem estabelecidas, tanto no plano pessoal com o social, as origens fundacionais do sujeito. Do mesmo passo, na cultura socialmente dominante, e que a Constituição da República Portuguesa acolheu de forma inderrogável e irrefragável na sua filosofia humanista e de preeminência dos valores do individuo colocado numa sociedade que se quer orientada e projectada para propinar um desenvolvimento pessoal harmonioso e arrimado a valores personalistas, não colhe a ideia de que a alguém possa ser coarctado o direito a conhecer as suas origens familiares, fundado tão só em razões de índole formal e normativa. Os valores do indivíduo sobrepujam e superam razões de ordem formal, por levarem associados vectores filosófico-humanistas que a sociedade quis privilegiar e sedimentar na consciência pessoal e social.

No conspecto dos valores em confronto, cremos dever privilegiar aqueles que abonam e exornam a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias. Vale por dizer que propendemos, na esteira, dos arestos supra citados que o n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 114/2009, de 1 de Abril, deve ser considerada inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Declarar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril e, em consequência, revogar o despacho impugnado que deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção.

- Custas pelo recorrido.


Lisboa, 06 de Setembro de 2011


Gabriel Catarino (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

_______________________


[1] Todos em www.stj.pt. Já o mais recente acórdão deste Supremo Tribunal quanto a esta matéria e que declara a inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, reportando-se a uma acção proposta em 2008 estima que “[Declarado] inconstitucional o prazo de 2 anos para a caducidade do direito de acção de investigação da paternidade do art. 1817º, nº1 do CC, o novo prazo de 10 anos, estabelecido pelo art. 3.º da Lei nº 14/09, de 01.04, é, também, inconstitucional. II – Isto porque é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito de conhecer a ascendência.”
[2] cfr. Oliveira, Guilherme, In “Caducidade das Acções de Investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, “Direito da família e das Sucessões”, Coimbra Editora, 2004, págs. 51 e 52.
[3] Oliveira, Guilherme, in op. loc. cit. pág. 53
[4] Oliveira, Guilherme, in op. loc. cit. pág. 55.
[5] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, pág. 277.
[6] cfr. Gomes Canotilho, J. J. e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa. Anotada.”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 a 457.
[7] cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in op. loc. cit., pág. 463 e 464.
[8] Gomes Canotilho e Vital Moreira, in op. loc. cit., pág. 467.
[9] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, págs. 288 e 289. Esse autor considera não lhe parecer “defensável] que, por um lado, se exija a autorização de restrição expressa, em nome da segurança Jurídica (com uma função de advertência e um alcance de proibição), e, ao mesmo tempo, se admita, sem mais, a intervenção legislativa limitadora a posteriori, quando esteja em causa um conflito entre direitos fundamentais ou entre direitos e valores comunitários, mesmo para além das situações de limites imanente”. Cfr. pág. 291.
[10] “Em segundo lugar, a ideia de evitar a “caça às heranças” tem de se , entender de outro modo. E certo que a cobiça não desapareceu e certamente aparecerão acções movidas apenas por este feio sentimento. Mas, por um lado, não ficou nunca muito claro que as acções antigas fossem sempre intentadas por mulheres sem escrúpulos contra honestos cidadãos, com o fito de lhes comprometer a fortuna; por outro lado, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram. Muitas das acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorreriam hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna semelhantes, que se exprimem por uma formação profissional e por um emprego. Provavelmente, o móbil seria o de esclarecer a existência do vínculo familiar. Forçar o progenitor a assumir a sua responsabilidade, descobrir o lugar no sistema de parentesco como meio de combater a solidão individual; e porventura num momento em que o filho não tem pretensões patrimoniais – num momento em que já não poderá formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de natureza sucessória.” – Guilherme Oliveira, in op. loc. cit. págs. 54 e 55.
[11] cfr. Gomes Canotilho, José Joaquim, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Almedina, 6.ª edição, pág. 1247.
[12] Apud op. loc. cit. pág. 1255. Poderá, ainda acontecer que existindo concorrência de direitos fundamentais, “um determinado “bem jurídico” leve à acumulação, na mesma pessoa, de vários direitos fundamentais”
[13] Gomes Canotilho, J. Joaquim, in op. loc. cit. pág. 1257.
[14] Para Cristina Queiroz, in “Direitos Fundamentais. Teoria Geral”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, “A “configuração” dos direitos, tal como os conceitos de “restrição” e “pressuposto de facto”, não se mostra independente do caso concreto. Abstractamente os direitos não são incompatíveis. A incompatibilidade ou conflito só poderá dar-se perante um caso concreto. A necessidade de I’ “concordância prática” ocorrerá ou com base numa “harmonização” de. ; direitos ou com base na “prevalência” ou “prioridade” de um direito (ou · bem jurídico) em relação ao outro. Esta prevalência ou prioridade tanto pode dar-se a “nível constitucional” como a “nível legislativo” ou na elaboração da “norma de decisão”. Será, por conseguinte, nestas hipóteses de conflito, que surge o problema da “restrição” e/ou “configuração” de direitos fundamentais.” – pág. 250. Já para Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, a colisão ou conflito de direitos fundamentais “[que] implicam uma limitação recíproca dos direitos colidentes ou conflituais, podem surgir em abstracto, ao nível legislativo, quando o preceito constitucional não tenha previsto qualquer restrição para um determinado direito ou se torne necessário ir além das restrições legislativas previstas, bem como, obviamente, naquelas hipóteses em que a Constituição
preveja direitos ou valores estruturalmente incompatíveis.”, pág. 277.
[15] cfr. Op. loc. cit. pág. 311 e 312 e 314. Na lição deste autor “[o] princípio da concordância prática neste domínio não impõe necessariamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo, uma harmonização em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação – ou, para utilizar uma terminologia anglosaxónica, um balancing ad hoc – de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida possível. Ora, a realização máxima das prescrições constitucionais depende da intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu conteúdo e a sua função específica. Isto é, a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) é diferente, consoante o modo como se apresentam e as alternativas possíveis de solução do conflito.”
[16] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in op.loc. cit. pág. 316 e 317.
[17] cfr. Reis Novais, Jorge, in “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa”, Coimbra Editora, 2011 (reimpressão), pág. 183.


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